Consertar as práticas imperfeitas da indústria pornográfica tornaria saudável o consumo de pornografia?

Ninka
Recuse A Clicar
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11 min readSep 4, 2019

Às vezes, nossa sociedade tende a olhar apenas os sintomas de um problema ao invés de examinar suas causas mais profundas.

Por exemplo, se você tivesse um carro velho e quebrado, você resolveria o problema simplesmente o dando mais uma camada de pintura? Provavelmente não. Para realmente consertar o carro, você idealmente focaria em questões mais profundas e específicas que o impedem de funcionar.

Nós vemos uma confusão similar quando se trata de pornografia.

Muitas pessoas acreditam que consertar todas as questões mais visíveis sobre a indústria — como tentar garantir que todos os atores e atrizes estão lá consentidamente; que tudo que aconteça no set seja consensual; que proteção contra DSTs seja usada com frequência; que não haja drogas no set; etc — fará com que todos os problemas relacionados à pornografia desapareçam.

Enquanto existem problemas sérios com a indústria que absolutamente precisam serem debatidos e atacados de forma urgente, como o tráfico sexual e a exploração sexual, esses problemas são meramente sintomas graves de uma doença muito mais profunda. E o problema está na própria natureza da pornografia, e faz parte dela em sua essência.

A pornografia está *diretamente* ligada ao tráfico sexual

Enquanto a pornografia online continua a crescer em popularidade, a demanda por conteúdo já está quebrando todos os recordes. Com o mercado crescendo loucamente, está se tornando cada vez mais e mais difícil — e provavelmente impossível — regular as condições e práticas de estúdios e sets de pornografia pelo globo.

A indústria pornográfica é uma indústria global estimada em $97 bilhões de dólares, de acordo com a professora assistente de sociologia da Universidade Estadual de New Mexico, Kassia Wosick — e o dinheiro vem primeiro quando se trata dessa indústria. O resultado é que o dinheiro é muito mais importante que qualquer tipo de preocupação que se possa ter sobre o bem estar dos consumidores e das pessoas que performam nos vídeos. Leve em conta por um momento a seguinte fala de uma ex-atriz pornô, Anita Cannibal:

“Eu performei por 14 anos até agora na indústria de filmes adultos em muitos países, estados… em todos os lugares. Eu trabalhei para a maioria das companhias, e estava presente na época em que se detectava um caso de HIV por mês dentre atores e atrizes na indústria, em 1998. Sim, eu estava lá, e eu pude ver aquelas atrizes que ninguém sabe sobre — aquelas que ninguém diz que contraiu HIV, que não são parte das estatísticas — saírem pela porta, parando de serem contadas.
É, tem muita coisa sendo encoberta todos os dias. Muitas tragédias. Muitas coisas horríveis”.

A indústria pornô é uma indústria desregulada pra começar, mas as coisas começam a ficar realmente perigosas quando pornografia envolvendo vítimas de tráfico de pessoas é feita e distribuída. Mas como isso se relaciona com o consumidor médio nas poltronas de suas casas?

A verdade é que não há nenhuma maneira de este consumidor saber se o que ele está assistindo foi feito de forma legal ou se todos os envolvidos estavam ali consentidamente, em cada momento da filmagem. E mesmo que se de certa forma tudo foi ‘consentido’, será que houve coerção ou ameaças por traz desse consentimento? Por esse motivo, clicar em um vídeo pornô é uma form de diretamente alimentar a demanda de traficantes sexuais ou produtores de vídeos pornográficos que fazem dinheiro vendendo vídeos de seus escravos ou escravas sexuais, ou atrizes que sofreram coerção, em seus sites pornô. Você, o consumidor, nunca ficará sabendo.

Regulamentar a indústria pode parecer uma forma de proteger a saúde e garantir a segurança das atrizes, e dessa forma fazer com que a pornografia seja segura e aceitável de ser consumida, mas na realidade, é muito mais complicado que isso. Por exemplo, a prática de gravar vídeos de “coisas permitidas ou não” antes das filmagens, e a “entrevista de consentimento” ao final, na verdade faz com que prevaleça a coerção e a mentira sob ameaças sobre o consentimento. (Não acredita? Leia esse artigo). No final, é tudo parte da performance e você nunca saberá o tipo de material que está realmente consumindo.

