O Cinema na Obra de Edgar Allan Poe

Joatan Berbel
Reberbel
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7 min readJul 23, 2014
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Pode parecer pretensioso e irreal escrever um texto com este título pois, na verdade, é impossível atribuir ao escritor Edgar Allan Poe (19–01–1809–07–10–1849) a condição de cineasta, dado que ele morreu muito antes da invenção da tecnologia de captação de imagens em movimento, que daria o suporte para o que hoje chamamos de linguagem audiovisual. Entretanto é inegável que a obra de Poe — contos e poemas — já antecipava aspectos de construção que mais tarde marcou a linguagem das narrativas audiovisuais: o recurso da montagem.

O recurso da montagem é um dispositivo (efeito de linguagem) que consiste na justaposição de planos (unidades de imagens em movimento captadas aleatoriamente), formando um conjunto — sequência — de imagens ordenadas que estruturam a narrativa audiovisual. D. W. Griffith, um dos criadores da linguagem audiovisual foi um dos admiradores da literatura de Poe; não se pode negar a influência de sua obra em vários criadores de narrativas audiovisuais, principalmente no tocante à construção de imagens, ao ritmo e ao suspense.

Algumas obras de Poe, destacando O Corvo e a Queda da Casa Usher, foram transformadas em narrativas audiovisuais várias vezes, o que demonstra esta proximidade de que falei antes.

Apresento abaixo este conto exemplar — Silêncio — Uma Fábula, que Poe escreveu seguindo a escritura bíblica — como se cada frase fosse um verso, separado por um “E”, como ponto de ligação (montagem) entre as frases. Na tradução que fiz procurei acentuar a justaposição das frases usando vírgulas no lugar do “e”, mantendo aqui e ali a proposta original.
Espero que gostem.

SILÊNCIO — UMA FÁBULA
Por Edgar Allan Poe

Os picos das montanhas cochilam; vales, penhascos e cavernas silenciam.
- Alcman

Ouça-me,” disse o Diabo, enquanto punha suas mãos sobre minha cabeça. “A região da qual falo é uma região desértica, na África , nas bordas do rio Zaire, e não há sossego lá, nem silêncio.

“As águas do Rio têm uma coloração amarelada e doentia; elas não correm na direção do mar, seguem arquejando, arquejando submissas ao olho vermelho do sol, num estrondoso e convulsivo movimento. Por muitos quilômetros, de cada lado do lamacento leito do rio, se estende um pálido deserto de gigantescos lírios d’água. Eles sussurram uns com os outros nesta solidão, atiram seus longos e lívidos talos contra o céu, balançam para lá e para cá seus enormes botões de flores. Paira um indistinto murmúrio que ressoa entre eles, como a correnteza de uma água subterrânea. E eles sussurram entre si.

“Mas há um limite para o reino deles — o limite da escura, horrível e majestosa floresta. Lá, como as ondas sobre as Ilhas Hébridas, a vegetação rasteira é continuamente agitada. Mas não há nenhum vento em todo o céu. E as altas e primitivas árvores balançam eternamente, ralando umas nas outras com um poderoso e enfurecido barulho. E, de suas altas copas, uma a uma, jorram um vendaval de gotas de orvalho. E, nas raízes, estranhas flores venenosas se espalham num sono perturbado. E, bem no alto, com um ruído sibilante e forte, as nuvens cinzas singram velozmente para o leste, até rolarem, em cascata, sobre a majestosa muralha do horizonte. Mas não há vento por todo o céu. E, nas margens do rio Zaire não há quietude e nem silêncio.

“Era noite e a chuva caiu; e caindo era chuva, mas, tendo caído, era sangue. E eu permaneci no pântano entre os imensos lírios, e a chuva caia sobre a minha cabeça — e os lírios sussurravam uns com os outros numa solene desolação.

“E do nada, a lua surgiu através da fina e tenebrosa bruma, era uma lua avermelhada. Levantei meus olhos na direção de uma imensa rocha cinza estacada na margem do rio, ela estava iluminada pela luz da lua. E a rocha era cinza, tenebrosa e alta — a rocha era cinza. No seu topo frontal havia inscrições esculpidas; eu caminhei pelo charco de lírios d’água até ficar bem perto da margem, a ponto de poder ler as inscrições no topo da rocha. Mas eu não pude decifrá-las. E eu comecei a retornar ao charco, quando a lua brilhou com uma intensa vermelhidão e eu voltei e olhei de novo para o alto da rocha e para as inscrições; e lá estava escrito DESOLAÇÃO.

