No TikTok, a “Vanillashaming” é o novo “Kinkshaming”*.

Ninka
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7 min readMar 21, 2021

“Jogos” com facas, enforcamento e sexo agressivo acharam uma casa na ‘FreakTok’, mas a linha que separa a “positividade sexual” da violência sexual está ficando cada vez mais difusa.

*Kink (tara, fetiche) shaming (envergonhar), é o ato de criticar as preferências sexuais de alguém ou usar essas preferências para estigmatizar a pessoa.

*Vanilla (baunilha) é o termo usado para se referir ao sexo “normal”, principalmente que não envolve fetiches de agressão.

Esquerda: “Segura o pescoco dela”; Direita:”a forma que vocês tornaram ‘baunilha’ em um tipo de insulto e hiperssexualizaram meninas menores de idade a um ponto que elas sentem que é compulsório gostar de homens as batendo na cama para não serem vistas como ‘puritanas’…”

“Quando ele diz ser um freak mas se nega a arrastar uma faca através da minha pele… é engraçado como as pessoas se tornaram umas maricas de repente”.

Bem vindo ao #freaktok, uma das esquinas mais escuras no complexo labirinto de subculturas e comunidades alternativas da rede do TikTok. Onde hashtags como #thriftflipping (o termo referencia ao ato de comprar e alterar roupas de segunda mão para se encaixarem em seus corpos e gostos) ou #astralprojecting (projeção astral) não pegaram, os usuários ao invés gostam de se vangloriar sobre rejeitarem o sexo “normal”.

E não parece ser apenas um nicho. No momento em que escrevo, a hashtag #freak já tem mais de 1.2 bilhões de visualizações. #ChokeMe (‘MeEnforque’) tem 45.3 milhões. Enquanto muito desse conteúdo é inocente, é fácil achar vídeos mais e mais sinistros. Um deles retrata uma garota encorajando seu relutante namorado a a enforcar, e tem 1.1 milhões de visualizações. Outro, de um usuário zombando os usuários por serem o que eles chamam de “baunilha” (em inglês, ‘vanilla’), tem 78.000 curtidas.

“‘Baunilha é o novo ‘frígido’”, diz Lily, de 19 anos, de Buckinghamshire. Depois de deixar um comentário em um vídeo de um garoto zombando sua namorada por não gostar de ser enfocada, Lily foi alvo de um tiroteio de comentários. “Eu simplesmente escrevi que não gostar de ser enfocada no sexo não significa que você seja entediante, e eu acabei sendo muito criticada por isso”, ela conta. “As pessoas continuavam dizendo que eu ‘não sabia como me divertir’ e que eu obviamente, por não gostar de ser enforcada na cama, ‘não estava confortável com minha sexualidade’”.

Como resultado, Lily começou a questionar suas próprias preferências. “Eu comecei a pensar sobre se era isso que pessoas ‘positivas sexualmente’ faziam e que, talvez, eu apenas não entendia o que ‘sexo bom’ era”, ela disse. “Eu me encontrei defendendo minhas próprias preferências na internet porque as pessoas não estavam abertas à simples ideia de que eu realmente gostava de sexo “normal”. No final, Lily deletou seu comentário porque as respostas começaram a ficar cada vez mais e mais pessoais.

Mina, de 17 anos, de Arkansas, teve uma experiência parecida. Depois de compartilhar o vídeo do TikTok de uma outra usuária se referindo ao problema da glamourização e imposição da norma do “sexo agressivo”, Mina se deparou com acusações em comentários sobre estar sendo ‘preconceituosa’ e envergonhando as pessoas ‘e seus fetiches’; foi chamada de puritana e de floco de neve por outros usuários. “Tive um monte de respostas negativas”, ela conta, mas nenhuma delas foi uma grande surpresa, com seus companheiros de plataforma agora colocando o enforcamento e o estrangulamento durante o sexo como muito mais aceitáveis do que o que eles chamam de ‘sexo baunilha’. “Eu vi pessoas se forçando a aparentar que gostam de coisas realmente muito extremas apenas para fazer parte da galera. O tipo de sexo que você tem e gosta agora está se tornando essa grande competição nas redes, e quanto mais agressivo, melhor”, ela diz.

