Social-Democracia ou Socialismo Democrático

Ou, se preferir: Reforma ou Revolução?

Pedro W. Gois
Realpolitik Madeira
14 min readDec 1, 2019

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Lendo a edição 145º do Militante Socialista, publicação mensal do Partido Operário, em Portugal, deparei-me com um artigo assinado pelo companheiro Thomas Tews na seção “Tribuna Livre”, interessante do ponto de vista bibliográfico mas cuja interpretação despretensiosa ou desatenta dos diferentes autores produz um amálgama de citações para concluir o óbvio: “desde o início do movimento socialista, houve abordagens teóricas e experiências práticas que dizem respeito à construção de um socialismo democrático, uma tarefa difícil, mas não impossível. O que é preciso é ter persistência”. Contudo, Tews parece ignorar — aquilo que, para qualquer marxista, deveria ser o ponto-de-partida para a elaboração de uma análise histórica do socialismo — que a tarefa histórica da classe proletária é, essencialmente, democrática. Não existe “socialismo não-democrático”, tal como é impossível superar o capitalismo através da via democrático-burguesa.

Para além do pleonasmo que é empregar o termo “socialismo democrático”, o autor é extremamente infeliz na escolha da citação marxiana que exprime o conceito de democracia e que parece fixar como pressuposto básico para o desenvolvimento do artigo. Tews escolhe a obra «Crítica da Filosofia do Direito de Hegel», essencialmente filosófica, para citar Marx: «É evidente que todas as formas políticas consideram a democracia como verdade e que, portanto, apenas são verdadeiras quando são democráticas. […] Na democracia, o Estado abstracto deixou de ser o elemento dominante.».

O que Tews parece desconsiderar é que o próprio Marx inicia este mesmo capítulo com a seguinte frase:«Tudo isso é uma tautologia», indicando que — retoricamente — o termo “democracia” assume conceitos que podem ser expressos de formas diferentes, ou seja, é um sistema que explica a si próprio e que não apresenta alternativa de saída à sua própria lógica interna, e desenvolvendo esta brilhante observação à seguir: « Se um povo tem um monarca (…) quer dizer, se ele está organizado como monarquia, então ele, uma vez excluído dessa articulação, é uma massa informe e uma simples representação geral. Se por soberania popular se compreende a forma da República e, mais precisamente, da Democracia, então — em face da ideia desenvolvida, não se pode mais falar de tal representação. De fato, isto é correto, caso se tenha da democracia apenas uma “tal representação” e não uma “ideia desenvolvida”». É curioso notar que, nesta passagem textual, Marx deixa claro que existe uma distinção entre o conceito de “democracia” enquanto princípio filosófico (ao qual Marx chama de “ideia desenvolvida”) e o conceito de “democracia” enquanto prática política (que Marx refere-se como “tal representação”), a qual ele concebe como “República” (res publica, ou “coisa pública”), apropriando-se da acepção platônica de “democracia” enquanto esfera política ou enquanto vida pública — em uma clara distinção da esfera particular, isso é, da vida privada — , como pode ser comprovado quando Marx afirma que «a res publica é, como na Grécia, a questão privada real, o conteúdo real do cidadão (Bürger), e o homem privado é escravo; o Estado político como político é o verdadeiro e único conteúdo de sua vida e de seu querer» para, a seguir, concluir que «A forma de Estado abstrata da democracia é, por isso, a república; porém (…) as esferas particulares não têm a consciência de que seu ser privado coincide com o ser transcendente (…) do Estado político e de que (…) não é outra coisa senão a afirmação de sua própria alienação».

Tews foi infeliz na escolha da citação por diversos motivos. O primeiro é que “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” é, como o próprio título sugere, uma crítica filosófica. Portanto, toda e qualquer definição epistemológica, inclusive de democracia, aparece enquanto conceito filosófico ou, como Marx diz, “ideia desenvolvida”. Em segundo momento, podemos compreender que a “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” é a obra que marca a passagem de um Marx hegeliano, preocupado com questões abstratas da ordem filosófico-metodológicas, através da compreensão de conceitos através do processo dialético, para um Marx mais pragmático nas análises económicas, obstinado em compreender a materialidade histórica do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de Poder expressas com o Capitalismo, enquanto modo de produção. Uma prova disso é que, somente nesta obra, Marx emprega a referência ao proletariado como sendo a «classe social que possa desempenhar o papel de base material do pensamento revolucionário».