“E eu olhei para o alto e lá estava um homem sobre o pico da rocha; me escondi entre os lírios para observar o movimento daquele homem. O homem era alto e parecia uma estátua, estava coberto da cabeça aos pés por uma toga da Roma antiga. E os contornos de sua figura eram indistintos — mas sua aparência era a aparência de uma divindade; pelo manto da noite, da névoa, da lua e o orvalho dava para ver as características de seu rosto. Seu rosto era sublime e pensativo, seu olhar, selvagem e atento; e em alguns sulcos de seu queixo percebi os sinais de tristeza, desconfiança, rejeição à humanidade e uma melancolia, além de solidão.

“E o homem sentou no topo da rocha, deixou sua cabeça cair sobre as mãos e entreolhou aquela desolação. Ele olhou para os inquietos arbustos abaixo, para as altas e primevas árvores, bem no alto do céu tormentoso e para a vermelhidão da lua. E eu permaneci junto a uma moita de lírios, observando os gestos daquele homem. E o homem tremeu na solidão — mas a noite se dissipava e ele sentou sobre a rocha.

“E o homem alterou sua atenção, passou a olhar para o lamacento rio Zaire e para as amareladas e doentias águas sobre a legião dos pálidos lírios. E o homem ouviu os sussurros dos lírios, o murmúrio que ressoava dentre eles. E eu permaneci no meu esconderijo e observava os gestos daquele homem. E o homem tremeu na solidão — mas a noite se dissipava e ele sentou sobre a rocha.

“Então eu fui para o lado mais fundo do charco e nadei para longe do deserto de lírios, chamei um hipopótamo que vivia entre o lamaçal e o charco. E o hipopótamo ouviu meu chamado e veio todo imponente até os pés da rocha e lançou um grunhido alto e majestoso sob o luar. E eu permaneci no meu esconderijo e observei os gestos daquele homem. E o homem tremeu na solidão — mas a noite se dissipava e ele sentou sobre a rocha.

“Então eu amaldiçoei os elementos com a maldição do tumulto; uma tempestade terrível se formou no céu, onde antes não havia nenhum vento. E o céu se tornou lívido diante da violenta tempestade — a chuva caía sobre a cabeça do homem — a corrente do rio subia — o rio todo espumoso — os lírios gritavam sobre suas raízes — a floresta tombava sob o vento — o trovão ecoou — o raio caiu — e a rocha estremeceu. E o homem tremeu na solidão — mas a noite se dissipava e ele sentou sobre a rocha.

“Então eu fiquei raivoso e amaldiçoei com a maldição do silêncio do rio, dos lírios, do vento, da floresta, do céu, do trovão e dos sussurros dos lírios. E eles se tornaram malditos e assim ficaram. E a lua parou de subir em direção ao céu — o trovão emudeceu — o relâmpago se apagou — as nuvens ficaram imóveis — as águas baixaram ao nível de antes — as árvores deixaram de balançar — os lírios não mais sussurraram — o murmúrio deles não mais foi ouvido, nem qualquer resquício de som em todo aquele ilimitado deserto. E eu olhei para as inscrições no topo da rocha e elas estavam mudadas e lá estava escrito SILÊNCIO.

“E meus olhos se dirigiram para o semblante do homem, seu semblante estava pálido de terror. E, subitamente, ele levantou a cabeça de sua mão, ficou em pé sobre a rocha e escutou. Mas nenhuma voz foi ouvida em todo aquele ilimitado deserto e as inscrições sobre a rocha diziam: SILÊNCIO.
E o homem estremeceu, virou o rosto e fugiu para longe, com pressa, por isso nunca mais o vi.”

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Realmente há belos contos no volume dos Magis — nos robustos e melancólicos volumes dos Magis. Então, eu digo, são gloriosas histórias do Céu, da Terra, do poderoso Mar — e do Mago que desregrou o Mar, a Terra e o sublime Céu. Havia folclore demais nas falas das Sibilas; e coisas e mais coisas sagradas foram ouvidas dos antigos através das escuras folhas que tremulavam nos arredores de Dodona — mas, como Allah vive, esta fábula que o demônio me contou quando ele se sentou ao meu lado na sombra do túmulo, eu garanto ser a mais maravilhosa de todas! E quando o Demônio chegou ao final de sua história, ele caiu de costas dentro da cavidade do túmulo e deu uma gargalhada. Eu não podia rir com o demônio, ele me xingou porque eu não conseguia rir. E o lince que sempre habitou o túmulo saiu, deitou-se aos pés do demônio e olhou firme em seu rosto.

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Joatan Berbel
Reberbel

Pesquisador e produtor de conteúdos em multilinguagem