O capitalismo é dominante, não dominado

Uma análise do capitalismo como sistema em vez de processo

Ewatomi Abara
Red Autumn
7 min readSep 4, 2020

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Alguém vivendo sob o sistema Capitalista, e também tendo uma concepção básica de como opera, pode o perceber como um sistema de produção que é controlado e perpetuado por uma “classe mais alta”. É tido que a classe burguesa perpetua o Capitalismo, e que este sistema só pode existir na medida em que a classe burguesa “permite” que ele exista, ou lhe “cria”. Embora isso possa ser verdadeiro se analisamos Capitalismo como o modo de produção e o sistema puramente econômico numa nação ou sociedade, precisamos abstrair o Capitalismo de sua aplicação econômica e o encarar pelas lentes de análise cultural e social. Capital não é uma ferramenta, uma série de mecanismos e maneiras para uma “classe mais alta” alcançar seus objetivos, mas uma criatura histórica, uma entidade vinda das consequências da histórica, qual luta para se manter viva e estável.

Precisamos entender que Capitalismo não é um sistema dominado, ele não é domesticado pela burguesia, mas ele é dominante. Para entender o significado de “sistema dominante” aqui, precisamos analisar o relacionamento entre as classes dirigentes e burguesas, e o sistema do Capitalismo.

A primeira coisa que precisamos entender é que a burguesia não existe como uma classe desenvolvendo e erguendo o Capitalismo, não é a classe por trás do fênomeno Capitalistas, mas escravos do sistema que perpetuam. O sistema de classe como o cohecemos é criado com base no Capitalismo, e não o contrário, e isso deveria ser suficiente para mostrar que a burguesia é sujeita ao sistema mencionado. Ela existe dependendo no Capitalismo, como a nobreza e o monarca viviam sob a influência da monarquia. A existência da monarquia não era para justificar um Rei, mas o Rei justificava a existência da monarquia. Como o Rei era mantido pela monarquia, e essa era criada por diretio divino, por Deus e seu estado de “poder definidor” das instituições socioculturais monarquistas, a burguesia só existe porque ela é garantida pelo Capitalismo.

Pense nisso desta maneira: A monarquia pode, num vácuo, existir independentemente do Rei. As instituições monárquicas, o estado e a cultura podem existir, e podem o fazer independentemente da existência de um monarca. Seria assim que, se você colocasse um manequim no trono, e o povo reconhecesse essa imitação de uma pessoa como rei, então a monarquia ainda existiria simplesmente porque não é sustentada pela existência de um governante, mas pelas instituições que ela possui. Portanto, o Rei não é o controlador da monarquia, mas uma figura sob seu controle.

Mas por que a burguesia (ou qualquer tipo de classe dominante, realmente) é necessária para que o capitalismo exista? Se o Capitalismo é uma “entidade”, este ser aparentemente poderoso que existe independentemente, por que não pode se encarregar diretamente da dominação da classe trabalhadora? E como a burguesia garante a dominação da classe trabalhadora sem usar diretamente o Capitalismo para dominá-la?

A BURGUESIA COMO A CLASSE ESCRAVA PRIVILEGIADA, E AS FERRAMENTAS DO PODER

O capitalismo permite a liberdade da burguesia, ou a ilusão dessa. Para agir materialmente, o capitalismo precisa de uma maneira de se expressar na sociedade humana, e não há melhor maneira do que escravizar as pessoas sob seu sistema de classes. Certamente, a burguesia não sofre a mesma exploração e opressão que o proletariado sofre, mas ainda é uma classe sob o capitalismo e, portanto, um sujeito a ele.

O burguês não vive para seu próprio prazer, e ele não age de forma “auto-serviçosa”; o burguês age para acumular um poder imaginário, uma coisa criada do nada que não representa nada. O burguês também está preso em um ciclo interminável e inescapável de consumismo, que, ao contrário da classe proletária, ele ainda pode facilmente cumprir. No entanto, o burguês ainda está trabalhando para alcançar a felicidade absoluta, uma felicidade absoluta que é trazida por alcançar o auge do consumismo, um zênite que nunca poderá ser alcançado. O burguês ainda é escravo da mercantilização, do consumismo e da cultura capitalista, e ele age de forma inconsciente a fim de perpetuar isto.

