Cumplicidade

Pedro W. Gois
Realismo Utópico
Published in
11 min readJun 15, 2017

Aquela hora já não havia mais o que fazer. Pelo menos, não naquelas circunstâncias. Aliás, havia só uma coisa à fazer. E era exatamente isso que precisava ser feito. Não precisava pensar duas vezes. Ele faria. Faria quantas vezes fosse necessário. Sem culpa. Sem arrependimento. Pegou a jaqueta, as chaves de casa. Saiu com pressa, batendo à porta estrondosamente atrás de si.

Elisa estava nervosa. Mal conseguia aguentar-se de pé. As pernas bambas. Os joelhos, tremendo, batiam um no outro. Sentia-se sem forças. Fraca. A cabeça rodava. Podia escutar um silvo baixo no ouvido esquerdo, resultado do barulho do disparo. Estava confusa. Sentou-se no sofá. O que acabara de fazer? Como iria resolver isto? Passou a mão na testa. As unhas vermelhas contrastavam com a pele muito branca. Estava uma madrugada fria mas, mesmo assim, podia sentir uma gota de suor escorrer pela têmpora direita.

Eliseu não podia acreditar. Ele sabia. Aquele cafajeste, como pôde? Durante tantos anos… pisou na embreagem, passando a marcha. O ponteiro indicava 130 km/h. O Ford branco acelerava. O ronco do motor, furioso. O carro cortava a noite, veloz. Sozinho na via-rápida.

Elisa olhou novamente para o chão da sala de estar. Sobre o tapete de veludo branco, estava o corpo de seu marido. Uma mancha de sangue ao lado da sua cabeça. O tiro foi perfeito. Ela sabia que o revólver calibre .32 tinha pouco poder de impacto. Olhou para a arma. O cabo de madeira escura. A cor prata. O tambor com as cinco balas restantes. O cano. Uma arma de defesa pessoal. Era preciso atirar de perto. Não errar. Aproveitara-se da distração do marido. Sentado no sofá da sala, depois de um cansativo dia de trabalho, Osmar queria relaxar. Ligou a televisão, colocou no canal do noticiário desportivo. Queria ver os gols da sua equipa no dérbi. Antes que o comercial acabasse e o apresentador voltasse à aparecer no ecrã da televisão, Osmar tombou com o projétil .32 atravessando-lhe a têmpora esquerda. Nada de miolos espalhados pelo tapete da sala, apenas uma espessa mancha de sangue.

Eliseu saiu da via-rápida. O Ford em disparada. Seu coração palpitava. Podia senti-lo quase saindo pela garganta. Afinal, que outra reação teria um pai depois de uma ligação desesperada da filha no meio da madrugada. Acrescente ao fato às seguintes palavras: “matei meu marido”. O que mais ele poderia fazer? Ligar para a polícia? Não fazer nada? Seu dever como pai não era esse. Esperava que, pelo menos, a filha tivesse escutado tudo que ele dissera. Para manter a calma, não encostar no corpo. Não fazer nada até que ele chegasse. Já podia ver a casa da filha ao final da rua. Reduziu a velocidade.

Elisa tomou um susto com a campainha. A primeira reação foi esconder o revólver debaixo de uma almofada do sofá. Rídículo, pensou. Não é a polícia. É meu pai. Tinha esquecido-se da ligação ao pai. Estava absorta em seus próprios pensamentos. Atravessou a sala, evitando passar por cima do tapete de veludo branco. Abriu a porta.

Eliseu olhou para o rosto da filha. O olho esquerdo roxo, inchado. Não havia lágrimas nos olhos da filha. Apenas uma expressão de cansaço. Não tinha nada à dizer-lhe. Limitou-se à abraçá-la. Não tinham tempo à perder. Precisavam agir rápido. Eliseu não tinha certeza se algum vizinho poderia ter escutado o tiro. Entrou na casa, ouviu a filha batendo a porta atrás de si. Aproximou-se do corpo do genro lentamente. Desgraçado, canalha. Quase dez anos junto da sua filha. Espancando-a? Enchendo-a de socos depois do expediente, para desestressar? Filho da puta. Teve o que mereceu. Agachou-se ao lado do corpo.