Tews confunde, portanto, “democracia” enquanto conceito filosófico e “democracia” enquanto prática política porque não percebe que o termo “democracia” está sendo empregado por Marx, na referida citação bibliográfica, primeiramente como conceito filosófico (ou seja, enquanto forma e conteúdo), quando escreve «democracia como verdade», para — posteriormente — ser referida como prática política (ou seja, somente enquanto forma), quando redige que «todas as formas políticas (…) são verdadeiras quando são democráticas». Por fim, Marx reitera a materialidade da perspectiva analítico-conceitual do termo “democracia” quando afirma que «Na democracia, o Estado abstracto deixou de ser o elemento dominante», porque — tautologicamente — emprega “democracia”, dessa vez como conceito filosófico e, simultaneamente, como prática política já que o Estado abstrato deixa de ser dominante quando ele mesmo, Estado, passa a ter materialidade, através da forma (“República”, coisa pública) e do conteúdo (o próprio povo, como constituição política). É o próprio Marx quem desenvolve esta ideia, indicando que «A democracia é conteúdo e forma. A monarquia deve ser apenas forma, mas ela falsifica o conteúdo. Na monarquia o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de existência, a constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como autodeterminação do povo (…) A constituição aparece como o que ela é, o produto livre do homem; poder-se-ia dizer que, em um certo sentido, isso vale também para a monarquia constitucional, mas a diferença específica da democracia é que, aqui, a constituição em geral é apenas um momento da existência do povo e que a constituição política não forma por si mesma o Estado».

Essa falta de compreensão da dicotomia conceitual de um pressuposto básico, do qual parte o autor para defender a sua tese, irá afetar todo o método de análise daqui em diante. Por exemplo, Tews não compreende que o processo de socialização dos meios de produção não limita-se ao campo económico, ou seja, não limita-se ao controle dos meios de produção material, da riqueza propriamente dita mas, principalmente, que a socialização imponha-se em todos os meios de produção: política, por exemplo, enquanto pólo de produção do Poder, ou seja, a socialização impõe que o operário participe ativamente do processo de tomada de decisão em todas as esferas políticas, desde a fábrica, os conselhos, os sindicatos, os Governos.

A contradição presente no artigo é, exatamente, essa: o autor defende que o processo revolucionário socialista não dê-se através da tomada do Poder pela classe operária — ou seja, pela “ditadura do proletariado” — e propõe que o processo de socialização dos meios de produção dê-se através da representação política da classe operária no parlamentarismo burguês — aquilo que Tews parece compreender como “democracia”. Pressupõe, dessa forma, que mantendo a constituição política do Estado burguês, seria possível avançar na socialização dos meios de produção.

Ora, ou Tews ignora a distinção entre “Revolucionário” (enquanto qualidade de um processo político de ruptura abrupta com a organização estrutural da economia e da sociedade) e “Reformista” (enquanto qualidade de um processo de transformação social mediante a introdução de mudanças graduais nas instituições políticas e económicas); ou Tews desconhece a acepção de “Economia Política”, porque ignora a estreita relação entre o Poder (constituição política) e o Modo de Produção (relação económica), bem como ignora, em última análise, que o Estado burguês é a institucionalização da relação de Poder entre da classe burguesa opressora e da classe operária oprimida, legitimando — dessa forma, ou seja, através do Estado democrático burguês — a apropriação e a exploração, enquanto qualidades indissociáveis do modo de produção capitalista.

Se todo o Estado é a legitimação da classe dominante sobre a classe dominada, concluímos que enquanto houver classe e enquanto houver Estado não pode haver democracia, no sentido pleno do termo. Se existem duas classes antagónicas entre si e se existe um Estado que representa uma dessas classes, a apropriação do termo “democracia”, enquanto elemento fundamental de qualquer Estado, serve aos interesses de quem domina. A democracia do opressor é a ditadura do oprimido. A democracia burguesa é a ditadura burguesa sobre o proletariado. Assim como a democracia socialista é a ditadura do proletariado sobre a burguesia. Negar isso é mais do que subverter toda a produção marxiana mas, fundamentalmente, negar toda a concepção dialético-material da História.

