A Teoria Monetária Moderna é um mito. E está, conceitualmente, errada

Pedro W. Gois
Realpolitik Madeira
20 min readMar 27, 2019

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Atualmente, existe um amplo debate acerca do sistema monetário internacional, o seu funcionamento, a sua eficiência e o seu impacto global. Em um primeiro momento, originado pela Crise Económica Mundial de 2007 e 2008, que colocou todo o sistema monetário em foco e, em um segundo momento, a ascensão das criptomoedas — responsável por colocar em xeque não só o funcionamento centralizado deste sistema monetário mas, principalmente, questionar a sua eficiência. O cenário de recuperação económica que desenhou-se na última década, portanto, desde 2009 até o presente ano, foi responsável por fazer emergir uma corrente macroeconómica auto-entitulada ‘Modern Monetary Theory’ (MMT) ou “Teoria Monetária Moderna”, como vem sendo traduzido em português.

Primeiramente, é preciso compreender conceitualmente o termo ‘Modern Monetary Theory’. Apesar de surgir com força na última década, a Teoria Monetária Moderna descende, diretamente, dos escritos de Abba Lerner sobre finanças funcionais nos anos 1940, que previa a centralização sobre a política fiscal com o objetivo do pleno emprego e a utilização das taxas de imposto para moderar a demanda agregada, controlando a inflação.

Cabem, aqui, duas críticas. A primeira delas é ao próprio termo “Teoria Monetária Moderna”, à medida que os autores que propuseram a tese original, pretendiam compreender o funcionamento do sistema monetário atual. Portanto, o sistema monetário que a teoria visa compreender é o sistema monetário contemporâneo (onde não existe lastro monetário para a emissão de moeda). E não moderno. O sistema monetário contemporâneo data de 1971 quando, sob a administração do Presidente Richard Nixon, se suspendeu a convertibilidade do dólar em ouro. Naquele momento, o sistema de taxas de câmbio fixas — pelo qual todos os países haviam acordado fixar as suas próprias divisas em relação ao dólar (USD), que por sua vez a fixava em relação ao padrão ouro — foi abandonado. Desde então estamos a viver no que se chama um sistema monetário fiduciário. É a este sistema monetário fiduciário que a teoria propõe-se à estudar. Alias, o sistema monetário ‘moderno’ (onde existe lastro monetário para toda e qualquer moeda emitida, sendo equivalente à uma determinada quantidade de ouro), já foi perfeitamente destrinchado e compreendido com a Teoria Quantitativa da Moeda, elaborada e publicada no início do século XX, e tinha como objetivo compreender o sistema de Bretton Woods, como ficou conhecido o sistema de taxa de cambio fixa que prevaleceu depois da II Guerra Mundial até 1971, quando os governos tinham restrições de receitas, porque o banco central podia permitir uma certa quantidade de dinheiro na economia de acordo com a posse de ouro e o valor da moeda.

O termo conceitualmente correto para explicar aquilo que é suposto ser descrito pelos autores seria ‘Teoria Monetária Contemporânea’. E é, neste ponto, em que reside a segunda crítica: a Teoria Monetária Moderna limita-se a tentar descrever o sistema monetário em que vivem a maioria dos países de economia plenamente desenvolvida, no mundo, desde 1971. Também chamado de sistema fiduciário. Atualmente, existe uma euforia — principalmente, em economistas mais ligados à esquerda — em relação à Teoria Monetária Moderna porque acredita-se que essa mesma teoria, de alguma maneira, prescreve um novo regime ideal que haveria de estabelecer-se para aumentar a igualdade económica dos cidadãos.

Isso faz com que discursos progressistas — como de Alexandria Ocasio-Cortez, congressista estadunidense e pré-candidata à eleição presidencial de 2020, contra Donald Trump — muitas vezes incluam a Teoria Monetária Moderna como uma espécie de arcabouço teórico-económico capaz de comprovar a capacidade de ampliação dos gastos públicos sem preocupar-se com défices orçamentais. Uma espécie de paraíso das políticas públicas para os ‘socialistas Millenium’, como vem sendo chamada a Geração Y (nascidos entre 1990 e 2000), nos Estados Unidos da América. Contudo, vale lembrar — e resguardando o arroubo eufórico — que, diferentemente do comunismo idealizado por Marx, um regime económico e social prescritivo — doutrina económica, esta, a qual os economistas mais ligados à esquerda estão plenamente familiarizados — , a Teoria Monetária Contemporânea é descritiva e não prescritiva.