Maior cuidado, não podia tocar em nada. Olhou para o buraco na têmpora esquerda. Um buraco pequeno, mas muito sangue saia dali. O tapete estava todo avermelhado. Uma poça de sangue formava-se. Não pode deixar de notar que o projétil havia entrado pelo lado esquerdo. Em sua mente, um estalo. Resquícios da época em que era inspetor do departamento de homicídios. É o que chamavam brainstorm. Ele preferia chamar de “instinto”. Dava no mesmo. A mente, em milésimo de segundo, voou. Não pode evitar de pensar no passado. Trinta anos atrás. Sua esposa, ainda viva. Ele, ainda policial, a esposa e Elisa, pequena, sendo alfabetizada com cinco anos, comia sopa de letras na cozinha. Sempre com a mão esquerda. A mãe não gostava. Eliseu, na época, fez coro à esposa, queria a filha destra. Achava mais prático. Hoje dava graças à Deus que sua filha fosse canhota. O seu raciocínio, como investigador, já condicionado pelos anos na Polícia, esquadrinhou a situação conforme as probabilidades: um tiro entrando pela têmpora esquerda excluiria completamente a hipótese de suicídio, se o morto fosse destro. Qual situação aquilo ocorreria? Uma situação. Dentro de um carro. Sim, um homicídio dentro de um carro. Dentro de um carro, o motorista atirando com a mão direita no carona. Um disparo, da esquerda pra direita, efetuado por um destro seria provável naquela situação. Era simples. Era ciência. Também dava graças à Deus por ter estudado Criminologia.

- Onde está a arma?

- No sofá.

- Porra, Elisa. Eu falei para não colocar a arma em lugar nenhum, pra ficar segurando…

- Eu sei, eu segurei. Mas foi o susto quando ouvi a campainha. Coloquei atrás da almofada.

Eliseu foi até o sofá. Sabia que não devia pegar a arma do crime sem luvas. Mas não era hora de precauções que resultassem em perda de tempo. Aquele revólver ia parar em algum forno de alta temperatura. Ou talvez até voltasse para as ruas, na mão de algum vagabundo. Foda-se, decidiria depois. Não havia tempo à perder. Pegou o revólver calibre .32. Era uma arma pequena, para defesa-pessoal. Um tiro de mais longe dificilmente mataria. Mas sua filha sempre foi boa aluna, sempre muito atenta. Ao longo da adolescência, chegou à aprender como atirar com o pai. Aprendeu sobre as armas, como limpá-las, ajustá-las, como manuseá-las. Aprendeu sobre seus dispositivos, a diferença entre o calibre das munições. Com certeza, teria dado uma excelente policial, pensou.

- Rápido, me ajuda à puxar o corpo para o centro do tapete. Vamos enrolá-lo para tirar daqui.

- Tirar daqui? — balbuciou Elisa.

- Claro, Elisa. Essa sala está cheia de impressões digitais, sangue. Com certeza tem resíduos de pólvora nas tuas mãos. Na tua roupa, no tapete. Até no sofá, na almofada. Em tudo.

- Mas eu pensei que iríamos simular um latrocínio…

- Sim, mas um latrocínio fora da tua casa. Não podemos simular um assalto seguido de morte dentro da sua casa. Presta atenção, o tiro entrou pelo lado esquerdo, certo?

Elisa murmurou qualquer coisa inaudível.

- Pensa comigo, se ele estivesse dirigindo o carro e fosse assaltado. O ladrão apontaria a arma pro lado esquerdo da cabeça dele.

- Não entendo onde o senhor quer chegar…

- Vamos colocá-lo no carro. Simular um assalto que deu errado. O ladrão anunciou o assalto, mandou ele passar para o banco do passageiro e assumiu o controle da direção.

- Continuo sem entender, pai…

- Concentração, Elisa. Usa a tua imaginação.

Elisa manteve-se em silêncio. Tentou recompor-se. Precisava relaxar. Precisava abstrair da cena ao seu redor. Sentia-se dentro de um filme roteirizado pelo Tarantino. Fechou os olhos. Inspirou. Expirou. A mente começou à focar-se. Atenção. Concentração.

- Ocorreu um assalto. O ladrão assume a direção. Seu marido está no banco do passageiro, à direita. O assalto corre mal. O ladrão atira. É destro, usa a mão direita. A bala entra pelo lado esquerdo da cabeça. O vagabundo leva o carro para um local ermo e incendeia o veículo. Amanhã de manhã, você liga pra policia pra noticiar o desaparecimento do seu marido. Ele nunca chegou à casa, você não matou ele.

Elisa começava a entender. Eliseu já tinha tudo na cabeça. Como um filme. Conseguia ver tudo. Precisavam colocar o corpo num carro. O carro da própria vítima. Pediu ajuda para a filha. Utilizaram o próprio tapete branco de veludo, onde o corpo estava estendido, para enrolá-lo. Era mais fácil de transportar. Um defunto é bastante difícil de carregar. O peso-morto era um grande problema. Dentro do tapete, enrolado em forma cilíndrica, era mais fácil de transportar o cadáver. Eliseu de um lado. Elisa de outro. Seguravam firme no tapete. Erguido rente ao chão, o peso-morto foi carregado da sala até a cozinha.