Um bom exemplo da falta de atenção de Tews — ou da despretensiosa releitura histórica ao qual submete-nos com o artigo — é ter destacado que «A Comuna estava formada pelos conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal, nos diversos distritos da cidade. Eram responsáveis e revogáveis em qualquer altura. […] A Comuna dotou a República de uma base de instituições realmente democráticas.» mas ignorado, na esplêndida obra “A Guerra Civil em França”, de Marx e Engels em 1871, o restante do terceiro capítulo, no qual insere-se o seguinte parágrafo: «Mas a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objectivos. O poder centralizado do Estado, com os seus órgãos omnipresentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura — órgãos forjados segundo o plano de uma sistemática e hierárquica divisão de trabalho — tem origem nos dias da monarquia absoluta, ao serviço da classe média nascente como arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo», onde é explícito que a “democracia” que permeou as instituições republicanas, no caso da Comuna, era a democracia da classe operária e que o Estado democrático, assim o é, na perspectiva proletária de legitimação da opressão da classe proletária sobre a classe burguesa — tal como o Estado democrático burguês é a legitimação da opressão burguesa sobre o proletariado.

Ao citar Rosa Luxemburgo, quando a marxista polaco-alemã sublinha a importância «das garantias democráticas mais importantes para uma vida pública sadia e para a actividade das massas trabalhadoras: liberdade de imprensa, de associação e de reunião […]. Somente uma vida fermentando sem entraves se empenha em mil formas novas, improvisa, recebe uma força criadora, corrige ela própria os seus maus passos.», em uma crítica direta à revolução russa de 1917, Tews apega-se à especificidade da forma na revolução russa para analisar a generalidade do conteúdo democrático indissociável do socialismo. É notório que Rosa Luxemburgo, diferentemente de Lênin e Trotsky, tinha uma concepção mais espontaneísta daquilo que deve ser o processo revolucionário, elaborando grande parte da sua produção teórica vincada ao estudo das greves gerais enquanto elemento agregador das massas operárias. Luxemburgo — cuja militância deu-se em uma Alemanha unificada e em pleno processo de industrialização, no início do século XX — encontrou um terreno fértil para as suas preposições acerca da democracia em uma sociedade burguesa cujo modo de produção capitalista já estava muito mais avançado do que na Rússia, proporcionando, assim, maiores contradições no que tange às relações de produção e a co-relação de forças entre as classes antagónicas.

As condições impetradas pela realidade político-económica permite-nos afirmar que a burguesia alemã — enquanto classe dominante cuja gênese nacionalista e imperialista pode ser traçada, historicamente, até Bismarck — exerce um claro domínio ideológico sobre as classes proletárias alemãs, escorados no discurso da unificação germánica. Em uma análise leitura histórico-materialista do capitalismo alemão, não é difícil compreender porque os setores operários apoiaram Bismarck ou Hitler, por exemplo, dado os avanços democrático-burgueses que ambos os autocratas propiciaram, garantindo ao operário alemão — mesmo que explorado pela sua burguesia nacional — um padrão de vida, hábitos de consumos, direitos e salários superiores aos restantes trabalhadores europeus. Bismarck, por exemplo, instituiu o primeiro sistema de previdência social da história contemporânea; Hitler pavimentaria o surto industrial alemão durante a II Guerra, com a criação de grandes conglomerados tecnológico-industriais, que até hoje garantem a hegemonia alemã, em termos de pesquisa, desenvolvimento e produção tecnológica. O trabalhador alemão é, até a presente data, um dos mais bem pagos do mundo — e dos mais despolitizados da Europa, enquanto classe operária — por algum motivo…

A capacidade da burguesia germánica em implementar políticas públicas populistas benéficas às massas operárias e a incapacidade dos próprios socialistas alemães em propor uma teoria revolucionária são a causa única desse defasamento classista-ideológico. O socialismo alemão, espontaneísta, concebe o processo revolucionário à partir da emancipação política da classe operária mas esquece-se que, historicamente, a classe operária não pode emancipar-se sem antes compreender à si mesmo como classe. O primeiro passo para a emancipação do proletariado é o próprio operário ter consciência de classe. Talvez, como havia dito Trotsky, a incapacidade da própria vanguarda revolucionária alemã em propor uma alternativa credível seja o motivo para que o voluntarismo russo, fundamental para o desenvolvimento do processo revolucionário bolchevique, seja amplamente rechaçado por Luxemburgo: porque, descontextualizando a realidade semi-feudal russa, propor uma teoria revolucionária ao trabalhador alemão que passe pelo acirramento de uma lógica antagónica entre as classes é impensável para grande parte dos teóricos socialistas germánicos contemporâneos à Luxemburgo. Talvez seja por essa razão — e nenhuma outra — é que a Alemanha talvez seja a nação que mais gerou teóricos sociais-democratas, reformistas e revisionistas. A lista é extensa e vai de Bernstein à Luxemburgo, sem esquecer de Kautsky (tcheco-austríaco e, portanto, de origem germánica).

