‘Isso me impediu de fazer sexo por um ano’: por que a Geração Z está dando as costas ao feminismo sex positive*?

Iza Forzani
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12 min readFeb 19, 2022

Esse feminismo defende o direito de mulheres desfrutarem do sexo e deveria libertá-las da culpa ou da vergonha. Mas agora muitas estão questionando se isso não as deixou mais vulneráveis.

Billie Eilish disse recentemente que assistir pornografia desde os 11 anos de idade ‘destruiu’ seu cérebro. Fotografia: Matt Winkelmeyer/Getty Images for Spotify

Lala gosta de pensar em si mesma como uma pessoa que dificilmente se choca. Em sua popular conta no Instagram @lalalaletmeexplain, ela dá conselhos a pessoas anônimas sobre tudo em relação a sexo e a relacionamentos, desde orgasmos até a etiqueta de enviar nudes. A educadora sexual de 40 anos que também é ex-assistente social (Lala é um pseudônimo) não tem vergonha de compartilhar suas próprias experiências em relacionamentos como mulher solteira.

Mas até ela ficou perturbada com uma pergunta recente, de uma mulher com uma filha de sete anos que pegou seu atual parceiro assistindo pornografia sobre “enteada” envolvendo meninas adolescentes. Isso foi uma bandeira vermelha?

Dada a sua formação profissional, a história ligou o sinal vermelho em Lala. “Para mim, você não pode correr esses riscos —esse é o tipo de coisa contra a qual eu luto fortemente contra”, diz ela. Por isso, ela ficou surpresa com alguns comentários em sua conta do Instagram, onde pede a seus 175.000 seguidores que respondam aos dilemas de outras pessoas. “Havia pessoas naquele post dizendo: “O que as pessoas assistem na pornografia não é o que elas fazem na vida real; como você pode ser tão crítica?’”

Exibicionismo leve e divertido no programa Love Island. Fotografia: ITV/Rex/Shutterstock

A ideia de que ninguém deve ser julgado por seus desejos sexuais está no cerne do chamado “feminismo sex positive”, a crença de que a remoção do estigma que historicamente cerca a sexualidade feminina libertará as mulheres para se divertirem sem culpa ou vergonha e ajudarão a eliminar o slut-shaming e a culpabilização das vítimas que muitas vezes impedem que os assédios sexuais contra as mulheres sejam levados a sério. O movimento é conhecido por quebrar tabus em torno de questões como masturbação, menstruação, direitos LGBT e mutilação genital feminina, graças à sua insistência no direito ao prazer sexual que as mulheres têm. Do exibicionismo leve e divertido dos competidores de Love Island ao exuberante hino sex positive de Cardi B e Megan Thee Stallion, Wet Ass Pussy, a ideia de que desfrutar do sexo não é algo do que se envergonhar — pelo menos em teoria, se não sempre na prática — se infiltrou no cotidiano das mulheres jovens.

Mas se o feminismo sex positive defende as mulheres que buscam seus próprios desejos sem se sentirem julgadas, também exige que elas se abstenham de julgar a maneira como outras pessoas fazem sexo — pelo menos entre adultos com consentimento. Agora, alguns estão questionando a quem esse vale-tudo realmente serve e como o consentimento é definido, em uma sociedade onde as mulheres ainda são fortemente condicionadas a agradar os homens.

Em seu livro Block, Delete, Move On, publicado este mês, Lala escreve sobre sua gratidão àquelas que lutaram pelo direito das mulheres de desfrutar do sexo — como e quando quiserem — e sua recusa em ser julgada pelo número de pessoas com as quais dormiu. Mas, embora o suprimento infinito de possíveis conexões fornecidas por aplicativos de namoro tenha sido ótimo para mulheres que querem apenas sexo casual, ela argumenta, isso pode ser uma desvantagem para quem busca relacionamentos de longo prazo. “Desde que o sexo se tornou mais fácil de conseguir”, ela escreve, “o amor tornou-se mais difícil de encontrar”. Através de sua conta no Instagram e da sua coluna sobre relacionamento que ela tem na OK! Magazine, ela ouve regularmente de mulheres que toleram atividades que não gostam na cama por medo de serem rejeitadas por uma outra que esteja disposta— uma história antiga, exceto que essas normas sexuais agora são estabelecidas pela pornografia.

