Incoerências

Fabiana Santos
RECONTA
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4 min readJul 13, 2019
Fotografia: Gellinger

Acordei às 5h40, desliguei o alarme do celular e acessei algumas redes sociais na internet, deparei com uma notícia e despertei com o luto de uma mulher que assim como tantas outras carrega uma dor imensurável, que é a perda de um filho. Desanimada deixei o celular de lado, fui arrumar para não perder o horário do ônibus, mas meus pensamentos não paravam de me intrigar.

O caso havia me comovido, na minha cabeça eu repetia; ele ainda era uma criança, estudava, sonhava e era inocente. Ele sabia disso e a mãe também, aliás todos sabiam. Porém de onde veio o projétil que o atingiu não se importou em saber quem era o garoto de pouca idade. De repente vi que eu estava sendo injusta, pois inocente ou não, ninguém deve ser alvo da violência assassina.

Naquele dia, a tristeza me abraçou e se eu colocasse um quilograma de açúcar no meu café ainda continuaria amargo. Mas enquanto me arrumava pensei que meu café era o de menos, pois mais amargas são vidas que carregam a herança de uma dor que ainda escraviza. Saí de casa no horário, logo o ônibus chegou no ponto, subi os degraus do ônibus como se tivesse com uma mochilona nas costas escalando o Pico da Neblina, talvez fosse só peso na consciência mesmo.

Dei um bom dia frio para o cobrador em meio a frieza da cidade, foi recíproco. Passei pela catraca, me acomodei e comecei uma discussão intrapessoal - a dor tem cor? - Não ousei responder, queria fugir e não me prender a pensar, mas num impulso de coragem comecei explorar minha memória. Lembrei que a maioria das vítimas de homicídios no Brasil são jovens negros, como asseguravam dados oficiais da segurança pública nos noticiários.

Também recordei que dois terços dos encarcerados no sistema prisional brasileiro são negros. Alguns humanos são encarcerados desde a gestação? Também hesitei em responder.

Atenção! Sinal vermelho. Pense.

Do outro lado da janela do ônibus as crianças no semáforo me desestabilizaram mesmo eu estando imóvel aparentemente. Os frágeis comerciantes de bala doce me lembraram da hipocrisia dos “homens de bem” que defendem a vida e a morte. Dizem lutar pelo direito à vida, mas nunca abriram nem o vidro de seus carros para quem já nasceu na sobrevida.

Àqueles que não têm um amparo e não vendem balinhas sabem que sobreviver é difícil, principalmente, quando o estômago dói… Ou, difícil também é explicar para uma criança carente em meio à tanta poluição visual diferenças entre ser e ter. O apelo do outdoor, como também em outros meios é gritante, ignora a péssima distribuição de renda e apenas indica: consuma, consuma, consuma!

Quando a sobrevida se mistura à escravidão do crime os “homens de bem” aparecem convictos da barbárie: “bandido bom é bandido morto”. De um lado querem uma “justiça” assassina, do outro usam as próprias mãos. E, ainda acreditam que redução é solução. Quanta falta de educação. Abismos. Criticam cotistas, mas não sabem o significado de empatia. De novo, a dor tem cor? Hum…

Logo lembrei de outra questão que não martelava apenas em minha cabeça, mas também causava alvoroço nas redes sociais na internet e fora dela. Pensei novamente em gestação. A dor, a cultura machista e a lei encarceram. Na clandestinidade, mulheres correm o risco de se tornarem estatística.

Ainda jogada naquela poltrona azul recordei que as principais vítimas desse descaso são de baixa renda, são negras. Quando parece iniciar uma discussão mais sólida sobre descriminalização muitos “homens de bem” aparecem como “excelentes” argumentadores favoráveis ao direito à vida, o que não inclui a da mulher. É uma perversidade não se sentir dona do próprio corpo para decidir sobre ele.

Os “homens de bem” têm memória? Parecem não lembrar dos brothers que abandonam uma criança ou várias. Esquecem que abandono afetivo custa mais caro do que uma pensãozinha adquirida com muito sacrifício. E com a pensão pode até comprar um cafezinho para ir à escola na esperança da próxima refeição, compra um caderninho, chinelo de dedo e até bala doce. Mas nunca; nem na feira, nem no shopping center ou qualquer outro lugar vi comercializar o afeto de um pai para uma criança.

Estava chegando no final do meu trajeto, puxei a cordinha do ônibus meio desorientada com o emaranhado de pensamentos buscando compreender se a gente vive ou sobrevive. Dei sinal… Desci do ônibus pensando que ser negro/negra, no Brasil, é conviver com dores difíceis de serem superadas e, por isso marginalizam, excluem, silenciam. Cheguei ao meu destino com a certeza que todos os dias eu preciso de mais de uma xícara de coragem para enfrentar todos os medos que sinto da incoerência humana.

Escrito no ano de 2018.

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Fabiana Santos
RECONTA
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Jornalista. Apaixonada por pessoas e suas histórias. Ah! Vivo no sertão da Bahia.