A incapacidade das lideranças socialistas alemãs e o populismo conservador da burguesia germánica gera, enquanto resultado prático, um defasamento ideológico no proletariado, afastando-os da acepção de classe e aproximando-os dos extremados posicionamentos nacionalistas. As guerras (1) dos Ducados do Elba, em 1864; (2) a Guerra Austro-Prussiana em 1866; (3) a Guerra Franco-Prussiana, em 1870 e 1871; (4) a I Guerra Mundial, entre 1914 e 1918; (5) e a II Guerra Mundial, entre 1938 e 1945, são comprovações factuais de que — pelo menos durante oitenta anos — a classe operária alemã tinha maiores preocupações com a manutenção dos seus parcos privilégios, enquanto classe proletária de uma nação industrial europeia, e na conservação do Reich germánico do que, propriamente, comprometimento classista e revolucionário. Em outras palavras, o operário alemão esteve — historicamente — mais empenhado em preservar as instituições democrático-burguesas da nação germánica do que combater ao lado do operário francês ou polonês na superação do capitalismo.

De forma contraditória e descontextualizada, Tews sublinha a interdição dos direitos civis na Rússia pós-1917, quando reconhece — no próprio artigo — a temporalidade das medidas dracónicas mas não abstem-se de, em última análise, apontar o estado de permanência dessas políticas públicas em Estaline. À partir da obra “Revolução Traída”, de Leon Trotsky, o autor destaca que «O Partido Bolchevique exerceu, sem dúvida, um monopólio político no primeiro período da era soviética. […] A interdição dos partidos de oposição foi uma medida provisória, ditada pelas necessidades da guerra civil, do bloqueio, da intervenção estrangeira e da fome. E o Partido governante […] tinha uma vida bastante rica. A luta dos grupos e das fracções no seu seio tomava o lugar, numa certa medida, da luta dos partidos. Agora que o socialismo venceu “definitiva e irrevogavelmente”, a formação de fracções no partido é punida com o internamento num campo de concentração, senão com uma bala na nuca. A interdição dos partidos, outrora medida provisória, tornou-se um princípio.» . Ora, ou Tews não compreende o significado de “provisório”, ou então considera que a degenaração burocrática sofrida pela URSS após ascensão do autocrata Estaline é, ela própria, a mais cristalina constituição do socialismo, enquanto forma e conteúdo.

