Brutal na Cama

Ninka
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6 min readJan 6, 2021

O sexo casual está crescentemente mais violento. O movimento #MeToo não deveria ter melhorado as coisas?

Hoje em dia, parte significativa dos homens — homens normais, comuns — que eu conheci através de aplicativos de relacionamento tentou, de uma forma ou de outra, introduzir o estrangulamento no sexo, à medida que as coisas entre nós esquentavam e progrediam para a cama. Eu me tornei experiente em retirar suas mãos do meu pescoço todas as vezes em que elas automaticamente se direcionavam para lá. Alguns deles também ensaiavam pequenos e doídos beliscões; enquanto outros apenas diretamente perguntavam sobre o quanto eu gostava de levar tapas na cama. A resposta sempre foi: nem um pouco. Na semana passada, um cara bem jovem disse que ele gostaria de pressionar meu rosto contra uma janela enquanto me penetrava. Eu perguntei, curiosa, se ele realmente achava que do que as mulheres gostam é ter seus rostos pressionados contra o vidro duro durante o sexo. Ele me respondeu: “Muitas gostam, sim”, e completou, após uma breve pausa, “Bem, muitas dizem que gostam”.

Parece que eu, de repente, me tornei alguma espécie de alienígena, um real ponto fora da curva, ao achar esses tipos de rituais de violência durante o ato sexual simplesmente repugnantes. Dor, humilhação, degradação — antes na margem — de repente se tornaram parte comum do encontro sexual no imaginário popular. E não apenas por homens consumidos e apodrecidos pela pornografia, cercando e atacando as mulheres. As mulheres estão, elas mesmas, se tornando significativas participantes ativas nessa nova cultura de sexo doloroso e violento, um sexo de dominador e dominado, um sexo hierárquico. Muitas delas estão dando forma a ele.

Milhões (incluindo a mim) cantaram juntos ao som do último hit da música pop americana “WAP” (Wet Ass Pussy, ou “b*ceta bem molhada”, em tradução livre) da Cardi B e Megan Thee Stallion, que foi lançada em Agosto. Uma das partes mais “leves” da letra vai mais ou menos assim: “Me dê tudo que você tem… bata mesmo.. estacione esse grande caminhão bem nessa pequena garagem… eu não quero cuspir, eu quero engolir, eu quero engasgar”. A maior parte dos críticos aplaudiram “WAP” como um grande triunfo no que diz respeito a uma “sexualidade feminina confiante”. O Los Angeles Times a rotulou de estar representando uma grande “positividade sexual” feminina. Qualquer pessoa que ousasse franzir a testa um pequeno milímetro, eles sugeriam, deveria ser um conservador republicano.

O abraço das mulheres ao sexo violento e inspirado na pornografia não é realmente novidade, mas o processo se acelerou de maneira rápida nos últimos poucos anos. O que me é mais estranho é o tempo em que essa aceleração se deu, que coincidiu em grande parte com o movimento #MeToo.

Depois de Outubro de 2017, quando as revelações sobre os assédios de Harvey Weinstein contra as mulheres de repente liberou um maremoto de raiva popular antes reprimida e de muitas alegações vindas de diversas partes, as mulheres de todo o mundo se tornaram muito mais conscientes e afinadas para notar nuances de poder e hierarquia sexual e o abuso destes por parte dos homens. Comportamentos que mulheres antes ignoravam ou assumiam que poderiam ser aceitáveis antigamente — desde comentários lascivos no ambiente de trabalho à homens se desviando e se fingindo de desentendidos diante de grandes e óbvias negativas sexuais durante o relacionamento ou relação sexual — se tornaram questões de foco e preocupação coletiva. A impressão que se passava em alguns momentos — uma que eu critiquei na época — era a de que homens eram fundamentalmente e intrinsecamente predadores sexuais, cuja brutalidade necessitaria ser constantemente monitorada por mulheres relativamente passivas e vulneráveis.

Assim, o #MeToo lançou uma nova era de preocupação com o consentimento sexual, revisitando e redefinindo a antiga definição de um simples “sim” verbal, ou uma falha em dizer “não”, para uma noção de requerimento de um “consentimento entusiástico”. Quando foi revelado que o ator comediante Aziz Ansari tentou praticar diversos atos sexuais em seu encontro apesar do que a vítima descreveu como um ‘desejo evidente de que ele parasse’, ele se tornou um caso de estudo sobre como o repetido consentimento entusiástico se tornou necessário.