Para Fiona MacKenzie, fundadora da campanha We Can’t Consent To This (“Não Podemos Consentir A Isso”, t.l.) — um grupo formado em resposta a uma crescente violência praticada contra as mulheres durante o sexo — a nova moda é preocupante. “A garotos e garotas jovens, e cada vez mais jovens, está sendo dito que todos estão fazendo isso”, ela diz. A pressão social significa que meninas em sua adolescência e vinte e poucos anos agora estão sendo ditas que não gostar de serem estapeadas ou enforcadas é algo anormal, absurdo. “A expectativa padrão, agora, é que você queira isso”.

No processo de normalização de um tipo de sexo agressivo, sua imposição como o normal e o esperado, e da rejeição de quem se opõe a ele, as fronteiras que separam o consentimento sexual da pura agressão sexual estão sobre a iminência de serem apagadas. “A experiência negativa de algumas pessoas, tão sérias que podem até mesmo gerar traumas futuros, estão sendo apagadas porque as pessoas apenas as descartam como sendo de alguém ‘inferior’ que simplesmente tem ‘preferências baunilha’”, diz Fiona. Lily concorda com isso, argumentando que a diferença entre ser “empoderada” e fazer o sexo que você quer e ser a vítima de uma violência, tanto sexual quanto psicológica, está sendo amplamente ignorada. “Alguém até chegou a me mandar uma mensagem privada, dizendo que “as mulheres merecem serem machucadas””.

Alarmantemente, vídeos que glorificam a violência sexual são também extremamente populares no TikTok. Podemos encontrar vídeos romantizando o abuso doméstico, o estereótipo do ‘namorado psicótico’, e até mesmo ‘coisas que as garotas querem mas não vão pedir’ (incluindo sufocamento durante o sexo, tapas, puxões de cabelo e hematomas de pancadas, referidas deturpadamente como “marcas de amor”). No último verão, o TikTok foi forçado a remover conteúdo marcado com a hashtag #365dias (em referência ao filme que glamouriza o tráfico e a violência sexual) depois que usuários a usaram para mostrarem seus hematomas obtidos durante o sexo ou vídeos de pessoas agarrando seus parceiros pelo pescoço.

No vídeo: “Decidi assistir 365 dias com meu namorado”. Tweet: “Esse vídeo tem 5.4 milhões de curtidas. Eu estou realmente preocupada que mulheres jovens estão vendo isso e pensando que é normal homens a baterem, praticamente a agredirem fisicamente durante o sexo. Qualquer cara que esteja confortável em fazer isso tem um parafuso a menos na minha opinião…”

Dado que uma pesquisa recente no Reino Unido mostrou que 38% das mulheres dentre 18–39 anos experimentaram cuspidas, sufocamento e tapas que não queriam durante sexo consensual, é preocupante que a normalização desses comportamentos está sendo confundido com um ‘consentimento como o padrão’. Com números de casos de homicídios utilizando da defesa baseada no “sexo agressivo que deu errado” tendo aumentado 90% em apenas uma década, fica claro que precisamos falar sobre como a violência sexual está sendo constantemente confundida ou maliciosamente rotulada como ‘liberação sexual’.

Depois de ver alguns dos vídeos em questão, um representante do TikTok disse que “manter nossa comunidade segura é nossa principal prioridade. Nossos guias de comunidade tornam claro o que é e o que não é aceito em nossa plataforma, e isso inclui conteúdo que retrata, solicita, promove, normaliza ou glorifica atos sexuais não-consensuais ou violência sexual. Nós usamos uma combinação de tecnologias e times de moderação para revisar, identificar e remover qualquer conteúdo ou conta que está em violação dessas regras. Dos vídeos que foram trazidos para a nossa atenção, 7 foram removidos por violarem os padrões de comunidade”.