Novamente, é importante a contextualização em relação ao ambiente político-económico e as condições sócio-culturais da nação em questão. O autor do artigo citou Trotsky ao afirmar que “A interdição dos partidos de oposição foi uma medida provisória, ditada pelas necessidades da guerra civil, do bloqueio, da intervenção estrangeira e da fome”, tal como já dizia Marx ao conceber o materialismo histórico enquanto abordagem metodológica que procura, através da materialidade concreta dos fatos, compreender as causas de desenvolvimento social humano por consequência daquilo que próprio humano, enquanto ser social, produz coletivamente para suprir as necessidades da vida. Portanto, analisar a natureza do uma prática política coercitiva e cerceatória que aplica-se enquanto medida provisória, fruto da necessidade imposta pela guerra, como se fosse uma verdade filosófica, um postulado científico ou uma teoria política, parece-me ultrapassar o limite da descontextualização. Assim como foram necessidades imposta pela materialidade dos fatos apresentados pela própria realidade, diversos outras decisões políticas que, mesmo sendo contraditórias com o comunismo enquanto fim último da revolução, são ações práticas necessárias de serem executadas no decurso do próprio processo revolucionário, em si. Exemplos: (1) o Tratado de Brest-Litovski que retirou a Rússia da Primeira Guerra com a perda de vasto território (Finlândia, Estônia, Letônia e Lituânia, Polônia, Bielorrússia e Ucrânia, bem como dos distritos turcos de Ardaham e Kars, e do distrito georgiano de Batumi, antes sob seu domínio. Estes territórios continham um terço da população da Rússia, 50% de sua indústria e 90% de suas minas de carvão. A maior parte desses territórios tornaram-se, na prática, partes do Império Alemão e foram fundamentais para o desenvolvimento industrial do 2º Reich até a revolução alemã, iniciada em 9 de novembro de 1918, que derrubou o regime monárquico e anulou o tratado de Brest-Litovsk. (2) Outro exemplo de decisões políticas contraditórias com o comunismo enquanto concepção filosófica mas necessária enquanto práxis política: a constituição do Exército Vermelho como uma organização hierarquizada e burocrática que apoiava-se no uso de uma disciplina estrita que previa o uso da pena de morte, por exemplo, para atos de covardia e deserção, aplicável tanto aos ex-oficiais do exército imperial quanto aos comunistas. (3) Poderíamos citar, ainda, a adoção do Comunismo de Guerra como estratégia adotada pelos bolcheviques durante a guerra civil posterior a Revolução Russa, em 1917. O Comunismo de Guerra pautava-se na acepção de que todas as forças produtivas do país deveriam se orientar no sentido de combater os inimigos do povo, nomeadamente potências estrangeiras invasoras e o agressor Exército Branco. O próprio termo “comunismo de guerra”, em si mesmo, é de contraditório por ser uma reforma capitalista no sistema económico para estabilizar o país e solidificar o governo bolchevique. O Comunismo de Guerra pode ser entendido como controle total do Estado Operário sobre a economia nacional para permitir que a República Soviética Russa sobrevivesse ao cerco imperialista, à invasão da potências estrangeiras e à Guerra Civil Russa, até a vitória da revolução na Alemanha e no Ocidente, garantindo a futura construção do Comunismo.

Mas a contradição de Tews não encerra-se aqui. Após criticar os “métodos não-democráticos” impostos pela luta de classe na URSS, durante o processo de socialização dos meios de produção, Tews parece exaltar o caráter “verdadeiramente democrático” do projeto socialista de Salvador Allende. Até cita a seguinte frase, atribuída à Allende: «No tocante à votação […]: haverá eleições com garantias para todos, incluindo os nossos adversários. O voto será universal e secreto.» . O mais curioso é que Tews, conhecendo a História do Chile, afirma que “Infelizmente, a via democrática para o socialismo de Allende foi derrubada em 1973 pelo golpe militar, apoiado pelos EUA, e a subsequente ditadura do general Pinochet”. Ou seja, o “projeto verdadeiramente democrático” de Allende, respeitando todas as instituições democrático-burguesas e pressupondo que a socialização dos meios de produção seriam implementados através de reformas estruturais na Economia Política, reconhecidamente boicotado pelas potências imperialistas estrangeiras, atacado pelas próprias Forças Armadas, sob comando do General Pinochet, e fracasso enquanto projeto político é — ou deveria ser, para Tews — um exemplo de democracia.

Tews deixa, apenas, de comunicar o mais importante: Allende caiu porque não era revolucionário, porque respeitou o contrato social imposto pela classe dominante burguesa. Allende caiu porque acreditou, tal como Rosa Luxemburgo, no espontaneísmo das massas operárias. Allende caiu porque, reformista, não acreditou na Revolução, enquanto única forma de tomada do Poder pela classe operária. Enfim, Allende caiu porque era social-democrata, porque fez o jogo da burguesia, porque concorreu em eleições democrático-burguesas e elegeu-se. Porque, em suma, tinha forma socialista mas não tinha conteúdo revolucionário. E, talvez, de verdadeiramente democrático, tivesse muito pouco.

Tews parece seguir pelo mesmo caminho espontaneísta de Luxemburgo para desembocar na fragilidade do reformismo de Allende. Defende a democracia, sem dizer sobre qual democracia está a falar: burguesa ou operária? Se, para Tews, “democracia”é o “governo do povo”, será que ele está a falar de um “povo” alienado enquanto classe ou será que está a falar de uma classe, alienada enquanto “força produtiva”? Porque democracia universal, enquanto forma e conteúdo, só é possível na ausência de Estado (instituição coercitiva) e na ausência de classe. E a ausência de Estado e de classe só é possível no comunismo. Será que é desse socialismo democrático que fala-nos Tews? Ou será mesmo, apenas, social-democracia?

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