Albert Camus — cântico para um jornalista livre

Joatan Berbel
Reberbel
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8 min readApr 12, 2012
Capa da edição do Le Monde Week-End

O texto abaixo foi publicado por Albert Camus, no jornal Soir républicain de Argel, em 1939. No início da Segunda Guerra Mundial o governo francês tinha o domínio sobre a Argélia. Usando como argumento a segurança diante da guerra, os representantes do estado francês passaram a impor uma forte censura sobre o jornal que Camus editava. Este artigo foi censurado e ficou desaparecido até que, recentemente a jornalista Macha Séry, do jornal Le Monde, o redescobriu nos arquivos franceses de ultra-mar, na cidade de Aix-en-Provence. Como vocês poderão ver nas ilustrações, o texto foi publicado na edição Le Monde Week-End, de 17/03/2012.

A tradução abaixo é de minha inteira responsabilidade e foi feita no limite das minhas forças e conhecimento.
Recomendo ver o vídeo a seguir como forma de se contextualizar no universo de Albert Camus, mas se preferir pule o vídeo e boa leitura.

Os quatro mandamentos do jornalista: lucidez, recusa, ironia e obstinação

É difícil atualmente evocar a liberdade de imprensa sem ser taxado de extravagante, acusado de ser um Mata-Hari, de se ver persuadido de ser o sobrinho de Stalin.

Portanto esta liberdade entre as demais não é mais que uma visão da liberdade integral e vai incluir nossa obstinação em defendê-la se admitirmos que não exista modo melhor de realmente ganharmos a guerra.

Claro, toda liberdade tem seus limites. Agora, é necessário que elas sejam livremente reconhecidas. Sobre os obstáculos que são colocados atualmente à liberdade de pensar, nós vamos, mais adiante, dizer tudo os que nós somos capazes de dizer e diremos então, até a exaustão, tudo o que nos será possível dizer. Particularmente, nós não nos surpreenderemos muito com o principio da censura já imposto, como a reprodução dos textos publicados na França e liberados pelos censores metropolitanos sejam vetados ao Soir républicain (o jornal publicado em Argel, onde Albert Camus era redator-chefe naquela época), por exemplo. O fato de que, a este respeito, um jornal dependa do humor ou da competência de um homem demonstra melhor do que qualquer outra coisa o grau de inconsciência a que chegamos.

Um dos bons preceitos de uma filosofia digna de seu nome é de jamais se derramar em lamentações inúteis diante de um estado de coisas que não pode ser evitado. A questão na França não é mais, atualmente, de saber como preservar as liberdades de imprensa. Ela é de buscar como, diante da supressão destas liberdades, um jornalista pode se manter livre. O problema não interessa mais à coletividade. Ela diz respeito ao indivíduo.

E justamente o que será prazeroso de definir aqui, são as condições e os meios pelos quais, em meio à guerra e de suas serventias, a liberdade talvez, não somente seja preservada, mas também manifestada. Estes meios são quatro: a lucidez, a recusa, a ironia e a obstinação. A lucidez supõe a resistência à formação do ódio e ao culto à fatalidade. No universo de nossa experiência, é certo que tudo pode ser evitado. A guerra por si, que é um fenômeno humano, pode ser em todo momento, evitada, ou freada por meios humanos. Basta conhecer a história dos últimos anos da política europeia para estar certo de que a guerra, qualquer delas, tem causas evidentes. Esta visão clara das coisas exclui o ódio cego e o desespero que resulta. Um jornalista livre, em 1939, não se desespera e luta por aquilo que ele crê ser verdadeiro como se sua ação possa influir sobre o curso dos acontecimentos. Ele não vai publicar nada que possa incitar o ódio ou provocar o desespero. Tudo isto está sob seu poder.

