Produzir “pornografia ética” é impossível, aqui está o porquê

Iza Forzani
Recuse A Clicar
Published in
8 min readDec 22, 2020

Da Dra. Emma Wood

Seria possível uma pornografia sem violência, sem misoginia e bem paga? A pornografia poderia ética ou existem outras preocupações?

É difícil separar a violência do sexo em grande parte da pornografia da internet de hoje. O conteúdo facilmente acessível inclui estupro simulado, mulheres sendo esbofeteadas, esmurradas e sujeitas a uma infinidade de insultos misóginos.

Também é mais difícil do que nunca negar que o uso da pornografia, devido à sua natureza viciante, misógina e violenta, tem uma série de impactos negativos sobre os consumidores. A primeira exposição à pornografia na Internet em países ocidentais ocorre antes da puberdade para uma fração significativa das crianças hoje. Uma proporção perturbadoramente alta de meninos e rapazes hoje acredita em mitos sobre estupro decorrentes da exposição à pornografia. Além disso, há evidências sugerindo que a exposição a material pornográfico violento leva a um aumento dramático na ocorrência de violência sexual.

Também é difícil negar que as práticas da indústria pornográfica exploram os próprios atores. Histórias como as do documentário da Netflix, Hot Girls Wanted, retratam casos de atrizes que concordaram em filmar uma cena envolvendo um ato específico, apenas para serem coagidos no local pelos produtores em uma cena mais hard-core não previamente acordada. Há quem diga que esta não é uma experiência rara para as atrizes.

Embora esses fatos sobre conteúdo perturbador e práticas exploratórias levem algumas pessoas a acreditar que ver pornografia é antiético ou antifeminista, faz com que outras pessoas perguntem se pode haver pornografia ética. As únicas objeções à pornografia são caso a caso — considerando conteúdo violento, exploração ou gêneros específicos de pornografia? Ou existe algum fato mais profundo sobre a pornografia — qualquer pornografia — que torne isso eticamente incorreto?

Suponha que esse seja o tipo de pornografia comumente encontrado online:

  • Que a retratação realista do sexo, de forma consensual, não misógino e seguro — preservativos e tudo;
  • Que fosse livre de exploração (irreal, mas vamos imaginar);
  • Que os intérpretes consentissem plena e adequadamente com tudo o que foi filmado;
  • Que o regulamento garantisse que apenas as pessoas que fossem educadas, e tivessem outras opções de emprego, fossem autorizadas a atuar;
  • Que os artistas não tivessem histórico de abuso sexual ou exposição a pornografia de menores;
  • Que a saúde sexual perfeita fosse um pré-requisito para se tornar um ator pornô;
  • Que a indústria pornográfica cortasse todos os laços que alegadamente mantém com o tráfico sexual e atividades de exploração semelhantes;
  • Se tudo isso acontecesse, haveria alguma objeção ética legítima à produção e ao consumo de pornografia?

Antes de podermos responder a perguntas sobre a ética da pornografia, precisamos abordar questões fundamentais sobre a ética do sexo.

Uma pergunta é: o sexo é simplesmente outro prazer corporal entre outros, como receber uma massagem, ou os atos sexuais têm um significado mais profundo? A filósofa Anne Barnhill descreve a relação sexual como um tipo de linguagem corporal. Ela pensa que quando você faz sexo com uma pessoa, você não está apenas fazendo movimentos fisicamente prazerosos, você está sendo expressivo e, portanto, expressando algo para outra pessoa.

Se você faz sexo com alguém de quem gosta profundamente, essa atitude amorosa é expressa por meio da linguagem corporal do sexo. Mas usar o ato sexual tido como expressão de linguagem apenas para prazer com uma pessoa de quem você se preocupa muito pouco pode expressar uma gama de atitudes prejudiciais e até mesmo dolorosas. Pode enviar a mensagem de que a outra pessoa é simplesmente um objeto a ser usado para seu próprio prazer pessoal.