Eliseu não podia deixar de olhar para a filha. Uma mistura de sentimentos. Pena e compaixão dela. Ódio e revolta com o merda do genro. Ou melhor, ex-genro. Falecido genro. Sentia desapontamento e frustração por nunca ter percebido as frequentes agressões à sua filha. Bem debaixo de seu nariz. Logo ele, um ex-policial. Enganado. Sentia surpresa com a situação. Mas, acima de tudo, sentia orgulho. Não sabia exatamente se sentia orgulho da reação da filha ou se sentia orgulho de si mesmo, por estar ali. Cúmplice em assassinato. Logo ele, Eliseu Padilha, um ex-policial com uma carreira brilhante. Condecorado. Chegou a ser Comissário de Polícia. A vida guarda-nos umas ironias do caralho, pensou.

Na cozinha, descansaram o tapete-cilindro-branco com o cadáver, que foi colocado no chão da cozinha. Elisa abriu a porta dos fundos, correu pelo breu da madrugada atravessando o pequeno quintal e abriu a porta da garagem. Foi até o carro do marido. Abriu a porta do Land Rover, sentou no banco do motorista. Procurou pela chave. Ignição. Porta-luvas. Quebra sol. Portas. Debaixo do tapete do carro. Tateou. Estava lá. Chave na ignição, ligou e destravou o porta-bagagens. Abriu a porta, saltou e deu a volta no carro. Abriu a porta-bagagens. Voltou pra cozinha.

Arrastaram o corpo. Sairam da casa. Era mais difícil e lento carregar o morto pelo quintal por conta do terreno mais irregular. A garagem aproximou-se. Entraram. Já cansados, demoraram mais tempo do que o esperado para conseguir levantar o corpo na altura do porta-bagagens. Uma vez lá dentro, Eliseu esforçou-se para posicionar o tapete-cilindro na diagonal, de forma à caber por completo. Bateram o porta-bagagens.

- Eu vou dirigindo a Land Rover, você vai com o meu carro atrás. A chave tá aqui — Eliseu pegou a chave do Ford no bolso nas calças e entregou à filha.

A mente de Elisa sentia-se menos confusa agora. A presença do pai, toda a sua ajuda. Não esperava por aquela reação. Na verdade, ela não esperava nada daquilo. Não sabia como as coisas tinham chegado aquele ponto. Mas não havia volta. E não havia pessoa melhor para ajudá-la, naquela hora. Seu pai. Olhou nos olhos do pai. Eliseu Padilha, ex-policial. Investigador de Homicídios, Comissário de Polícia. Uma das pessoas mais corretas e integras que ela conheceu em toda a vida. Lembra da cumplicidade que tinham, quando ela ainda era pequena. Cumplicidade. Ironia, não é?

- Na via-rápida, nós vamos passar por uma bomba de gasolina. Para lá e compra uns dez litros de gasolina. Paga em dinheiro. Eu vou estar esperando cerca de um quilômetro à frente.

Elisa pegou a chave, saiu da garagem, atravessou o quintal. Passou pela cozinha e pela sala, sempre evitando o local onde, anteriormente, o corpo do marido jazia sem-vida no tapete de veludo branco. Saiu pela porta da frente, abriu o Ford do pai e entrou. Ligou o carro, engatou a primeira e acelerou lentamente, deixando silenciosamente a entrada da própria residência para trás. Fez a curva à esquerda.

A pick-up já estava fora da garagem, embicada em direção à rua. Quando os faróis do Ford iluminaram a esquina, Eliseu acelerou. A Land Rover partiu. Refez todo o percurso, dessa vez mais lentamente. Eliseu não passava dos 70 km/h, para não chamar atenção. Podia ver a filha, ao volante do seu carro, alguns metros mais atrás. Saíram do bairro residencial e entraram na via-rápida. Aceleraram um pouco, sem ultrapassar os 100 km/h. A bomba de combustível estava próxima.

Elisa pode ver o letreiro amarelo com letras brilhando em vermelho. Era a bomba de combustível. Entrou com o carro. Na madrugada, as seis bombas estavam vazias. Nos fundos, uma pequena loja de conveniência. Estacionou o carro e saltou. Lá dentro, seguiu direto até o balcão. Pediu dez litros de gasolina, em galões, para que pudesse abastecer seu outro carro, que havia ficado parado por falta de combustível. Achou que tinha falado demais. Prontamente, o funcionário adotou um tom que mesclava ironia e machismo, oferecendo-se para acompanhá-la de volta à casa para ajudar. Aquela hora da madrugada poderia ser perigoso, disse ele. Um sorriso amarelo, uma negativa. Elisa ainda escutou mais uma ou duas piadinhas do mesmo tipo, enquanto o homem enchia dois galões de cinco litros cada um com gasolina. Ela pagou, não pegou o troco. Tinha pressa.

