Café da Manhã ou empoderamento feminino: o que Luísa realmente nos oferece?
Luísa Sonza fez a primeira apresentação ao vivo da música “Café da Manhã” que tem a participação da Ludmilla, durante um show no parque Hopi Hari, em Vinhedo, no interior de São Paulo. Em algum momento do show, acontece o que acabou chamando atenção de muita gente: dois homens lhe tiram a pouca roupa que estava vestindo, deixando-a sozinha, de calcinha e sutiã, sensualizando e se esfregando em uma cama enquanto a voz de Ludmilla toca.
Lembrando que esse texto não é sobre esse show, ou essa cena, ou essa cantora. É sobre a escalada que artistas pop nacionais e internacionais dão na sua própria pornificação e como isso é um produto óbvio da aproximação do pop com o soft porn. Luísa servirá aqui como símbolo um pouco extremado do que temos que dizer.
E é triste a constatação de que é imprescindível se fazer um disclaimer: nós não odiamos a Luísa Sonza, não desejamos seu mal, não invejamos sua bunda. Esse texto é uma crítica a algumas de suas atitudes e precisamos lembrar que nem ela e nem ninguém está, ou deveria estar, insuscetível a críticas. Somos todos humanos, falíveis e, logo, contestáveis.
Com a nossa cultura muito baseada em imagens, dificilmente se tem como escapar do impacto que atitudes como essa causam, principalmente ao público-alvo da artista: meninas jovens e gays.
Luísa não faz isso de hoje. Suas redes sociais praticamente só possuem imagens e vídeos sexualizados. Mesmo nas (poucas) situações em que ela está vestida, suas caras e poses sempre remontam a conteúdos pornográficos. A conteúdos pornográficos sim, não a sexo, porque são coisas diferentes mesmo que insistam em nos dizer que não.
A primeira vez que me dei conta de como a artista era um pontinho fora da curva mesmo dentro da cultura pop foi quando vi pessoas comentando sobre sua roupa no virado do ano de 2021. Numa data que é considerada mais família e restrita, a artista estava vestida com um biquini de crochê se esfregando no sofá da sala em plena ceia.
A partir dali o sinal amarelo ligou e não foi com muita surpresa que vi a apresentação acima representada que vem sendo muito discutida nos últimos dias.
O primeiro ponto que merece ser levantado é a pornificação da cultura pop. E isso não ocorre por causa da Luísa ou com ela, vem bem antes de ela ter se consolidado como artista. À medida que a pornografia mainstream se tornou cada vez mais hardcore, o soft porn se tornou algo dispensável nessa indústria. A consequência disso foi a naturalização do soft porn e sua fagocitose pela cultura pop. Você pode ler mais sobre isso aqui.
Inegável que o que ocorre hoje em qualquer clipe ou show de artistas pops nacionais ou internacionais seria considerado pornografia nos anos 70/80, por exemplo.
É óbvio que dentro desse contexto, qualquer artista que quiser espaço dentro da cultura pop terá que seguir a cartilha anteriormente dada. Isso foi o que ocorreu com a Miley Cyrus que disse abertamente em uma de suas entrevistas que se viu na necessidade de se “pornificar” porque ela era considerada “boring” (entediante) já que nunca ficava desnuda. E depois se viu numa situação estranha já que ao fazer o que queriam, ela foi considerada “slut” (puta).
O que eu quero dizer é que mesmo nesse contexto em que a hipersexualização da artista é necessária, Luísa ainda é um ponto fora da curva. Pessoalmente, não conheço nenhuma outra artista que use de soft porn em todas as suas aparições em público como ela. E é por isso que as presentes críticas são feitas e é por isso que ela está sendo usada como símbolo do que se quer dizer.
O clipe, a apresentação no Hopi Hari e letra de “Café da Manhã” apresentam uma série de questões que não podem ser naturalizadas. Inicia-se aqui com a óbvia fetichização de lésbicas que ocorre desde o momento em que a Ludmilla aparece. O que é algo que realmente me choca já que a Ludmilla como mulher lésbica deveria saber como isso é violento para todas.
Mulheres lésbicas e bissexuais estão sempre entre as categorias de pornografia mais vistas já que o relacionamento entre mulheres lésbicas “padrão” é fetiche masculino. E isso se volta contra as mulheres que se relacionam com mulheres, por óbvio, porque a sua sexualidade é sempre colocada em xeque e invisibilizada. Disso decorre uma série de violências, assédios e até estupros corretivos.
Mas, sigamos: “Se você quiser pode ficar, só que sem machucar/ Nem precisa me perguntar” e “Então pode puxar de lado, continua deitada
Relaxa, mozão, nem precisa levantar”. É estarrecedor que a letra simplesmente romantize uma situação em que milhares de mulheres já foram estupradas, inclusive a que vos fala. Não é pra sair tocando em mulheres dormindo e eu achava que isso era óbvio para todas nós.
(Essa parte do texto agradeço à @feminisa no IG por ter trazido isso de forma tão clara)
De tudo, o mais problemático é a ligação absurdamente equivocada entre Luísa Sonza e um pretenso “empoderamento feminino”. É importante começar aqui lembrando que o patriarcado e sua misoginia são aspectos estruturais e que nenhuma atitude individual o atinge de forma significativa. Apenas ações estruturais são capazes de mudar alguma coisa.
É ilusão vendida pelo liberalismo que ações individuais de mulheres colocadas em contextos hipersexualizados podem trazer algum tipo de benefício coletivo. Ao contrário, isso apenas nos deixarão alienadas e rendidas à ridícula ideia bem interessante aos homens de que nós só seremos efetivamente empoderadas vendendo nossos corpos de alguma forma.
Enquanto Luísa Sonza, uma mulher rica, branca e padrão se sente livre por poder falar sim para todas as situações de pornificação, à grande maioria das mulheres na realidade o NÃO é vedado, ou ignorado. Enquanto o dinheiro de Luísa a blinda de sofrer a maioria das violências decorrentes dessas ações, o mesmo não ocorre com a grande parte das mulheres que a escutam.
Enquanto famosas gravam seus clipes e fazem seus shows e são aplaudidas por toda performance pornográfica, nós é que temos que diariamente lidar com o preço desse equívoco. Somos nós, mulheres reais, que vamos ter que lidar com essa imagem que vendem da mulher sendo um ser sempre sexualmente disponível e objeto de prazer, nunca o sujeito. Somos nós que lidaremos com a violência masculina quando tivermos nosso NÃO ignorado. Somos nós que lidaremos com a hipersexualização de nossos corpos em situações do cotidiano que nos causam constrangimento e abusos. Somos nós, mães, que teremos que explicar para nossa filha adolescente que não é pra se expor na internet, já que a não é que mãe é moralista, a mãe só quer proteger a filha de predadores sexuais.
Luísa não inventou isso. Mas Luísa fortalece e reafirma essa cultura a todo momento. E se para ela isso resulta numa liberdade individual e em ganhos financeiros, para nós resta apenas o lado negativo e violento dessa cultura.
#RecuseaClicar