Exuberância… Cardi B e Megan Thee Stallion no vídeo Wet Ass Pussy. Fotografia: YouTube

“A liberação sexual é ótima, mas de certa forma fomos atrás disso e acabamos em um modelo de sexo que foi criado por homens”, diz Lala. “Nós privilegiamos a parte em que falamos: ‘Você pode fazer isso sem julgamento, você não precisa se casar ou se preocupar com gravidezes indesejadas!’ mas não estamos equilibrando isso com a educação sexual ou com o real sentido do que é o sexo — como o sexo deve ser sentido, quando você deve fazê-lo, como você deve fazê-lo?”

Quando Lala fez uma pesquisa com seus seguidores no Instagram recentemente, quase três quartos disseram ter experimentado sexo violento ou doloroso, mas optaram por não reclamar. “É como: ‘Não quero desapontá-lo, não quero ser ruim na cama’. Se você realmente gosta de alguém, mas toda vez que você faz sexo dói e você não quer isso, como você negocia isso quando você tem apenas 18 anos?” Apesar de toda a sua experiência profissional, ela diz que se lembra de ter feito “sexo bem ruim” quando era mais jovem.

Em dezembro, a cantora Billie Eilish, então com 19 anos, declarou que assistir pornografia desde os 11 anos havia “destruído” seu cérebro. Ela disse no programa de rádio de Howard Stern nos EUA que quando começou a assistir, isso a fez sentir como se fosse como “um dos caras”, mas agora ela acha que isso distorceu suas expectativas: “Sabe, as primeiras vezes que eu fiz sexo, eu não estava dizendo não a coisas que não eram boas. E eu não fiz isso porque eu pensei que era por essas coisas que eu deveria me sentir atraída.”

No Twitter, feministas autoproclamadas sex positive a acusaram de ser “anti-escolha”, ou de estigmatizar mulheres que trabalham na pornografia, enquanto a hashtag #BillieEilish mostrava imagens de mulhere com topless nas quais se via a cabeça da cantora grosseiramente photoshopada, e onde os caras se vangloriavam do que gostariam de fazer com ela. Mas Eilish não está sozinha em questionar a forma como as metáforas pornográficas alteraram os relacionamentos cotidianos.

Desvantagens … aplicativos de namoro. Fotografia: Stephen Frost/Alamy

A geração Z é a geração mais sexualmente fluida até agora — apenas 54% de seus membros se definem como exclusivamente atraídos por membros do sexo oposto, em comparação com 81% dos baby boomers — e é sem dúvida a mais aventureira. Mais de um em cada 10 adolescentes afirma ter feito sexo anal aos 18 anos, de acordo com a National Survey of Sexual Attitudes and Lifestyles, que também descobriu que os menores de 24 anos têm quase tanta probabilidade quanto as pessoas de meia-idade de ter mais de 10 parceiros, apesar de ser sexualmente ativo por muito menos anos. Mas a geração com maior probabilidade de ter sua primeira experiência sexual numa tela do celular parece cada vez mais disposta a questionar o que isso significa para a vida dos indivíduos.

Um terço das mulheres britânicas com menos de 40 anos já sofreu com tapas, cuspidas, asfixias ou esganaduras indesejados na cama, de acordo com pesquisa realizada pelo grupo de imprensa chamado We Can’t Consent to This, que faz campanha para limitar o uso da teoria do “sexo violento” pelas defesas em casos de homicídio (essa defesa é usada por homens que mataram suas parceiras, argumenta-se que as mulheres morreram acidentalmente, em atos sexuais consensuais). Essa é uma de uma série de recentes campanhas populares lideradas por mulheres jovens contra formas de agressão sexual habilitadas pela tecnologia, desde o envio não solicitado de “fotos do p*u” até o compartilhamento de fotos íntimas online.

Embora as mulheres que gostam de sexo violento tenham o direito absoluto de fazer sexo sem nenhuma vergonha, argumenta Lala, a normalização da dor na pornografia pode fornecer cobertura para alguns homens abusivos e fazer com que as mulheres se sintam pudicas por recusar atos potencialmente perigosos como asfixia. “Muitos jovens cooptaram o BDSM [escravidão, disciplina ou dominação, sadismo e masoquismo]. Eles não estão em jogos de poder e consentimento. Eles gostam de machucar as mulheres.”

Anna-Louise Adams tinha 20 e poucos anos e estava na universidade em Londres, quando experimentou um punhado de encontros sexuais casuais que se tornaram dramáticos sem aviso prévio.