Sobre as “punições” no universo dos fetiches sexuais, um usuário argumenta: “Mas se você precisa consentir com sua punição, então não é uma punição de verdade”

Dra Gail Dines, presidente da Culture Reframed, uma organização que trata dos efeitos da mídia hiperssexualizada sobre os jovens — cita a pornografia como principal culpada pelo fenômeno. “Pornografia é a maior fonte de (des)Educação Sexual”, ela diz. E, com 88% das cenas mais assistidas da pornografia contendo atos de agressão física contra mulheres (e isso há uns bons anos atrás e, desde lá, isso apenas piorou), não há como dizer aos jovens que essa não é a norma, e que você não precisa gostar de sexo assim. Mina concorda. “As pessoas estão assistindo pornografia e estão se tornando mais e mais dessensibilizadas pra qualquer coisa “normal”, mesmo antes de terem eles mesmos tido algum tipo de experiência sexual”.

Enquanto parte desse conteúdo tenha sido associado ao BDSM, Gillian Myhill, uma especialista em relacionamentos e saúde sexual, estressa que esses vídeos representam de forma falha a ‘comunidade dos fetiches’. “Eles não estão se comunicando e estabelecendo os guias que une as comunidades de fetiche e bdsm”, ela diz. “Respeito, consentimento e segurança são pontos chave”. A não-coerção deve ser um ponto chave.

Como resultado, assim como esse conteúdo pode ser encontrado no aplicativo, você pode encontrar criadores de conteúdo também educando os usuários sobre como praticar certos atos de forma que seja ao menos segura. A hashtag #kinkTok está cheia de vídeos explicando sobre fetiches, somando 2.8 bilhões de visualizações. “A ênfase no consentimento quando discutindo preferências sexuais mais agressivas é absolutamente vital”, diz Caitlin, de 20 anos. Ela está consciente de que parte do conteúdo no TikTok está distorcendo a percepção das pessoas do que ela chama de ‘dinâmicas sexuais alternativas’. “Limites e consentimento é o que distingue espaços positivos de espaços absolutamente danosos”, ela diz. Ao conscientizar as pessoas sobre ‘comportamentos de bandeira vermelha’, os KinkTokers estão usando a plataforma para refletir sobre como relacionamentos saudáveis devem se parecer.

A TikToker de 33 anos, Carly, de Nova York, está trabalhando para “normalizar todas as práticas sexuais, desde que envolvam consentimento”, ela conta. Como educadora sobre o prazer e especialista em produtos, Carly logo se deu conta sobre a curiosidade dos jovens utilizando a plataforma, e focou em dar educação sexual apropriada a suas idades, ganhando mais de 33 mil seguidores e mais de meio milhão de likes em 8 meses. “Eu genuinamente acredito que as pessoas no TikTok são jovens que estão muito abertos e dispostos a explorarem sua sexualidade”, ela diz, “mas isso deve ser feito de maneira correta e consciente”.

Carly diz que o perigo está em quando as pessoas usam o aplicativo como única forma de educação sexual (ou o utilizam junto com a pornografia). “Você deve ser muito cuidadoso sobre de onde você adquire sua informação. Nem todo mundo deveria estar por aí dando dicas”, ela diz, recomendando que os usuários pesquisem sobre coisas que eles vêem no TikTok em fontes confiáveis fora do aplicativo. “Eu quero que as pessoas explorem, mas é importante que eles tenham embasamento sobre suas descobertas”.

Olhando para o futuro, é importante que seja ensinado aos jovens a ficarem confortáveis com suas próprias, genuínas sexualidades e que sejam capazes de se autoconhecer e explorá-la de maneira segura, consentida, e de acordo com seus próprios meios. Além disso, se você gosta de ‘sexo baunilha’, sexo com fetiches, ou de nenhum tipo de sexo, aproveitar e ser realmente livre é a chave.


Traduzido livremente por mim ❤ Nina Cenni.
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Ninka
Recuse A Clicar

Cursando PhD em Física. Lutando contra a exploração e violência sexual evidente e inerente à pornografia, prostituição e tráfico humano nas horas vagas.