Não existe, portanto, pote de ouro no final do arco-íris, como provaremos à seguir. Mas, deixando de lado as questões léxicas — que, apesar de revelarem profundo desconhecimento linguísticos por parte de quem propõe a teoria -, foquemos-nos naquilo que é fundamental: a Teoria Monetária Moderna, em si.

A Teoria Monetária Moderna escora-se em duas premissas: uma delas é falsa — originando diversas teses também falsas e que precisam ser desconstruídas individualmente, o que torna complexo o processo de compreensão à partir daí — e a outra premissa é, em parte, verdadeira. A premissa falsa é que os governos não têm restrições quando se trata de gastar, caso seja necessário aumentar as suas receitas. Ou seja, a Teoria Monetária Moderna afirma que os Estados conseguem auto-financiar-se emitindo mais moeda. Os adeptos dessa teoria propõe que o dinheiro, atualmente, é apenas um número em um computador já que, desde 1971, não existe lastro monetário que dê um valor intrínseco às moedas. Dessa forma, para emitir mais dinheiro sem valor intrínseco, não é necessário grande esforço: basta que o Estado decida emitir mais e mais moeda. Isso quer dizer que não importa qual é o tamanho da dívida pública de um Estado, desde que ele seja capaz de emitir o seu próprio dinheiro. E essa situação só é possível, afirmam os teóricos do Monetarismo Moderno, graças ao sistema fiduciário implementado, à medida que deixa de existir lastro monetário, ou seja, já que a moeda não tem mais valor intrínseco, não tem mais a garantia de equivalência com o ouro, baseando-se, única e exclusivamente, na confiança de quem emite.

É preciso destacar o significado de lastro como sendo um ativo secundário que serve como uma garantia implícita para um ativo principal. Ou seja, o lastro é utilizado para relacionar um ativo inicialmente sem valor (como um pedaço de papel utilizado como título) com um algo que possua um valor explicito e visível (como um bem físico). Isso significa dizer que mesmo já não havendo lastro monetário — isso é, já não existe a garantia que toda moeda equivale a uma quantidade de ouro no banco central do país emissor da moeda -, ainda existe o lastro financeiro. Isso é, mesmo que a moeda, em si, não tenha lastro, ainda existe um lastro que é dado como garantia em um título que permite que ele seja aceito e negociado no mercado pelos investidores. Ou, por exemplo, nos empréstimos inter-bancários, que são lastreados em títulos públicos, permitindo que um banco confie em outro banco para emprestar recursos entre si, já que toda a operação será garantida pelo governo. Significa dizer que, mesmo que cada país tivesse a total liberdade para imprimir mais moeda quando desejar, isto somente seria possível se a produção geral de riquezas do país também aumentar na mesma proporção. Dessa forma, o próprio crescimento económico irá “lastrear” indiretamente a emissão de mais moeda. Se essa condição não for respeitada, a moeda acaba perdendo seu valor e gerando inflação — o que é altamente prejudicial para a economia.

À partir deste ponto, compreendemos porque a primeira premissa é falsa: a narrativa de que o Estado auto-financia-se com a emissão de moeda nacional — já que o custo de produção da moeda é, praticamente, zero — é falsa à medida que não existe auto-financiamento do Estado através de emissão de moeda consoante a necessidade. Até porque os Bancos Centrais — as entidades que emitem a moeda — são independentes dos Governos. O que ocorre é a possibilidade do Estado em buscar financiamento através a emissão de títulos da dívida pública que geram dividendos aos portadores desses títulos através de juros. É claro que o Estado pode emitir livremente estes títulos públicos e, através deles, conseguir uma espécie de ‘auto-financiamento’ mas esses títulos tem um lastro financeiro — significa dizer que o Estado garante o ativo principal que dá valor ao título, em si. Mas isto é completamente diferente de emitir moeda à bel-prazer à medida que a emissão de moeda para fazer face ao défice público iria gerar inflação. Enquanto isso, a emissão de títulos públicos permite ao Estado “auto-financiar-se” sem gerar inflação, à medida que paga juros e precisa garantir um valor real, baseado em ativos financeiros ou imobiliários, para lastrear a emissão de títulos.