“Foi um puxão de cabelo bem forte e uma surra — coisas que, suponho, você veja em pornografia e que podem parecer bastante comuns, mas você espera uma conversa antes que isso aconteça”, disse ela ao telefone de Birmingham, onde está concluindo um mestrado em sociologia. Felizmente, completou, ela estava confiante o suficiente para se opor. “Mas eu achei bastante chocante, e isso me impediu de fazer sexo por provavelmente cerca de um ano. Eu tive duas ou três experiências com graus de extremidade diversas e então pensei: ‘qual é o sentido disso?’ ” ela disse. “Eu cheguei às minhas próprias conclusões sobre sexo casual, pelo menos. Eu me sinto muito triste pelo meu eu mais jovem, realmente.”

Agora com 25 anos, e tendo comparado experiências com amigas que tiveram experiências semelhantes, ela não acha mais relevante que os encontros que deram errado tenham sido os casuais. “Eu ouvi sobre muitos relacionamentos sérios onde isso aconteceu e aconteceu inesperadamente.” Falar publicamente para a campanha We Can’t Consent to This, diz ela, também ajudou a canalizar seus sentimentos para algo construtivo.

Alguns podem dizer que o sex positive beneficiou mulheres como Adams, dando-lhes confiança para estabelecer limites na cama e discutir suas experiências abertamente. Mas ela não está convencida. “Não beneficia as mulheres. Mesmo que haja mulheres que se sintam pessoalmente empoderadas, coletivamente isso continua a nos oprimir”, diz ela. “Está tudo bem dizer que podemos fazer sexo agora sem sermos constrangidas e culpadas. Mas não é como se isso estivesse sendo traduzido para a vida real.” A sensação de que a revolução não cumpriu suas promessas idealistas pode estar alimentando a resistência.

Louise Perry, assessora de imprensa de We Can’t Consent to This e autora de The Case Against the Sexual Revolution, que deve ser publicado neste verão, argumenta que um movimento originalmente destinado a libertar as mulheres está sendo sequestrado para servir aos interesses dos homens. Perry, hoje com 29, tinha as mesmas visões liberais em seus 20 e poucos anos como “a maioria dos outros millenials estudantes do ocidente”, sobre questões como pornografia, hook-up culture** ou BDSM, mas começou a questioná-los depois de um período trabalhando em um centro de auxílio a vitimas de estupro.

“Não sou contra a revolução sexual em si — não quero voltar a ter 10 filhos, ou o que quer que me ocorreria sem a pílula”, diz ela. “Mas acho que os beneficiários [do feminismo sex positive] são predominantemente um certo subconjunto de homens.”

O feminismo sex positive nunca foi feito para dizer ‘sim’ a tudo.

O problema não é apenas a pornografia, ela argumenta, mas os aplicativos de namoro inadvertidamente tornam os homens menos responsáveis ​​por comportamentos abusivos. “Conversei com mulheres que saíram com homens que conheceram em aplicativos e que foram agredidas sexualmente, depois descobriram que ele excluiu seu perfil e elas nem sabiam o nome do usuário— esse é o tipo de coisa que realmente serve aos interesses dos homens.”

Embora haja poucas evidências de singletons excluindo aplicativos em massa, a suspensão dos encontros durante a pandemia pode ter levado alguns a repensar o que estão procurando. O aplicativo de relacionamento OKCupid relatou um aumento no número de usuários britânicos que buscam um relacionamento de longo prazo após o bloqueio de 2020, enquanto nos EUA, o relatório anual Singles in America do site Match.com no ano passado descobriu que apenas 11% dos usuários afirmam estar procurando algo encontros casuais, sendo que as características como confiança e maturidade emocional são consideradas mais importantes que a atratividade física. Mesmo que apenas temporariamente, a solidão e a insegurança em relação ao lockdown podem ter tornado mais atraente ser parte de um casal.

Não é anti-sexo… a ativista assexual Yasmin Benoit fala no festival do Orgulho de Praga em 2019. Fotografia: CTK/Alamy

No entanto, a ideia de que o feminismo sex positive está “saindo de moda”, como argumentou a escritora do New York Times Michelle Goldberg, pode parecer um retrocesso para algumas pessoas. Afinal, nunca foi para dizer apenas “sim” a tudo. De fato, alguns ativistas do sex positive assim se definem mesmo não querendo sexo, como é o caso da modelo de lingerie Yasmin Benoit, que se identifica como assexual ou ace— o que significa que ela nunca ou raramente sente atração por outro; ela afirma que não estar pessoalmente interessada em sexo não a torna anti-sexo. E, historicamente, o movimento sex positive está enraizada nos esforços para combater a violência sexual, por meio de protestos como a Marcha das Vadias da década passada, onde mulheres marcharam, despidas até dos sutiãs, para transmitir a mensagem de que não é porque estão vestidas de uma forma ou de outra que elas “estão pedindo” por algo.