A pornografia sexualiza a violência

Uma das críticas mais comuns que escutamos na nossa luta antiporn é que as atrizes genuinamente gostam do que estão fazendo, e que, se não fosse assim, elas simplesmente não estariam fazendo pornô. Para essas pessoas, não importa a existência esmagadora de pesquisas e incontáveis relatos pessoas expondo a realidade sombria da indústria pornográfica e do tráfico e/ou exploração sexual que existe prevalentemente dentro dela — muitos ainda compram a fantasia que a própria indústria pornô e seus profissionais de marketing trabalham duro para alimentar.

A verdade é que as atrizes contratadas por essa indústria sofrem um tipo de abuso emocional, mental e sexual que é muito real, mas muitas acabam suportando o sofrimento por anos devido ao necessário ganho monetário. Incontáveis adolescentes são enganadas a entrar para a pornografia através de sedutores contratos “para modelos”, ou pela promessa de dinheiro fácil. A indústria não se importa com elas — para ela, as atrizes são apenas objetos para serem usados e abusados, e depois descartados uma vez que se recusam a filmar cenas mais extremas — ou quando coisas piores acontecem com elas.

E, enquanto isso, as atrizes normalmente não conseguem sair do meio devido ao estigma ao redor delas, ou devido ao trauma que elas sofreram enquanto atuavam na indústria. É um ciclo vicioso, perpetuado pela necessidade de pagar as contas e colocar comida na mesa. E o que é pior é que, enquanto a indústria pornô vai adotando atos sexuais cada vez mais extremos e agressivos e os torna cada vez mais popularizados, as atrizes precisam dizer “sim” para ‘trabalhos’ cada vez mais fisicamente e emocionalmente traumáticos, envolvendo cenas de anal extremo, BDSM, ou cenas “kink”.

Considere isso: há alguns anos atrás, um time de pesquisadores analisou os filmes pornográficos mais populares nas redes — aqueles que eram comprados, alugados e acessados mais frequentemente. [1] Dentre esse grupo, 50 foram aleatoriamente escolhidos e analisados. Das 304 cenas que os filmes continham, 88% continham violência física. Destes, 49% continham agressão verbal. No total, apenas uma cena em cada 10 não continha nenhum tipo de agressão, e uma cena típica tinha em média 12 atos de ataque físico ou verbal. Uma das cenas analisadas conseguiu encaixar 128 atos de agressão.

Uma das mais populares estrelas da indústria pornô falou sobre como o crescente apetite por abuso na pornografia está danificando as novas atrizes, que estão sendo exigidas a participarem de cenas cada vez mais degradantes e extremas para simplesmente conseguirem trabalhar. Uma das ex-atrizes mais pesquisadas do mundo no site pornô mais popular, Lisa Ann, deixou a indústria em 2014 e é uma das poucas mulheres que conseguiu transicionar para a indústria mainstream. Ann está agora falando sobre como ela presenciou o fato de que a indústria está tendendo mais e mais para vídeos mais extremos e mais hardcore.

Falando para o The Guardian, ela contou sobre como as dificuldades que as ‘estrelas pornô’ encontram após conseguirem deixar a indústria de filmes adultos frequentemente se relacionam com a demanda por pornô extremo, e com o crescente abuso de drogas por parte das atrizes:

“Haviam situações no set com as pessoas ao redor em que eu pensava, “essa não é uma situação muito boa. Isso não é seguro. Essa menina está completamente fora de si e não temos certeza do que ela poderá falar quando estiver fora daqui,” ela disse. “Todas aqui são uma bomba relógio, e muito disso está relacionado ao uso de drogas. Muito dessas novas dores vêm dessas meninas novas que precisam gravar essas cenas abusivas, porquê isso realmente te quebra como uma mulher”.

Mas mesmo que essa violência estivesse simplesmente no roteiro — o que não é verdade, a violência no set não é uma fantasia, ela é real — e que todos os envolvidos tivessem realmente e verdadeiramente consentido estarem ali, o conteúdo gravado ainda normalizaria situações que seriam considerados abuso e violência sexual se acontecessem na ‘realidade’.

