A Esquerda no Século XXI

Pedro W. Gois
Realpolitik Madeira
7 min readAug 16, 2019

Que o representativismo parlamentar na democracia liberal burguesa está podre, todos sabem. Pelo menos, todos aqueles que, despidos de utopias ou ideologias, tem a capacidade analítica e de discernimento dos fatos. Aliás, os acontecimentos nestas duas primeiras décadas do século XXI provam-no: (1) a consolidação, como fenómeno sociológico, da chamada ‘crise de representação’ que afeta não só os partidos políticos mas sindicatos, organizações trabalhistas e movimentos sociais. A representatividade, enquanto pilar fundamental da democracia liberal burguesa, dá claros sinais de desgaste como modelo operacional. Se a participação popular nos processos de tomada de decisão é um fenómeno político ascendente há, pelo menos, dois séculos, apenas nos últimos vinte anos é que esse anseio popular por participar da Política, enquanto relações de Poder, cristaliza-se em outros campos da sociedade. O participativismo político, aos olhos dos sociólogos, ganhou uma nova roupagem: chama-se ‘crise de representação’.

(2) O fracasso do parlamentarismo, enquanto característica organizativa de um modelo de governação, tem origem exatamente na representatividade como modus operandi e gera consequências em todo o espectro político — à direita, com o fracasso do neoliberalismo, há um esfacelamento mundial dos partidos liberais, sociais-liberais e democráticos-liberais, dando espaço a uma direita conservadora e iliberal (e porque não autoritária?) que nega a globalização e a própria liberalidade do mercado. À esquerda, os partidos precisaram ‘disputar espaço’ dentro do parlamentarismo, ou seja, precisaram domesticar o discurso revolucionário, colocá-lo em uma gaveta e produzir pautas sociais-democratas, além de abraçar o ambientalismo como principal programa anticapitalista e de canalizar esforços em pautas identitárias como estruturantes programáticas. Em suma, a Esquerda parlamentarista vem fazendo o papel da direita liberal que fracassou: o de administrar a miséria e fazer vista grossa quanto à exploração.

(3) E a própria crise de 2008 que, não sendo conjuntural, equipara-se a crise de 1870, uma crise de superprodução gerada pelos fartos recursos e matérias-primas fruto do neocolonialismo e a falta de mercado consumidor, devido as parcas condições e remunerações laborais à época, que estendeu-se até a I Guerra Mundial, em 1914; e a crise de 1929, uma crise de superprodução gerada pelo desenvolvimento tecnológico na I Guerra Mundial e a recuperação produtiva europeia que deixou os estadunidenses sem uma fatia importante do seu mercado consumidor, exatamente a população europeia que, na década anterior, pela destruição gerada pela I Guerra Mundial, consumia largamente os produtos estadunidenses, e que estendeu-se até a II Guerra Mundial, em 1938.

Não sendo, portanto, conjuntural, a crise de 2008 é sistémica. Isso é, tal como as crises de 1870 e 1929 foram rupturas com o modelo de produção e distribuição da riqueza vigentes até então, a crise de 2008 assim o está sendo. Repare: até 1870, não havia nenhum direito trabalhista e os rendimentos da classe operária eram irrisórios. A produção, até essa data, não era em larga escala, ou seja, o modelo produtivo e distributivo não era de massas. Era de elites: era a burguesia vendendo para a própria burguesia. Mas, se o neocolonialismo inunda os centros de transformação produtiva europeus com matérias-primas abundantes e, praticamente, sem valor comercial, proveniente da África (maioritariamente, mas também Ásia e América Latina), existe uma transformação na produção. Produz-se mais, produz-se para as massas. Mas as massas, os operários, não tinham capacidade financeira para consumir aquilo que produzem, enquanto mão-de-obra alienada. Dai a origem da crise, uma crise sistémica, que mudou paradigmas na produtividade e na distribuição da riqueza. Seria a passagem de um capitalismo monopolista para um capitalismo imperialista. Tal como a crise de 1929, já no período entreguerras, que é uma crise ocasionada pelo ressurgimento das burguesias nacionais europeias, ou seja, pela recuperação da capacidade produtiva das potências imperialistas europeias face ao abalo sofrida na I Guerra. Podemos concluir que a crise de 1929 foi importante, enquanto fator impulsionador do próprio capitalismo imperialista, para discriminar a necessidade de consolidar um mercado consumidor interno, gerando, assim, uma classe média consumidora que, simultaneamente ao aumento de seus rendimentos, investe em educação, qualificando a mão-de-obra para a produção especializada. Nesse sentido, não é de estranhar que, a partir da crise de 1929 e com a eclosão da II Guerra Mundial, o capitalismo imperialista entra em um novo ciclo: disputando a hegemonia geopolítica e tecnológica com a União Soviética; e proporcionando — pelo menos, aos países centrais da Europa Ocidental e da América do Norte — um período de ascensão da classe média que perdurou quase 30 anos. São as décadas em que decorrem fenómenos sócio-económicos como o ‘baby-boom’ estadunidense e o surgimento do ‘Estado de Bem-Estar Social’ europeu.