De outra forma, para a Geração Z em particular, enquanto o movimento sex positive é frequentemente associada a visões de esquerda liberal ou apoio a direitos trans, a reação contra ela tornou-se associada — nem sempre de forma justa — tanto à mídia de direita quanto a visões críticas de gênero. (O prefácio do livro de Perry é da professora Kathleen Stock, a acadêmica que se demitiu da Universidade de Sussex no ano passado, após protestos contra suas opiniões sobre os direitos trans)

“Acho que estamos à beira de uma verdadeira reação anti-sexo”, diz a ativista e escritora Laurie Penny, autora de Sexual Revolution: Modern Fascism and the Feminist Fightback, que aponta que a desestigmatização do sexo libertou as mulheres para falar sobre o que antes eram assuntos tabus. “Uma cultura em que o sexo é estigmatizado também é aquela em que não podemos falar sobre nenhuma dessas coisas e não acredito que haja algo progressista em uma sociedade que queira controlar ou limitar a sexualidade das mulheres.”

Penny, que usa os pronomes they/them também acha que alguns ataques ao feminismo sex positive — como dizer que a pornografia está além da crítica — são brigas contra espantalhos. “Há uma citação brilhante da [estrela pornô] Stoya, que diz que tentar aprender sobre sexo assistindo pornô é como tentar aprender a dirigir assistindo a vídeos do Monster Truck. A questão é que eu não vejo esse argumento, que você não tem permissão para criticar a pornografia”, diz Penny.

Mas Penny concorda que o rótulo sex positive está ficando ultrapassado em uma cultura onde as velhas restrições ao comportamento sexual se foram, mas a ameaça da violência masculina perdura. “Nesta cultura com aparente sexualidade livre, as mulheres ainda não se sentem capazes de ter limites e dizer o que querem, e tudo é ditado pelo que os homens sentem e o que devem querer. Não acho que o problema seja muita liberação sexual, acho que não é suficiente. Você tem que realmente lidar com a violência sexual para criar uma liberação sexual substantiva”.

Se houver uma reação em curso, isso pode não significar um retorno ao conservadorismo sexual. No ano passado, a hashtag “Cancel P*rn” começou a se espalhar no TikTok, com usuários compartilhando histórias de terror de plataformas pornográficas flagradas hospedando imagens de estupro e abuso infantil, ou falando sobre o impacto da indústria do sexo em suas próprias vidas. Embora argumentos como esse sejam às vezes apelidados de feminismo sex negative, negativo parece a palavra errada para contas como @profitfromtrauma, feita por uma ex-acompanhante e ex-sugar baby de homens mais velhos ricos que a pagaram por sexo. Agora trabalhando como “coach de traumas”, ela responde às perguntas dos seguidores sobre por que — em contraste com algumas contas de profissionais do sexo mais otimistas na plataforma — ela realmente não poderia recomendar sua antiga carreira. No entanto, ela parece tudo menos pudica. Um de seus posts mais populares é intitulado “Como eu gosto do meu corpo sabendo que não sou mais um buraco de £150 para os homens”.

O elemento que faltava nessa revolução inacabada, argumenta Lala, é uma mudança cultural nas atitudes dos homens. “O feminismo sex positive lançou as bases, nos deu uma plataforma e uma voz e um espaço para usar nossas vozes. Mas sem ter homens a bordo e educação sexual adequada, todas estaremos na mesma velha roda de hamster.”

Isso não vai acontecer da noite para o dia, ela reconhece. Mas ela vê vislumbres de esperança. Recentemente, ela aconselhou um homem que há anos sufocava a namorada durante o sexo. Foi só quando a namorada teve coragem de dizer que não gostava que ele admitiu que também não gostava. Acabou que os dois estavam indo de acordo com o que achavam que o outro queria, e cada um secretamente desejando que o outro parasse com isso.

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*Feminismo sex positive é aquele centrado na ideia de liberdade sexual das mulheres como uma das principais componentes da liberdade das mulheres. Não irei traduzir o sex positive porque além de ter significado bem deduzível em português, não gosto das traduções que conheço.

** Hook-up culture: uma cultura que estimula os encontros sexuais casuais sem que necessariamente haja envolvimento emocional íntimo.

Tradução livre e independente. Link original aqui.

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Iza Forzani
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Uma pessoa que se importa muito com tudo e amante dos animais.