Mais uma vez de volta à via-rápida, cerca de um quilômetro à frente viu o veículo, dirigido pelo pai, estacionado às margens da rodovia. Passou por ele. Pode ver, pelo espelho retrovisor, que o Land Rover voltou à via-rápida e, rapidamente, ultrapassou-a. A situação voltou à ser como era antes, Eliseu dirigindo o carro do genro, que por sua vez estava morto no porta-bagagens e Elisa no Ford do pai, logo atrás. Seguiram por mais vinte quilômetros, até a pick-up dar a seta para a direita, pegando uma das saídas.

Eliseu saiu da via-rápida, seguido pela filha. Os carros rapidamente chegaram à uma zona pobre, com casas mal pintadas e quase nenhum comércio. Nenhum carro. Contudo, algumas motos estavam estacionadas ao longo de toda a via. Eliseu lembrava daquela área. Dos tempos de policial. Ia muito até ali, em geral eram casos de homicídios relacionados à drogas. Dívidas, disputas e sabe-se lá mais pelo que aqueles viciados matavam-se. Um lugar perfeito para desfazer-se de um corpo. Seguiram a rua por mais alguns quilômetros. As casas deram lugar à terrenos vazios, cada vez mais frequentes. Em determinado momento, quando não via-se mais nenhuma construção, apenas vastos terrenos com vegetação alta, Eliseu parou.

Elisa parou. O carro da frente deu marcha atrás, saindo da rua e entrando em um terreno baldio. A vegetação era alta, cobria quase metade da roda. Elisa ficou imóvel dentro do Ford. Não tinha bem a certeza sobre o que deveria fazer. O outro carro parou. Viu seu pai saltar, dar a volta no carro e abrir o porta-bagagens. Acenou para ela.

Eliseu puxou o tapete-cilindro para fora do carro. Era difícil de imaginar que ali dentro ia um cadáver. O seu genro. Morto pela sua filha. Começou a desenrolar o tapete. Era uma tarefa árdua. Precisava rolar o corpo enquanto puxava o tecido. A filha aproximou-se para ajudar. Desenrolaram completamente o tapete. O corpo caiu no chão.

- Enrola esse tapete de novo e leva pro meu carro. Traz a gasolina.

Elisa sentia um frio percorrer a espinha. Não sabia se era medo ou adrenalina. Talvez os dois. Enrolou o tapete — encharcado com sangue — novamente. Colocou-o sobre os ombros e levou até o Ford, estacionado uns 20 metros adiante, ainda na estrada. Jogou o tapete no chão, abriu a porta traseira. Tapete pra dentro. Fechou a porta, abriu o porta-bagagens. Com os dez litros de gasolina, correu novamente para junto do pai. E do falecido marido.

Eliseu começou a arrastar o corpo, pelos braços, em direção ao banco do passageiro. Abriu a porta. Um último esforço para levantar o corpo. Peso-morto pesa. Sentou-o no banco de passageiro. Fechou a porta, deu a volta no carro. Podia ver a filha vindo em sua direção, um galão em cada mão. Tinha pena dela. Raiva de si próprio. Como não descobrira antes? Como nunca desconfiara daquilo? Não havia mais tempo a perder. Orientou Elisa à despejar um dos galões do lado de fora do carro. Dar preferência ao capô e às rodas; e evitar o teto, foi o que Eliseu falou.

Foi tudo muito rápido. Cinco litros não são muita coisa quando precisa-se incendiar um veículo. Eliseu espalhou gasolina no interior do veículo, no painel, nos bancos. Principalmente, em cima do corpo. Elisa fazia o mesmo, do lado de fora. Antes mesmo que ela pudesse acabar, Eliseu afastou-a.

- Agora, volta pro meu carro, liga o motor e senta no banco do passageiro.

Elisa obedeceu. Preferia não ver o ato consumado. Não conseguia imaginar o corpo marido sendo queimado dentro de um carro. Mas também nunca imaginara matá-lo. Correu. Correu os metros que faltavam até o Ford branco do pai. Não olhou para trás. Teria tempo de ver o pai abrir a portinhola do tanque, colocar um pano e acender. Eliseu correu. Também não olhou para trás. Chegou ao carro pouco antes da explosão. Ainda à tempo observar o olhar da filha uma última vez antes daquilo tudo terminar.

Só havia cumplicidade naquele olhar.

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