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Diante da crescente onda de estupidez, torna-se necessário também manifestar algumas recusas. Todas as restrições do mundo não serão suficientes diante de um espírito próprio para aceitar ser desonesto. Ou, por pouco que conheçamos os mecanismos de informações, é fácil de assegurar a autenticidade de uma notícia. É nisto que um jornalista livre deve concentrar sua atenção. Pois, se ele não pode dizer tudo o que pensa, lhe é possível não dizer o que não pensa, o que ele acredita que seja falso. É desta forma que um jornal livre se avalia, tanto pelo que ele diz quanto pelo que ele não diz. Esta liberdade toda negativa é, de longe, a mais importante de todas, se saibamos mantê-la. Pois ela prepara o advento da verdadeira liberdade. Como consequência, um jornal independente fornece a origem de suas informações, ajuda o público a fazer a avaliação destas informações, repudia a lavagem cerebral da propaganda política, suprime as invectivas, atenua, pelos comentários, a uniformização das informações e, em suma, esculpe a verdade no limite humano das suas forças. Esta medida, por relativa que seja lhe fornece os meios de recusar o que nenhuma força no mundo lhe possa fazer aceitar: servir à mentira.

Chegamos então à ironia. Podemos apresentar, a princípio, que um espírito que tem o gosto e os meios para impor o constrangimento é impermeável à ironia. Não vemos Hitler, para usá-lo como um exemplo entre outros, usar a ironia socrática. Daí que a ironia continua sendo uma arma sem precedentes contra os mais poderosos. Ela completa a recusa no sentido de que ela permite, não só rejeitar o que é falso, mas sempre dizer o que é verdadeiro. Um jornalista livre, em 1939, não nutre a ilusão sobre a inteligência dos que o oprime. Ele é pessimista no que diz respeito ao homem. Uma verdade enunciada num tom dogmático é censurada nove em dez vezes. A mesma verdade dita de forma agradável não será censurada mais de cinco vezes em dez. Esta disposição demonstra, de forma suficiente, as possibilidades da inteligência humana. Ela explica igualmente que os jornais franceses como Le Merle ou Le Canard enchaîné sejam capazes de publicar regularmente os corajosos artigos que conhecemos. Um jornalista livre, em 1939, é, portanto, necessariamente irônico, embora este seja, muitas vezes, a contragosto. Mas a verdade e a liberdade são amadas exigentes uma vez que elas têm poucos amantes.

Esta postura brevemente definida aqui, logicamente não poderá se sustentar eficazmente sem um mínimo de obstinação. A liberdade de expressão enfrenta muitos obstáculos. Não serão os mais complicados que poderão desencorajar uma postura. Pois as ameaças, as suspensões e as acusações geralmente atingem, na França, o efeito contrário ao proposto. Mas temos que concordar que são obstáculos desanimadores: a insistência na idiotice, na vilania organizada, na ignorância agressiva, e nós superamos. Eis o grande obstáculo a ser superado. A obstinação é uma virtude fundamental. Por um paradoxo curioso, mas evidente, ela então se coloca a serviço da objetividade e da tolerância.

Portanto, eis aqui um conjunto de regras para preservar a liberdade do seis da servidão. Eles dirão, e daí?. E daí? Não sejamos apressados. Se apenas cada francês vai querer manter dentro da sua esfera tudo o que ele acredita ser verdadeiro e justo, se ele vai querer ajudar com sua frágil participação para a manutenção da liberdade, resista ao isolamento e torne publica sua vontade, passo a passo esta guerra seria vencida, no sentido profundo da palavra.

Sim, é muitas vezes a contragosto que um espírito livre deste século consegue comunicar sua ironia. Como é divertido este mundo em ebulição? Mas a virtude do homem é confrontar-se com tudo o que lhe é negado. Ninguém quer recomeçar em vinte e cinco anos, a dupla experiência de 1914 e 1939. Portanto, é necessário tentar um novo método que produza a justiça e a generosidade. Mas isso não só se apresenta nos corações libertos e nas mentes clarividentes. Formar estes corações e mentes, de preferência despertá-los, é a tarefa modesta e ambiciosa, que recai sobre o homem independente. Devemos cumpri-la sem esperar recompensa. A história vai registrar, ou não estes esforços.