E é neste ponto, que a MMT ou ‘Teoria Monetária Moderna’ escora-se em uma falsa premissa: a ideia de que o governo não precise ter limite de gasto para pagar por qualquer recurso real que exista. Isso porque a moeda pode ser infinita mas recurso sempre será escasso.

Vejamos o caso da Venezuela, por exemplo.

É uma nação rica em petróleo e que baseia a sua economia na exportação deste bem. Contudo, o petróleo é uma commodity cujo preço vem caindo no mercado, reduzindo a quantidade de moeda estrangeira que a Venezuela consegue estocar com a exportação do produto. Não conseguindo exportar o seu principal bem, petróleo — que serve como principal motor da economia — ou exportando à um valor baixo, a produtividade do mercado venezuelano cai. Logo, emprega-se pouco e o desemprego aumenta. Contudo, se analisarmos a oferta monetária (quantidade de dinheiro) disponível na Venezuela, em dezembro de 2015, chegamos ao total de quatro trilhões de bolívares. Em novembro de 2017, esse montante já estava em quarenta trilhões de bolívares.

Isso significa dizer que, mesmo sem conseguir estocar dólares devido à baixa de preços na exportação do petróleo, a Venezuela, em menos de dois anos, simplesmente decuplicou (multiplicou por dez) a quantidade de dinheiro disponível na economia. Ou seja, dinheiro, em si, nunca faltou. Mas, se o Governo Venezuelano emite a sua moeda de acordo com a sua necessidade, como o país vive uma hiperinflação galopante? Porque para o regime bolivariano conseguir importar bens e serviços básicos do estrangeiro em um montante acima daquele que era capaz de pagar com suas reservas internacionais, não havia outra solução senão endividar-se em dólares. O bolívar é moeda non grata fora da Venezuela. Afinal, quem é que gostaria de ser pago em uma moeda que nada vale? Portanto, a dívida da Venezuela, por exemplo, passa a ser emitida em dólares.

Mas isso ocasiona uma situação: se a dívida de um governo está denominada em uma divisa que esse governo pode imprimir livremente, então, por definição, ele sempre poderá evitar o calote. Ele sempre poderá imprimir dinheiro para quitar esses títulos. Em termos técnicos, ele sempre poderá hiperinflacionar a moeda para garantir que a dívida continue sendo paga. Só que isso garante apenas que a dívida possa ser paga em termos nominais. O verdadeiro problema é que esse governo, de maneira nenhuma, poderá evitar que ocorra um calote em termos reais, isto é, que a dívida seja paga em uma moeda hiperinflacionada que já não possui nenhum poder de compra. Neste caso, mesmo que o governo pague sua dívida em termos nominais, o calote ocorreu em termos reais. Os credores emprestaram dinheiro ao governo quando a moeda valia alguma coisa e, tempos depois, receberam de volta uma moeda cujo poder de compra é muito menor do que quando emprestaram.

A situação na Venezuela, por exemplo, é impossível de ser compreendida se analisada seguindo a lógica da Teoria Monetária Moderna, porque se o governo Venezuelano — de matriz socialista — gasta muita moeda, endivida-se, mas — ao conseguir emitir a própria moeda — deveria conseguir controlar a inflação e o desemprego. O que não ocorre: o gasto excessivo do governo venezuelano não contribui, em nada para aumentar a produtividade do país Venezuela. Ao contrário, no caso da Venezuela, o grande gasto do Governo aumenta, ainda mais, a inflação.

Regressando, portanto, para a Teoria Monetária Moderna, em si, percebemos que o seu discurso é de que o gasto público é a execução primária num sistema de moeda fiduciário. Cobrar impostos e tomar empréstimos são atos subsequentes. Isso significa dizer que é o Estado que fornece a moeda nacional para o mercado, através do financiamento dos gastos públicos do Governo e da própria máquina estatal. Ou seja, os adeptos da ‘Teoria Monetária Moderna’ acreditam que não podemos obter a moeda enquanto o governo não decidir gastá-la. E, novamente, existe um erro crasso, à medida que enquadra-se na perspectiva de que é necessário dívida pública para emissão de dinheiro, contudo, ignora que parte dessa dívidas pública é dívida externa, ou seja, com entidades financeiras de outras nações. É preciso, portanto, diferenciar dívida interna (ou seja, a dívida dentro do próprio país, que pode ser paga com a moeda emitida pelo Governo) e a dívida externa (que precisará, necessariamente, ser paga em uma moeda estrangeira e necessitará, portanto, de estoque desta mesma moeda estrangeira). Em outras palavras, as relações comerciais com outras nações fazem com que, mesmo que o governo decida não gastar a sua moeda nacional, seja inevitável que alguma moeda circule na economia nacional. De forma realista, em um sistema monetário onde a moeda não tem um valor intrínseco, é impossível não haver nenhuma moeda. Mesmo que não haja moeda nacional disponível, à medida que essa moeda não tem valor real em ouro, outra moeda passará a ter valor de troca, dentro de um sistema fiduciário (ou um sistema de confiança); provavelmente, será a moeda de um país cuja economia inspira confiança ao cidadão detentor da moeda.