Mesmo se não, as mensagens podem ser confusas. A linguagem corporal do beijo carinhoso, do contato corporal próximo e das carícias diz uma coisa para um parceiro sexual comprometido com relacionamentos, enquanto o fato de alguém ter poucos laços emocionais ligados a eles — especialmente se essa casualidade for declarada de antemão — diz outra.

Sabemos que essas mensagens confusas costumam ser emocionalmente dolorosas. O cérebro humano é inundado com oxitocina — a mesma substância química responsável por ligar as mães aos filhos — quando os humanos fazem sexo. Há uma base biológica para a afirmação de que “sexo casual” é uma contradição de termos. O sexo une as pessoas, quer queiramos ou não. É um ato profundo e significativo de maneira relacional.

Vamos considerar essas ideias sobre o caráter especial do sexo e remetê-las à discussão sobre pornografia. Se as ideias acima sobre sexo forem corretas, então é duvidoso que sexo seja algo pelo qual as pessoas em um relacionamento casual ou mesmo inexistente devam ser pagas. Enquanto houver problemas éticos com o sexo casual em si, haverá problemas éticos com assistir sexo casual filmado. E isso sem contar os problemas de saúde associados a assistir sexo casual filmado.

Abordando uma via hipotética de pornografia ética

Achamos que a Dra. Wood tem um ponto muito significativo. Mesmo que a pornografia fosse produzida da maneira mais ética possível (o que não é inteiramente possível), ainda existem problemas com o que o produto em si está vendendo.

Algumas pessoas podem intervir neste ponto e dizer: “Mas existe pornografia de casais reais que não está na indústria e não tem esses problemas que a Dra. Wood mencionou!” Superficialmente, essa pode ser uma maneira de consumir pornografia de forma ética, se um casal a criou e fez o upload por conta própria. Mas não há como saber se um vídeo foi enviado de forma consensual para uma plataforma pornográfica, mesmo que o sexo retratado seja consensual. Mesmo assim, também existem problemas profundos com esse tipo de pornografia.

Considere esta história verídica enviada por e-mail para Fight the New Drug:

“Há algo que quero enfatizar. Meu ex-marido e eu ferimos inúmeras pessoas com a pornografia que fizemos juntos. Como eu sei? Diariamente, éramos inundados com mensagens de fãs, nos dizendo que desejavam que seu cônjuge pudesse ser mais como um de nós. Dizendo-nos que idolatravam nosso relacionamento ou desejavam que seu parceiro fosse tão aberto ao “sexo aventureiro” e exibicionismo.

Até hoje, sinto culpa por saber que nunca respondi a NENHUMA daquelas pessoas com a verdade. Fiz pornografia porque pensei que meu único valor era a minha aparência e o meu desempenho sexual. Chorei quase todas as noites daquele casamento, cheia de culpa e desejando poder ter um amor do qual valesse a pena me orgulhar. Queria que meu marido me amasse, mas não sabia amar por causa da pornografia. Nunca disse a esses fãs que odiava pornografia. Odiava não conseguir parar de assistir, odiava sentir que precisava ser as mulheres que vi nesses vídeos e, honestamente, odiava meu ex-marido por não querer o melhor para sua esposa.

Não posso culpá-lo pelo que fiz ao nosso casamento, mas posso dizer que, enquanto fazia pornografia, era profundamente infeliz e insegura. É irônico que eles digam que apenas mulheres inseguras são contra a pornografia, quando, por experiência própria, mulheres inseguras criam, promovem e permitem isso.”

Até mesmo ver o tipo de pornografia descrito acima não requer nenhum esforço relacional e não apresenta risco de rejeição.

Pornografia livre de exploração não é livre de danos

Mesmo que houvesse uma maneira de saber se tudo em que você clicou estava livre de exploração, ainda existem efeitos nocivos que a pornografia deixa no cérebro do consumidor e nas relações, fatos que tornam a pornografia um problema de saúde pública para nossa sociedade.