Mas existe uma falha de raciocínio. No sexo pornificado e violento, é esperado que a mulher peça, ou até mesmo implore pelo seu estrangulamento, ou por tapas, ou para que seja engasgada até quase vomitar— quer dizer, o cenário pornográfico inclui em si um tipo de “consentimento entusiástico” como parte da atuação e montagem de cenário. (Mas em privado — ao menos dentro dos relacionamento com os homens com os quais eu me tornei íntima — espaço para um consentimento entusiástico raramente é garantido. Na maior parte das vezes, é mesmo preciso vetar as coisas em alto e bom som.).

Cardi B mesma foi uma participante do #MeToo, e invocou um movimento para acabar com o assédio sexual. De alguma forma, o tal feminismo do #MeToo e o comando “me bata com força… eu quero engasgar…” se tornaram companheiros de quarto plausíveis.

Como foi que isso aconteceu? Um promissor novo tempo se originou em ideias libertadoras e bem vindas sobre o sexo: pela primeira vez, a noção de que o prazer feminino é tão expansivo, real e importante quanto o masculino — talvez até mais. No entanto, em algum momento isso se misturou com uma noção muito mais regressiva e reacionária, a de que a igualdade e liberdade feminina significam adotar os mesmos comportamentos insensíveis, crus e danosos que são mostrados por tantos homens. A igualdade se nivelou por baixo?

A pergunta sobre como essa “igualdade” deve se parecer no âmbito sexual já é uma questão em debate, uma que se intensificou na florescente cultura de relacionamentos de uma só noite e na era de dominação de nossos encontros por aplicativos de relacionamento e sexo. Relatos investigativos sugeriram que o sexo desvinculado de emoções e intimidade cobra um preço de muitas garotas jovens, e que crescentemente as mulheres estão consentindo para atos que elas não realmente querem, porque eles são aprovados e requeridos pela cultura sexual que é centrada no prazer e vontade masculinas.

Mas a cumplicidade feminina nessa nova onda de sexo brutal não é apenas uma tentativa não direcionada de se igualar os homens. Desde 50 Tons de Cinza, o sexo violento começou a ser tingido com um pouco de glamour, associado à Audis, meias-calças e luxuosos vinhos caros e gelados. Sadomasoquismo — chicotes, algemas, cordas, espancamento, engasgamento , “dor prazerosa”— tudo isso foi parcelado e organizado para formar uma imagem glamourizada e vendido como um estilo de vida luxuoso e libertador.

Tapas, dor e estrangulamento pararam então de viver apenas no domínio daquela pornografia mais desviante, eles vazaram para a mídia em geral e começaram a se tornar cada vez mais consumíveis— legais, libertadores, luxuosos, empoderadores… feministas? Para alguns, o ato de algemar ou amarrar alguém é apenas sobre os acessórios sexys e caros. Em Abril, lojas online reportaram um aumento de 83% de procuras por itens do tipo, particularmente algemas e chicotes, se comparado com o ano anterior. O tédio induzido pela quarentena e estresse é uma explicação, mas também é claro que um novo conjunto de normas sexuais se infiltrou enquanto estávamos distraídos.

As feministas já observaram há muito tempo a forma como o mercado canibaliza tudo, desde política a emoções ao sexo. O sexo casual heterossexual contemporâneo, com sua mistura estranha de vigilância política, controle emocional e enfeites pornográficos, se tornou uma combinação desses três — e é vendido de volta a nós dessa forma.

O marqueteamento da frieza emocional e crueza na sexualidade como “feminismo” não é novo. Em A Comercialização da Vida Íntima (2003), a socióloga de Berkeley Arlie Hoschschild notou que os especialistas em relacionamento nos anos 80 e 90 circularam a ideia de que as mulheres deveriam desenvolver um “destacamento emocional”, as permitindo encarar os homens como seres igualmente emocionalmente distanciados, parceiros em uma frieza requerida de parceiros “autoconscientes, auto protetores e balanceados”.

Uma forma de ler essa onda de sexo doloroso, agressivo e hostil é como uma manifestação última desse “destacamento emocional”, e também da enorme influência da mídia e cultura populares inclusive sobre movimentos ideológicos e sociais, que começou a ser embrulhado no final do século 20. Presumivelmente, algumas mulheres também gostam disso. Mas hoje, tudo isso significa que intimidade deve lutar fortemente para se manter “sexy”, enquanto o “sexy” nunca esteve tão distante das noções de saúde sexual, auto conhecimento e intimidade.

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Zoe Strimpel, autora de Seeking Love in Modern Britain: Gender, Dating and the Rise of ‘the Single,’ acadêmica, jornalista e comentadora cultural vivendo em London.

Traduzido livremente por mim ❤ Nina Cenni.
Link para o texto original.
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Ninka
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Cursando PhD em Física. Lutando contra a exploração e violência sexual evidente e inerente à pornografia, prostituição e tráfico humano nas horas vagas.