Também vale lembrar o funcionamento dos Bancos Centrais. Cada banco comercial no país tem uma conta com o banco central — uma conta de reserva — e estas contas de reserva utilizam-se diariamente para assegurar que os cheques que assinamos possam ser pagos todos os dias. Normalmente, as reservas não beneficiam de juros no Banco Central, de modo que se o volume de reserva excede o que cada banco crê que seja necessário diariamente, o banco encontra-se com um dinheiro não produtivo, morto. Ou seja, não é preciso que o Estado gaste para haver moeda nacional disponível. Os próprios bancos comerciais o garantem, assegurados pelo Banco Central — independentemente do Governo.

Elucidadas todas as questões que pairam acerca da primeira premissa, comprovamos que é uma premissa falsa e que dá origem à uma linha de raciocínio igualmente falseável. Seguimos, portanto, para a segunda premissa, que contém uma meia-verdade.

Essa segunda premissa pressupõe, portanto, que à medida que é o Estado quem emite moeda e injeta-a na economia, através dos gastos públicos, gerando endividamento público, faz-se necessário controlar a inflação. Para isso, o Estado recolhe parte dessa moeda nacional — que ele mesmo teria emitido -, através de impostos. O governo somente cobra impostos sobre o que já gastou. E também só recebe de volta em empréstimos, dinheiro que já tinha previamente gastado, se seguirmos a linha de raciocínio proposta pelo Monetarismo Moderno, que propõe que o gasto público é a execução primária num sistema de moeda fiduciário. Ou seja, o imposto serve para auxiliar o Estado no controle da quantidade de moeda circulante. Isso significa que, toda vez que se paga um imposto federal, o Governo estaria retirando moeda de circulação.

Isso não é, de todo, mentira. Realmente, os impostos são um dos instrumentos económicos eficazes utilizados para controlar a inflação. Contudo, outros dois instrumentos económicos clássicos aplicáveis no controle inflacionário é o corte de gastos do Governo (reduzindo o défice) e aumentar o juros. Se verificarmos, a Teoria Monetária Moderna propõe, exatamente, o oposto: aumentar o gasto público — à medida que, de acordo com a Teoria, é através do endividamento público que ocorre a execução primária do sistema monetário — e reduzir as taxas de juro, idealmente para próximo de zero, mantendo-a, permanentemente, abaixo da taxa de crescimento médio do Produto Interno Bruto do país e garantindo que não haja uma dívida que, crescendo excessivamente, acabe tornando-se incontrolável, levando a alguma consequência desagradável como default, inflação muito elevada ou austeridade forçada.

Contudo este modelo — impostos altos, gastos públicos altos e juros baixos — não garante a eficiência económica do país. Os adeptos da Teoria Monetária Moderna apontam que nações como Estados Unidos da América e Japão, soberanos monetariamente, conseguem seguir o modelo (imposto alto, gasto público alto e juros baixos) e que, mesmo com défice alto, apresentam um nível de desemprego baixo. Esquecem-se, entretanto, que são duas nações com um nível de desenvolvimento tecnológico elevado e grandes exportadores de tecnologia. Mesmo assim, existem alguns pontos de interrogação nessa afirmativa: o Japão sofreu o que chamam de ‘década perdida’, entre 1995 e 2007, com uma queda do PIB nominal de USD 5,33 trilhões para USD 4,36 trilhões, além de uma redução real de 5% dos salários. Houve, em contrapartida, estabilidade dos preços. O controle inflacionário funcionou mas, mesmo assim, o poder de compra da população decresceu por causa da redução do PIB. Já no caso dos Estados Unidos, os juros baixos foram responsáveis pelo boom imobiliário dos anos 2000 que, por sua vez, gerou a crise subprime na segunda metade da década, faliu instituições de crédito e deu origem a Crise Económica Mundial de 2007 e 2008. Será que é um modelo que funciona?

