Os Compromissos que levam ao Governo

Pedro W. Gois
Realpolitik Madeira
5 min readJun 23, 2019
Fotografia: liveblog Diário de Notícias

Que Paulo Alexandre Cafôfo quer ser o próximo Presidente do Governo Regional na Madeira, isso já não é segredo. O segredo está em como Cafôfo pretende chegar lá. Assumindo compromissos, diz o slogan do Partido Socialista. Mas, dadas as recentes declarações de Cafôfo — não necessariamente contraditórias, entre si, mas controversas, sobre o financiamento público da ligação marítima com o continente, quadruplicando o atual gasto de 3 milhões € / ano para 12 milhões € / ano, em uma verdadeira enxurrada de recursos públicos indo para cofres privados do Grupo Sousa; ou quando garantiu, em entrevista à RTP-M, que investiria 75 milhões € para adquirir um hospital privado na região, vindo à público dias depois para esclarecer que, afinal, esses 75 milhões € não são para aquisição de uma unidade hospitalar mas sim para financiamento de consultas e cirurgias na rede privada, reduzindo a lista de espera na rede pública de saúde regional — nós questionamos:

Afinal, Paulo Cafôfo e o Partido Socialista estão assumindo compromissos com quem?

A proposta de ampliar o gasto público financiando a atividade empresarial do Grupo Sousa no que tange ao transporte marítimo de ligação entre a Região Autónoma da Madeira e o continente, não é um compromisso com a população. E não o é porque não atende a demanda da população por transporte público de qualidade, a preços acessíveis e com a periodicidade necessária para atender os anseios populares. Mas é um compromisso para com os interesses privados do Grupo Sousa que vem a sua taxa de lucro multiplicar-se por quatro, saltando de 3 para 12 milhões € por ano, para a prestação de um serviço que deveria ser público, se fosse respeitada a Constituição e o houvesse o cumprimento do direito à continuidade territorial, que precisa e deve ser exercido por cada madeirense e garantida pelo Poder público de forma ampla.

Se encararmos da perspectiva da saúde pública, o compromisso de Cafôfo também não parece ser com a população. Indicar que os 75 milhões € investidos, à priori, seriam destinados à comprar uma unidade hospitalar já em funcionamento no Funchal suscita algum estranhamento. Primeiro porque o mais recente hospital privado na Madeira custou entre 42 e 45 milhões €. Logo, questionamos: porque o valor apontado é cerca de 60% mais caro do que o custo de construção? Não seria uma forma de direcionar verbas públicas para o cofre de privados? A solução mais correta, a expropriação da unidade hospitalar — que deve servir as necessidades relativas à saúde pública, antes de qualquer interesse económico — sequer foi aventada pelo candidato socialista. Se Paulo Cafôfo reconhece a ineficiência do sistema regional de saúde, identificando o problema corretamente como sendo a falta de leitos, dispondo-se — inclusive — a transformar o decrépito Hospital dos Marmeleiros em um lar, solucionando a questão das altas hospitalares ‘problemáticas’ que atingem, sobretudo, os idosos de famílias mais pobres, porque não engendra uma política pública que equacione o problema?

Ainda que o Estado adquirisse um hospital privado, com cifras superiores ao custo do próprio hospital, indicasse um compromisso com as taxas de lucro dos capitalistas que mercantilizam a saúde pública, Paulo Cafôfo conseguiu a proeza de piorar a sua situação. Afinal, os 75 milhões € não eram para AQUISIÇÃO do hospital — o que seria discutível pelos valores mas seria compreensível (e até defensável) em uma perspectiva mais ampla de estatização de serviços públicos essenciais — mas sim para a aquisição de SERVIÇOS na rede privada. Ou seja, Cafôfo reconhece que o sistema público é ineficaz. Como solução, propõe-se a financiar o setor privado. Absurdo ou insanidade?

Cafôfo e o Partido Socialista não tem, na população, o cerne da sua campanha. Não é uma campanha de massas, não dialoga com sindicatos e nem com outros partidos. É uma campanha hermeticamente fechada, voltada para um projeto de Poder que — similar ao projeto de Poder do PPD/PSD — visa a estruturação de um partido hegemónico que garanta, primeiramente, a manutenção dos privilégios de uma pequena elite regional.

Não sendo o cerne da campanha, não é — sequer — o cerne do programa. O PS revela-se muito mais preocupado em dialogar com os grandes grupos empresariais na região do que com o povo madeirense. Auscultar a população é fundamental em um processo político de tomada de decisão. Se aquele que propõe-se à sentar na cadeira presidencial, na Quinta Vigia, esquece que sua governação precisa atender ao povo, o que esperar?, além da continuidade de uma lógica tecnocrática de gestão pública, objetivando interesses de uma oligarquia.

O Partido Socialista não concebe o Estado como entidade soberana responsável pela prestação de serviços públicos. Antes, ao contrário, a concepção do PS reduz o Governo Regional à um mero financiador da atividade privada. Na lógica de Cafôfo, se não existe ligação marítima entre Madeira e o continente, cabe ao Estado financiar a atividade empresarial que propõe-se à fazê-la. Na lógica de Cafôfo, se o sistema regional de saúde é ineficaz, cabe ao Estado financiar consultas e cirurgias na rede privada. Repare: na ótica do PS e de seu candidato, o Estado não soluciona problema nenhum. Absolutamente! Reconhece a ficção da ‘mão-livre’ do mercado até mesmo na prestação de serviços públicos básicos, como saúde ou mobilidade nacional. Se existe demanda, porque caberia ao Estado equacionar problemas através do investimento público se pode, facilmente, financiar o setor privado?

Cafôfo e o Partido Socialista firmam sim compromissos. Mas ao tornarem-se defensores da fracassada tese em que o privado deve ser complementar ao público, quando este estiver esgotado na capacidade de resposta, Cafôfo e o PS demonstram que — de um programa socialista e popular — nada tem. O mais curioso é que o Partido Socialista afirma que essa relação promíscua entre privado e público deva respeitar regras inquestionáveis como, por exemplo: ser exemplarmente regulado; publicamente transparentes e garantindo que os interesses do setor privado nunca podem desvitalizar hospitais e centros de saúde.

O problema é que a ‘desvitalização’ do sistema de saúde já ocorreu. E vem ocorrendo, ininterruptamente, após mais de quatro décadas de governo PPD/PSD. Nesse sentido, um programa de governo que compreenda o setor privado como complementar ao serviço de saúde público, não só reconhece o fracasso das políticas de saúde pública, como inverte a lógica socialista de um Estado que exerça o planeamento central e que garanta o cumprimento de serviços públicos básicos, exigindo que a produção esteja alinhada com os interesses da população e não dos empresários.

Fica claro, portanto, que — apesar dos compromissos que o PS promete firmar — não haverá nenhuma grande mudança estrutural na forma como se governa, na Madeira. Porque os compromissos firmados pelo PS e por seu candidato, continuam sendo com os compromissos firmados com as mesmas elites que governam desde 1419.

Fazer política é, sem dúvidas, assumir compromissos. Só precisamos questionar: com quem?

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