Mas eles terão sido cumpridos. ♦

Post-Scriptum — Se o leitor teve o interesse e a paciência de ter lido o texto acima, peço mais um pouco do seu tempo para esta história. Lembra que o texto acima foi escrito em 1939, na Argélia, ocupada e dominada pela França e no início da Segunda Guerra Mundial. Seu autor, o escritor Albert Camus, além deste texto produziu uma vasta obra mundialmente conhecida. O que isto tem a ver comigo? Quase nada e tudo ao mesmo tempo.

Três anos antes (1936) de este texto ser publicado, meu pai um imigrante espanhol que veio para o Brasil, com sua família, para trabalhar nas fazendas de café do norte do Paraná, conheceu e se casou com minha mãe, uma das filhas do administrador da fazenda. Deste casamento nasceram 10 filhos, eu sou o número 9, o penúltimo, nascido em julho de 1950.

Na época em que Albert Camus — 1939 — escreveu e publicou o texto acima, em Argel, a comunicação à distância se fazia por meio do telégrafo e as correspondências eram remetidas pelo correio, através dos meios de transportes da época: navio, trem, caminhões, carros, burros ou cavalos; ou a pé, como muitas vezes se fazia para se locomover do lugar onde eu nasci até o próximo vilarejo.
Mas eu nasci depois da Segunda Guerra Mundial, não sofri os temores e constrangimentos que a geração de Albert Camus sofreu. Todavia a decisão do ditador Getúlio Vargas de ficar do lado dos EUA no conflito mundial, criou severas restrições para os imigrantes japoneses, italianos, alemães e espanhóis. Os pais foram proibidos de ensinar a língua e os costumes para seus filhos, meu nome que seria Jonathan (o da Bíblia Anglicana) foi aportuguesado para Joatan, como mandava a lei.

Cresci zona rural do interior do Paraná numa convivência multicultural com vizinhos japoneses, alemães e italianos; estudei até o colegial completo, em Londrina (1966–1972), depois (1972) me desloquei para São Paulo e finalmente me estabeleci no Rio de Janeiro (1973); uma cidade que estava assentada no meu inconsciente desde que, pela primeira vez, vi as imagens da cidade estampadas na revista O Cruzeiro. Meus pais, pentecostais heavymetal, nos mostravam aquelas imagens do carnaval do Rio de Janeiro como exemplo da luxúria, de Sodoma e Gomorra, cujo destino foi o fogo dos céus. Mas aquela pregação toda entrava pelos meus ouvidos e não produzia nenhum efeito, senão o que aumentar o meu desejo pelo pecado que morava nesta cidade ao sul do equador. Durante a minha formação acadêmica no Rio de Janeiro (1976–1992) tive muitos encontros com a obra de Albert Camus. Vi filmes baseados em sua obra. Sempre guardei uma simpatia e identidade com o pensamento expresso nas obras deste escritor “viajante”.

Por isto, quanto vi, recentemente (março/2012) no Jornal El País, a notícia da “redescoberta” deste texto, fiquei logo muito interessado. Inicialmente não consegui ler o texto original, pela internet, então remeti um email para a minha amiga Ana Maria Cortez, professora de línguas latinas da Sorbonne, potiguar exilada há muitos anos em Paris, pedindo que ela comprasse um exemplar do jornal e me mandasse pelo correio. Mis Cortez, como carinhosamente é chamada pelos amigos, imediatamente remeteu o caderno do Le Monde com o texto, comentários etc. Com muita alegria e satisfação, traduzi e publiquei aqui neste meu espaço de conversa com o mundo.
Vejam que interessante: Esta história mostra que o velho ainda é novo: que o velho correio ainda é útil, que um texto escrito em 1939 continua atual, que os jornais impressos registram textos muito interessantes, que a internet é um meio de informação que pode apresentar conteúdos de qualidade e, que bom que estamos todos conectados e mais próximos do que no passado. Camus pregava a ironia, em 1939, eu a pratico a partir do título deste blog: O Ironista Visionário.

PS1. Sou muito grato à querida Ana Maria Cortez (Mis Cortez) por sua gentil colaboração nesta história.

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Joatan Berbel
Reberbel

Pesquisador e produtor de conteúdos em multilinguagem