Muitos dos vídeos pornô até mesmo não violentos retratam uma diferença de poder entre os parceiros, onde os homens estão sob o controle e as mulheres são completamente submissas e obedientes. Consumir esse tipo de material de submissão desumanizante continuamente faz com que a dominância masculina pareça normal e natural e pode montar o palco para uma eventual aceitação de agressões verbais e físicas contra as mulheres em um ambiente social. [2]

E ainda pior, consumo consistente de pornografia pode impactar como um indivíduo percebe o sexo, a violência e a agressão.

A pornografia insiste que a violência é algo sexy e que qualquer pessoa é um parceiro sexual cheio de tesão sempre, mesmo que elas resistam em um primeiro momento. A razão desse sintoma é que as atrizes pornô são frequentemente tradas mal diante e por trás das câmeras e isso é normalizado, e a indústria está saturada com abuso e exploração.

Mesmo que o abuso e a coerção magicamente desaparecessem da indústria instantaneamente, um problema ainda mais profundo ainda existiria e seria alarmante — a pornografia sexualiza e glamouriza a violência e o abuso, e mesmo que fosse tudo fantasia, isso ainda pode ferir a percepção dos consumidores sobre o que é um relacionamento sexual saudável — e é isso o que normalmente acontece com consumidores assíduos. Agora imagine isso acontecendo em um nível social, onde assistir pornô e visto como ‘normal’ ou até mesmo ‘saudável’.

A pornografia deturpa gostos sexuais

Muitos apoiadores da pornografia dizem que gostarem de violência no sexo é uma preferência pessoal, e enquanto não estamos aqui para sermos policiais das vidas sexuais da pessoas, estamos aqui para alertarmos sobre os possíveis e recorrentes danos que o consumo consistente de pornografa e de frequentemente se excitar com esse tipo de conteúdo abusivo.

Pense sobre isso da seguinte forma: as buscas mais populares por vídeos em sites pornô na internet hoje em dia são de situações e cenários que são tão extremos, que eles 1) não são aceitáveis (ou até mesmo legais) na ‘vida real’ — e esperamos que continue assim; 2) não eram nem mesmo aceitáveis há alguns anos atrás na própria pornografia, na época em que ela se resumia há revistas playboy e vídeos VHS. Categorias envolvendo exploração de adolescentes, estupro coletivo, e incesto consistentemente estão no ranking dos gêneros mais populares de conteúdo pornográfico hoje em dia. Que tipo de implicações isso tem sobre a nossa sociedade, e, por consequência, sobre nossa própria vida pessoal?

Ainda mais preocupante do que a disponibilidade quase que imediata desses gêneros violentos, é sua crescente popularidade e demanda dentre os consumidores. O que pode fazer alguém cada vez mais excitado por vídeos envolvendo cenários de estupro, agressão e assédio sexual, e até mesmo coisas como incesto? A resposta está na ciência, e se relaciona com os impactos neurológicos que a pornografia tem no cérebro dos consumidores.

Muitos cientistas e pesquisadores do funcionamento do cérebro agora acreditam que quando o cérebro dos consumidores começam a cortar os níveis de receptores de dopamina — para conseguirem chegar ao mesmo nível de excitação e euforia que costumavam sentir quando começaram a consumir material pornográfico — muitos dos consumidores começam a precisar de uma liberação ainda maior de dopamina. Para consegui-la, eles precisam ver mais pornografia, ver pornografia mais frequentemente, e/ou ver material pornográfico mais extremo e hardcore. [3]Sabe, não é apenas a excitação sexual que aumenta os leveis de dopamina no cérebro. O cérebro também libera essa substância quando se depara com algo novo, chocante ou surpreendente. [4] E é por isso que consumidores consistentes de pornorafia frequentemente se encontram procurando por imagens e vídeos cada vez mais diferentes e extremos — porque eles foram dessensibilizados pelo material que consumiram, e agora seus gostos e desejos estão diferentes. [5] Além disso tudo, agora que eles construíram uma tolerância tão grande ao material pornográfico mais ‘comum’, para se sentirem excitados e sentirem prazer muitos usuários agora precisam combinar a excitação sexual com o sentimento de libertação agressiva. É por isso que tantos dos vídeos de pornografia hardcore estão cheios de imagens de mulheres sendo fisicamente agredidas. Também é o motivo pelo qual tantos consumidores ávidos de pornografia rapidamente se encontram olhando para coisas que costumavam o deixar com nojo ou desconforto, ou que eles costumavam sentir ser moralmente errado. [6]