O fato é que, no caso dos Estados Unidos e no Japão, como as taxas de juros são baixas, o Estado endivida-se para otimizar as infra-estruturas e reduzir o custo de produção e escoamento para reduzir o preço final de seu produto no mercado. E assim, conseguir exportá-lo. Ao exportar, essas nações consegue estocar moeda. O estoque de moeda continua sendo fundamental para que o país tenha boa saúde económica: permite pagar os juros das dívidas públicas e garante o funcionamento da máquina pública. Não existe almoço gratuito. No máximo, caso haja juros baixos ou próximos de zero, vale a pena — na perspectiva do Estado — endividar-se para criar ou otimizar infra-estruturas que reduzam os custos e facilitem a escoação da produção nacional. Mas, no final, tudo gira ao redor do desempenho, da produtividade, da inovação e da competitividade das empresas privadas nacionais face ao mercado internacional. O equilíbrio da balança económica — ou seja, exportar mais do que importar para criar estoque de moeda — continua sendo fundamental para analisarmos a saúde económica de um país. E um erro leva ao outro: ao acreditar que o Estado “auto-financia-se” emitindo moeda — e não emitindo títulos públicos, com lastro financeiro e pagando os devidos juros aos portadores -, os defensores da Teoria Monetária Moderna centram, na atividade fiscal, toda a sua atenção no que tange à mecanismos de controle inflacionário.

Percebemos, portanto, que é esta a falha da segunda premissa: O Governo utiliza os impostos para recolher a moeda excedente e evitar inflação. Sim, é verdade. Mas a política fiscal não pode ser somente o único instrumento económico para controlar a inflação. Caso isso ocorra, surgirão outras situações — como a redução do PIB no caso japonês e a consequente queda no poder de compra, apesar da estabilidade dos preços; ou o surgimento de ‘bolhas especulativas’, geradas pelo juros baixo, como no caso estadunidense — que colocarão a saúde económica do país em risco. Invariavelmente. Isso é, se não ocorrer um colapso completo da economia, como no caso venezuelano. Portanto, essa segunda premissa não é falsa, mas é uma meia-verdade, à medida que os impostos (política fiscal) não podem ser o único mecanismo de controle do processo inflacionário.

E, é nesse ponto, que precisamos analisar a Teoria Monetária Moderna, em última instância, por aquilo que ela apresenta, em sua essência: uma fórmula económica que tenta explicar o funcionamento do sistema monetário contemporâneo. Portanto, precisamos deixar as divagações conceituais e teóricas que embasam a crítica sociológica e política, para mergulharmos no conteúdo economicista que irá embasar, de fato, a crítica económica.

Para isso, faz-se necessário compreender o modelo básico de renda-despesa, que está no cerne da macroeconomia introdutória, sustenta o conceito de contas nacionais. Podemos ver esse modelo básico de duas maneiras: da perspectiva da fonte dos gastos; e da perspectiva do uso da renda produzida.

Na perspectiva da fonte dos gastos, temos a renda total nacional (ou o PIB, Produto Interno Bruto) como sendo a soma do gasto em consumo (C ), do investimento privado (I), dos gastos do governo (G) e das exportações líquidas (X — M; ou seja, das exportações menos importações), como pode ser verificado abaixo:

PIB = C + I + G + (X — M)

Já na perspectiva do uso da renda produzida, temos que a renda total nacional (ou o PIB, Produto Interno Bruto) como sendo, em última instância, a soma do que as famílias que consomem (C ), poupam (S), e pagam impostos (T), como pode ser verificado abaixo:

PIB = C + S + T

Logo, se igualarmos essas duas perspectivas do PIB, temos que:

C + S + T = C + I + G + (X — M)

Isso pode ser simplificado cancelando o consumo (C )de ambos os lados da equação e rearranjando os termos (sempre respeitando as regras da álgebra) naquilo que chamamos de visão do “saldo setorial das contas nacionais”.