Estudo após estudo mostrou que, ao contrário da crença popular, a pornografia é ruim para relacionamentos alongo prazo. Afeta negativamente a satisfação no relacionamento e, em última análise, pode levar uma pessoa a se afastar de um ente querido.

Em 2012, um estudo relatou que indivíduos que não consumiam pornografia tinham maior qualidade de relacionamento em todas as medidas, incluindo compromisso, em comparação com aqueles que consumiam material explícito em particular.

Um estudo mais recente publicado em 2017 examinou o impacto em casais nos quais um parceiro consome mais pornografia do que o outro, o que é um padrão bastante comum. Os pesquisadores concluíram, “maiores discrepâncias entre parceiros no uso de pornografia estavam relacionadas a menos satisfação no relacionamento, menos estabilidade, comunicação menos positiva e mais agressão relacional”.

E essas são questões que a pesquisa mostrou ter um impacto a longo prazo.

Em um dos poucos estudos para acompanhar casais e seu consumo de pornografia por vários anos, os pesquisadores descobriram que a pornografia de fato prejudicava a qualidade e a satisfação do relacionamento. Os pesquisadores concluíram:

“Em geral, as pessoas casadas que viram pornografia com mais frequência em 2006 relataram níveis significativamente mais baixos de qualidade conjugal em 2012 … O efeito da pornografia não foi simplesmente uma proxy para a insatisfação com a vida sexual ou tomada de decisão conjugal em 2006. Em termos de influência substantiva, a frequência do uso de pornografia em 2006 foi o segundo indicador mais forte da qualidade conjugal em 2012. ”

Em outras palavras, a frequência com que um parceiro (especificamente, os maridos neste estudo) consumia pornografia afetou negativamente a qualidade do relacionamento e, ainda mais interessante, o estudo discutiu que a pornografia não era um encobrimento para algum outro problema conjugal. Era a fonte do problema.

Especialistas em relacionamento, os médicos John e Julie Gottman, explicam desta forma:

“Ao assistir pornografia, o usuário tem total controle da experiência sexual, ao contrário do sexo normal, em que as pessoas compartilham o controle com o parceiro. Assim, um usuário de pornografia pode formar a expectativa irreal de que o sexo estará sob o controle de apenas uma pessoa … O objetivo do relacionamento de conexão íntima é confundido e finalmente perdido.”

A verdade é que em relacionamentos saudáveis, você não pode ter as duas coisas. Estudos mostram que os consumidores não podem perpetuamente ter a gratificação instantânea de milhares de parceiros sexuais virtuais e um relacionamento satisfatório de longo prazo.

Vê como a pornografia pode ser prejudicial, mesmo em um mundo hipotético de pornografia “livre de exploração”?

O resultado final

Isso pode ou não ser surpreendente, mas a pornografia ética e livre de exploração é uma fantasia, assim como o que está na tela em vídeos pornôs.

É quase impossível saber se o que um consumidor está assistindo foi criado em um ambiente legítimo, seguro e totalmente consensual. Não há como saber se os atores na tela estão lá por vontade própria ou se foram forçados ou coagidos a participar do filme — até mesmo conversas expressando consentimento e entrevistas às vezes podem ser mentiras.

Isso soa extremo, sabemos, visto que há uma série de artistas pornôs francos e entusiasmados que compartilham seu trabalho e amor pela indústria em todas as mídias sociais e na Internet em geral. Mas a realidade é que pode ser impossível distinguir entre um executante disposto e um executor coagido.

Se você não acredita em nós — ou nos muitos estudos e relatos pessoais — acredite nisto: pornografia, não importa o quão “ética” você acredite que seja, ainda é prejudicial e um problema de saúde pública. Nenhuma quantidade de pornografia “livre de exploração” pode apagar os fatos.

Link da matéria original.

Tradução livre.

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Iza Forzani
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Uma pessoa que se importa muito com tudo e amante dos animais.