Histórias para contar

Pedro W. Gois
Realismo Utópico
Published in
4 min readJun 2, 2017

Era mais um dia normal de trabalho. Uma quarta-feira de maio. Fui escalado, pelo editor do jornal, para fazer uma reportagem sobre a rotina dos viciados que perambulavam pelo Mercado da Droga, como era conhecida a região central da cidade, área extremamente degradada, onde o tráfico de drogas e a prostituição imperavam. O espaço vinha sofrendo uma forte política de repressão, imposta pelo Prefeito recém-eleito. É aquilo, o cara se elege, promete uma porrada de coisa e depois precisa dar uma mínima satisfação pro eleitor. Investir em saúde e educação custa muito caro para os cofres públicos, então mais vale à pena mandar a polícia descer o cacete em todo mundo. A imprensa, claro, estava presente. Aliás, eu estava presente, cumprindo meu papel como jornalista.

Estacionei o meu carro nas proximidades. Para aquele tipo de reportagem, eu sempre evitava a viatura da empresa, com o enorme logotipo da emissora. Aquilo atraia curiosos, mas afastava quem realmente interessava. Preferia ir “à paisana”, na gíria policial. A única coisa que poderia identificar-me como jornalista era a câmera Canon pendurada no pescoço. Antes de toda a ação começar, resolvi parar em um restaurante na Rua Guanaes, à poucos metros da Praça Dona Isabel, onde ocorria o chamado Mercado da Droga. Às vezes, enquanto bebia-se um café ia-se pescando uma ou outra história. Com sorte, até surgia uma boa personagem.

Faltavam alguns metros para a entrada do restaurante quando presenciei toda a cena. Um homem negro e gordo, vestindo uma camisa pólo listrada — e, presumivelmente, segurança do restaurante — , expulsava um viciado em drogas, arrastando-o pelo colarinho para fora do estabelecimento. O segurança gordo voltou para dentro. O homem, aos gritos e palavrões pedia dinheiro, parado à porta. Era nítida sua condição de adicto. Cabelos desgrenhados, barba por fazer. Estava atordoado. Roupas rasgadas, sujo. Poderia ser o início de uma boa história. Aproximei-me. Não pude acreditar no que eu via. Era o Cadu. Demorei à perceber que, realmente, o mendigo à minha frente era quem eu achava que era. Será que era ele?

- Carlos Eduardo? — perguntei — Carlos Eduardo Souto?

- Eu preciso comprar heroína. Eu tô passando mal. Preciso comprar heroína.

Tive a certeza de que era Carlos Eduardo. Estudamos juntos durante dez anos no Santo Eugênio, um dos melhores colégios particulares da cidade. Cadu. Carlos Eduardo Souto. Eu me lembrava bem. Filho de um importante arquiteto. Íamos muito para a casa de veraneio dos pais, na Costa Norte. Lembro dele com 15 anos, cabelo comprido. Sempre tocando violão e cantando no inglês perfeito de quem foi alfabetizado em duas línguas. Eu tinha a certeza de que ele não lembraria de mim, mas arrisquei.

- Sou o Luis Albuquerque. Tá lembrado? Estudamos juntos. Faz uns 30 anos…

- Repórter? — perguntou ele, com os olhos vidrados na câmera. Achei melhor ser sincero.

- É, já faz algum tempo. Nunca mais tive notícias tuas. Será que podemos conversar? — que merda era aquela que eu estava falando pro cara? Não sabia o que dizer. O olhar vidrado dele mantinha-se fixo na câmera.

- Preciso comprar heroína. Me arruma algum dinheiro que eu falo com você.

Achei melhor não financiar o vício. Apesar de eu ter os meus. Bebia umas 10 xícaras de café durante o serviço, fumava um maço de cigarros por dia. Sempre gostei de uísque também, mas só à noite, quando eu chegava em casa. Contudo, achei que eram coisas distintas. Eu não iria pagar pra ele falar. Não era uma questão de ética profissional, veja bem. Já paguei pra muita gente falar. Mas não era o caso. Era algo pessoal.

- Posso te pagar um café. Só queria saber o que você anda fazendo da vida…

Ele sorriu. Faltavam-lhe alguns dentes. Achei irónico. O cara perde os dentes, mas não perdera a franqueza.

- Faço uns bicos pra sustentar o vício. Você sabe, ajudo os comerciantes à transportar encomendas. Esse tipo de coisa. Na rua onde eu costumo dormir, tem uma loja de peças de carro. Eu limpo os materiais lá, por algum trocado.

- E a família? — perguntei. Afinal, eu conhecera seus pais. Frequentara sua casa, na juventude. Inclusive, se bem me lembro, foi lá que experimentei maconha a primeira vez. Mas isso é uma outra estória. Foi uma pergunta retórica, algo quase-natural. Mas percebi que não deveria ter perguntado aquilo. A expressão sorridente-banguela transformou-se. Cadu ficou sério.

- Disso não quero saber. Aliás, você tá atrapalhando meu trabalho. Vai ter que pagar minha hora!

Mais uma vez, neguei. Disse que só queria saber a sua história.

- Histórias pra contar, eu tenho muitas. Mas preciso de dinheiro. — disse ele, antes de sumir na multidão.

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