(I — S) + (G — T) + (X — M) = 0

Ou seja, os três saldos têm de dar soma zero. Os saldos setoriais assim derivados são:

O saldo privado doméstico (I — S)

O défice do governo (G — T)

O saldo nas contas externas (X — M)

Ignorando o saldo das contas externas (exportações menos importações), concluímos que o total de gastos do governo menos o total de receitas tributárias (chamaremos de ‘Défice orçamentário do governo’) é, necessariamente, igual à poupança privada menos o investimento privado (que chamaremos de ‘poupança privada líquida’), como comprovado abaixo:

G — T = S — I

Ou seja, em última instância, a Teoria Monetária Moderna está afirmando que, quanto maior o endividamento do Governo, melhor será para os privados, porque ou as pessoas estão poupando mais ou porque as pessoas estão investindo mais. Na prática, os teóricos do Monetarismo Moderno estão dizendo que o setor privado deve torcer para o governo ter défices orçamentários cada vez maiores, porque isso significa que haverá uma torrente de receitas indo para as mãos do setor privado. Não faz sentido prático nenhum. E, se olharmos no sentido oposto, a Teoria Monetária Moderna propõe que, se o governo reduzir seu défice orçamentário, então a poupança do setor privado irá necessariamente cair. Questiono-me se a Escola Austríaca esteve, este tempo todo, defendendo — involuntariamente — a destruição maciça de capital, sem saber disso…

Sejamos realistas. Não existe fórmula mágica para reformar o sistema monetário. Acreditar que a Teoria Monetária Moderna, de alguma maneira, prescreve um novo regime ideal que estabeleça parâmetros económicos capazes de, ampliando os gastos públicos, incrementar a riqueza dos privados e melhor distribuí-la, é algo completamente descabido de raciocínio lógico. Primeiramente (e como já colocado em foco, no início desta presente obra), porque não é uma teoria prescritiva, à medida que não tem como objetivo de preceituar ou decretar nenhum tipo de idealização. Sem pretensões de idealizar algo, pelo contrário, a Teoria Monetária Moderna é — ou, pelo menos, tenta ser — puramente descritiva, ou seja, propõe-se à compreender e descrever o funcionamento do atual sistema monetário vigente, nas nações economicamente desenvolvidas. Apesar de haver uma linha de raciocínio baseada em uma fórmula económica, as premissas utilizadas — de que ‘O Governo pode emitir o quanto de moeda quiser para fazer face ao seu défice’; e de que ‘O Governo utiliza os impostos para recolher a moeda excedente e evitar inflação’ — para embasar a tese não sustentam a ideia em si e, mesmo que o funcionamento do atual modelo monetário estivesse descrito de forma, tecnicamente falando, perfeita — mesmo assim -, ainda teríamos fatos económicos que comprovam a ineficácia do modelo (Gastos públicos altos, juros baixos e carga tributária elevada) proposto pelo Monetarismo Moderno, tal como no caso dos Estados Unidos da América (onde houve o surgimento de ‘bolhas’ especulativas) ou no caso do Japão (onde, apesar da estabilidade dos preços, houve recuo do PIB e queda no poder de compra do cidadão).

Comparativamente, se ambas as premissas forem aplicadas no contexto de uma economia em desenvolvimento, como no caso da Venezuela, os resultados são ainda mais desastrosos: o descontrole do gastos públicos e o aumento exponencial de moeda circulando no mercado, quando somados à questões comerciais — como a queda do valor do petróleo -, podem levar o mercado nacional à uma completa quebra, com uma hiperinflação, gerando a perda da soberania económica do país. Contudo, vale ressaltar que a Teoria Monetária Moderna não aplica-se, de todo, ao regime venezuelano. Lá, apesar de haver um alto gasto por parte do Governo e uma grande carga fiscal, no sentido de recolher impostos, o Estado venezuelano necessita de manter os juros altos, paga incentivar a negociação de títulos da dívida pública e gerar receita ao Estado.

Também vale referir que o caminho para a boa saúde económica de uma nação precisa combinar diversos fatores. O primeiro deles é ter um Estado com eficiência na prestação de serviços públicos mas com as contas públicas equilibradas. Não é preciso repetir superávit após superávit, ano após ano. Por exemplo, é possível haver défice, desde que haja equilíbrio entre a dívida e o PIB. O fundamental é um Estado que opere no sentido de garantir infra-estrutura necessária para produção, escoamento e exportação; além de qualidade de vida para o cidadão, através de regulação do mercado, garantias trabalhistas e um salário mínimo nacional que garanta o consumo, um modelo de segurança social distributivo e da boa prestação de serviços públicos básicos, como educação, segurança e saúde — mesmo que isso gere algum défice.