A pornografia é uma influência tóxica enorme na nossa sociedade, e ela tem o poder de religar os caminhos de excitação neurológicos dos consumidores para que eles queiram conteúdo cada vez mais extremo e ‘questionável’. Ela pode fazer com que os consumidores passem a enxergar seres humanos como objetos de seu prazer, e a aceitar comportamentos que normalmente eles não aceitariam, se não tivessem sido dessensibilizados. A pornografia ensina aos usuários que a violência pode ser sexy e satisfatória, e ela promove a ideia de que “não” significa “talvez”, ou “me convença”.

Nós podemos falar sobre as práticas de negócio da indústria pornográfica o quanto quisermos, mas até que comecemos a falar sobre a aceitação de pornografia pela sociedade e sobre a sua alimentada demanda por sexo violento, nós nunca realmente alcançaremos o cerne da questão.


Texto traduzido livremente por mim ❤ Nina Cenni.
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Link para o texto original.

Citações:
[1] Bridges, A. J., Wosnitzer, R., Scharrer, E., Chyng, S., And Liberman, R. (2010). Aggression And Sexual Behavior In Best Selling Pornography Videos: A Content Analysis Update. Violence Against Women 16, 10: 1065–1085.

[2] Zillmann, D. (2000). Influence Of Unrestrained Access To Erotica On Adolescents’ And Young Adults’ Dispositions Toward Sexuality. Journal Of Adolescent Health 27, 2, 41–44.

[3] Bridges, A. J. (2010). Pornography’s Effect On Interpersonal Relationships. In J. Stoner And D. Hughes (Eds.) The Social Costs Of Pornography: A Collection Of Papers (Pp. 89–110). Princeton, NJ: Witherspoon Institute; Bergner, R. And Bridges, A. (2002). The Significance Of Heavy Pornography Involvement For Romantic Partners: Research And Clinical Implications. Sex And Marital Therapy, 28, 3, 193–206; Zillmann, D. And Bryant, J. (1988). Pornography’s Impact On Sexual Satisfaction, Journal Of Applied Social Psychology, 18, 5, 438–53.

[4] Layden, M. A. (2010). Pornography And Violence: A New Look At The Research. In J. Stoner And D. Hughes (Eds.) The Social Costs Of Pornography: A Collection Of Papers (Pp. 57–68). Princeton, NJ: Witherspoon Institute; Berkel, L. A., Vandiver, B. J., And Bahner, A. D. (2004). Gender Role Attitudes, Religion, And Spirituality As Predictors Of Domestic Violence Attitudes In White College Students. Journal Of College Student Development 45:119–131; Allen, M., Emmers, T., Gebhardt, L., And Giery, M. A. (1995). Exposure To Pornography And Acceptance Of The Rape Myth. Journal Of Communication 45, 1: 5–26.

[5] Layden, M. A. (2010). Pornography And Violence: A New Look At The Research. In J. Stoner And D. Hughes (Eds.) The Social Costs Of Pornography: A Collection Of Papers (Pp. 57–68). Princeton, NJ: Witherspoon Institute; Cline, V. B. (2001). Pornography’s Effect On Adults And Children. New York: Morality In Media; Zillmann, D. (2000). Influence Of Unrestrained Access To Erotica On Adolescents’ And Young Adults’ Dispositions Toward Sexuality. Journal Of Adolescent Health 27, 2: 41–44; NoFap Survey Http://Www.Reddit.Com/R/NoFap/Comments/Updy4/Rnofap_survey_data_complete_datasets/

[6] Angres, D. H. And Bettinardi-Angres, K. (2008). The Disease Of Addiction: Origins, Treatment, And Recovery. Disease-A-Month 54: 696–721; Zillmann, D. (2000). Influence Of Unrestrained Access To Erotica On Adolescents’ And Young Adults’ Dispositions Toward Sexuality. Journal Of Adolescent Health 27, 2: 41–44.

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Ninka
Recuse A Clicar

Cursando PhD em Física. Lutando contra a exploração e violência sexual evidente e inerente à pornografia, prostituição e tráfico humano nas horas vagas.