Em 2008, diferentemente das duas crises sistémicas anteriores, o processo não foi ocasionado pela superprodução. Ao contrário. Se, ao longo do desenvolvimento do capitalismo, em sua etapa industrial, as crises deram-se pelo avanço da capacidade produtiva sem, necessariamente, aumentar a capacidade de consumo do trabalhador, incrementando a sua qualidade de vida, desta vez a crise é gerada pela especulação e pelo crédito. Para compreender a guinada de um capitalismo produtivo para um capitalismo especulativo, portanto financeiro, é necessário regressar ao final da década de 1970, com a implementação do neo-liberalismo de Tatcher e Reagan. Com os primeiros sinais do esgotamento do modelo de ‘bem-estar social’ do pós-guerra, as potencias imperialistas iniciam o processo de financeirização do capitalismo através do fenómeno conhecido como ‘neo-liberalismo’ que, na realidade, mais assemelha-se à um liberalismo neo-colonialista.

A quebra, portanto, de um modelo neo-liberal não é somente fruto da conjuntura mundial mas, principalmente, reflexo de uma alteração estrutural, sistémica, do próprio capitalismo imperialista. Representa a ruptura, definitiva, com os direitos trabalhistas. Quando somado à própria crise de representação, como apontado inicialmente neste artigo, esse avanço na desconstrução dos direitos laborais garante a ampliação das taxas de lucro dos capitalistas através do incremento tecnológico como ferramenta de consumo e da desvinculação trabalhista entre proprietário do meio de produção e trabalhador que aliena sua mão-de-obra. Origina, assim, um processo que encerra com a lógica do trabalho como produtor de valor. Nessa nova perspectiva que o capitalismo pós-crise apresenta, o que cria valor na produção é a tecnologia, é o avanço tecnológico das redes que interligam os usuários/consumidores e que permitem a negociação de informações e de dados dos próprios usuários/consumidores, transformando-os em produto.

A grande modificação estrutural que o período pós-crise apresenta, indiscutivelmente, é o fim das relações modernas de exploração entre trabalhador e patrão; e a ruptura da lógica de distinção entre consumidor, mercadoria e mercado. No que tange ao fim das relações modernas de exploração, a nova lógica impetrada passa a ser de autonomismo laboral, como se cada trabalhador fosse — em simultâneo — o proprietário da sua própria micro-empresa, vendendo serviços para quem o contrata (e já não mais sendo um trabalhador cuja mão-de-obra, explorada, gera mais-valia ao proprietário do meio-de-produção); ao mesmo tempo que é, ele mesmo, o trabalhador, uma mercadoria a ser negociada (enquanto informação digital, os seus dados, as suas preferências de consumo na rede tornam-se negociáveis pelas grandes empresas tecnológicas). O resultado disso é a precarização laboral, que pode ser definida em — pelo menos — três grandes grupos: o outsourcing, ou seja, um modelo de terceirização dos trabalhadores que retira vínculos empregatícios da empresa ao qual o serviço é prestado, remetendo as obrigações trabalhistas à uma empresa intermediária; o ‘recibo-verde’ (em Portugal; no Brasil, o conceito recebe o nome de ‘carteira de trabalho verde-e-amarela’, proposto por Bolsonaro), isso é, um modelo de prestação de serviços do trabalhador por conta própria, encerrando a lógica do trabalhador estar empregado por conta de outrem, ou seja, encerra a polarização entre ‘trabalhador-patrão’ ou entre ‘empregado-empregador’; e a ‘uberização’, como fenómeno que precarização do trabalho através da utilização de tecnologia digital para vender o serviço através de uma plataforma que, ao criar valor no processo de conexão entre consumidor que demanda o produto e prestador de serviço que oferta o produto através de um software, torna a própria tecnologia como o verdadeiro meio de produção da riqueza, vinculando a propriedade do meio de produção (e seus custos) ao próprio trabalhador que, não só é espoliado em seus rendimentos ao pagar uma taxa de utilização da plataforma digital, como também precisa arcar com os custos do meio de produção para a prestação do serviço. É a lógica do trabalhador proprietário do meio de produção físico, mas explorado pela industria tecnológica como consumidor de um serviço digital.

Portanto, se a crise de 2008 — sistémica porque altera estruturalmente a forma de produzir e de distribuir a riqueza — representa o fracasso do neo-liberalismo imperialista na mesma medida que a ‘crise de representação’ — intrínseca à democracia liberal burguesa porque é na representatividade que a burguesia escora suas falsas premissas de liberdade e de democracia — representa o fracasso do parlamentarismo burguês, a questão que a Esquerda deve começar a colocar-se não é, somente, enquanto classe, mas enquanto sociedade: haverá socialização dos meios de produção sem haver, antes, a socialização do Poder?

Em outras palavras: existe revolução socialista que não passe, obrigatoriamente, pela participação popular no processo de tomada de decisão? E tenho dito que, se não for esta a principal questão da Esquerda, no século XXI, tenham fé, camaradas: estamos fazendo algo de errado desde o século XIX.

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