Por outro lado, é importante manter uma taxa de juro nominal relativamente baixa, na faixa de 3,5% ou 4% — mas evitando juros nominais muito próximos à zero para não gerar juros reais negativos, que podem ser altamente nocivos para a economia — e garantir uma meta de inflação baixa, próximo de 2% ao ano gerando, dessa forma, um juro real de 1% ou 2%, que incentive o consumo e o investimento privado. A política fiscal precisa levar em conta as disparidades económicas, sendo importante não radicalizar nem para o extremo proposto pela Teoria Monetária Moderna — de que a política fiscal deve centrar-se sobre o objetivo do pleno emprego e utilizar as taxas de imposto para moderar a demanda agregada, se houver possibilidade de inflação — e nem para o extremo proposto pela ortodoxia económica, ou seja, a favor de um orçamento equilibrado anualmente, de preferência garantido por uma emenda constitucional ou lei e que seja, preferencialmente, imutável ao longo do tempo. A verdade é que tal política é fortemente pró-cíclica. Isso exige uma política de austeridade durante as recessões económicas e causa certa limitação no consumo durante os períodos de booms económico.

Podemos dizer que a melhor política fiscal é, sem dúvida, restringir o défice primário estrutural de cada ano para um nível compatível com a sustentabilidade matemática do modelo, levando em conta o valor dívida em relação ao PIB, da taxa de juros sobre a dívida e da taxa de crescimento do PIB. Uma política de equilíbrio estrutural permite o livre funcionamento dos estabilizadores automáticos — como imposto de renda e benefícios de desemprego — , em oposição à noção de imposição de um equilíbrio anual do orçamento. Além disso, permite espaço para políticas anticíclicas discricionárias, sempre mantendo como alvo o défice primário estrutural, na média, ao longo dos ciclos econômicos, ao invés de uma meta ano-a-ano. Um exemplo de nações que operam neste modelo de política fiscal: Chile, Suécia, Alemanha e Suíça.

Por último, quando falamos de desempenho, de inovação e de competitividade das empresas privadas nacionais face ao mercado internacional — fator este fundamental para o equilíbrio da balança económica e, consequentemente, importante indicador da saúde económica da nação -, também é necessário destacar o papel preponderante do Estado, no que tange ao incentivo à produção nacional, de preferência com objetivo de implementar uma política económica de substituição das importações. À medida que o Estado consegue ser eficiente (nem o modelo neoliberal de Estado mínimo, incapaz de responder as demandas sociais; e nem o modelo socialista de um Estado inchado, que mais serve como cabide de emprego para aliados políticos do que com prestação de serviço público, de fato), manter o controle de seus gastos e aliar três fatores — meta da inflação baixa; juro reais baixos mas positivos; e boa política fiscal que opere regulando o défice primário estrutural com políticas económicas anticíclicas — com uma boa política de substituição das importações através do incentivo à industria nacional, o caminho para a boa saúde económica do país está traçado.

É claro que todo progressista — seja no campo político, social, cultural ou económico — vislumbra algo à mais. Mas, na verdade, não existe possibilidade de distribuição de renda ou de aumento da equidade sócio-económica entre a população de uma nação se não existir boa saúde económica no país e a, consequente, confiança do mercado. É preciso ter uma economia eficiente, com crescimento regular, que produza para o mercado interno mas também seja capaz de competir no mercado internacional ao mesmo tempo que é preciso ter um Estado eficiente, que tenha controle das suas despesas e que consiga comprometer-se, na mesma medida, com a qualidade de vida do cidadão e com a otimização das estruturas e dos recursos existentes.

A Teoria Monetária Moderna não propõe nenhuma resposta sólida ou factível. No máximo, limita-se à tentar explicar — de forma deturpada — o funcionamento de um sistema monetário complexo, como é o sistema fiduciário à medida que retira o valor intrínseco da moeda, e que já apresenta claros sinais de desgaste em seu funcionamento, como revelou-nos a Crise Económica Mundial de 2007 e 2008. As criptomoedas, que ampliam a noção fiducial à medida que a confiança na moeda virtual, em si, é o único lastro que, de fato, a garante — diferentemente das moedas nacionais que, mesmo sem lastro monetário, é lastreada financeiramente pelo próprio crescimento do país emissor — , são a grande prova de que a Teoria Monetária Moderna, independentemente de todo o debate ao seu entorno, já está ultrapassada.

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