O burguês é, então, é claro, o sujeito perfeito para o capitalismo. Embora possa ser considerado uma “entidade histórica”, não é um ser material, não é todo-poderoso; é um conjunto de instituições como qualquer outro. A classe burguesa é simplesmente a que tem mais a perder, a que seria mais afetada pela queda do Capitalismo. A classe burguesa experimenta uma síndrome de Estocolmo, e se rende para se tornar a manifestação do sistema ao qual é escravizada.
A classe burguesa, é claro, reembolsa esses conjuntos de “privilégios” (que não são mais do que o epítome da alienação). Para isso, eles devem representar seu Deus do Capital na Terra, e também precisam, naturalmente, manter a classe proletária do seu lado, a fim de assegurar a estabilidade e a perpetuidade do Capital. Eles então usam ferramentas da dominação, as “ferramentas do poder”, algumas muito parecidas com o que o Capitalismo faz com eles.

  1. Autoridade. Não importa o quanto a burguesia lute pela perpetuidade do capitalismo, nenhum sistema pode existir sem legitimação. Era antes regra de quem era mais forte, ou aquele que tinha mais grãos e gado; se ele era de certa qualidade, é claro que ele era capaz e apto a governar. Então se voltou para o direito por Deus, pois um poder dado pelo governante de todo o universo é incontestável e eterno. Agora, é a lei do povo.
    Não pense que estou dizendo que o capitalismo tem de fato apoio popular. Em vez disso, o capitalismo opera através do sistema que é a “democracia”. Ele se legitima, sua própria existência, assegurando que o povo saiba e entenda que o que está vivendo é o que ele escolheu, é a consequência de suas ações, sem se importar se isso é verdade. A democracia burguesa é criada com a intenção de legitimar a dominação da burguesia sobre as classes mais baixas, e assim esmagar a rebeldia em relação a ela através da responsabilização das classes dominadas.
    É claro que, mesmo que a democracia burguesa mudasse alguma coisa, o que isso importa? As “classes mais baixas” ainda estão sujeitas a condicionamentos sociais. E mesmo que, por acaso, um governo que não se alinha com os interesses do capitalismo seja eleito pela democracia burguesa, ele é prontamente derrubado. Veja, por exemplo, as social-democracias da América do Sul. Embora ainda perpetuem o capitalismo, muitas vezes tentam quebrar suas relações neocoloniais com os países imperialistas do Capital, o que ameaça a estabilidade do capitalismo, sistema que invariavelmente necessita do imperialismo para assegurar seu domínio. Assim que surge um governo social-democrata inclinado a cortar os laços imperialistas, ele é derrubado. Veja por exemplo o golpe contra João Goulart no Brasil, 1964, ou ainda mais recentemente o golpe contra Evo Morales na Bolívia. Estes sistemas não são contra o capitalismo, mas trabalham contra um dos valores centrais da instituição acima mencionada. Esta democracia é condicional — esta regra do povo só é respeitada enquanto se alinhar com a necessidade do Capital.
  2. Concessões. Quando a autoridade não é suficiente, e a legitimação não pode ser feita usando a desculpa do domínio do povo, as concessões acontecem. Concessões são, se você quiser, aqueles pequenos “presentes” dados pelo Estado ou pelo governo, os chamados “direitos”. Concessões neste contexto não são o capitalismo cedendo, mas, em vez disso, tentativas de evitar o fazer. Ao melhorar marginalmente certos aspectos da condição da classe trabalhadora nacional, o Capitalismo pode se assegurar que esta classe é agora dependente do sistema. A classe operária que tem algo à perder, uma concessão, um privilégio, não se revoltará. Não se arriscarão perder sua posição insignificantemente “boa” para começar a se revoltar, porque o proletário, goste ou não, está pensando menos em seu futuro e mais em seu estado atual. O proletariado tem suas concessões à perder, e eles sabem que qualquer forma de desafio contra o sistema significaria a legitimação, sob um entendimento burguês, da subtração de tais concessões.
  3. Uma terceira ferramenta, que embora não tão representativa, está muito mais presente. A cultura. O capitalismo cria uma cultura, ou uma sombra dela. Ele, como muitas instituições antes dele, cria um sistema de “crenças” e “valores centrais” que podem ser compartilhados por imensos grupos de pessoas. Este pode ser o mais mundano dos exemplos, mas pense na Coca Cola. Ela é global e infiltrou-se na dieta e na vida cotidiana de bilhões de pessoas em todo o mundo, pessoas sem relação, pessoas sem conexões. É uma pseudocultura, servindo apenas para condicionar a população a adotar o sistema. Ela mina ou integra outras culturas, mercantilizando-as, transformando-as em concepções objetivadas a serem praticadas e vistas superficialmente. O capitalismo, acima de tudo, condiciona o povo a aceitá-las, tanto que não podemos perceber nada fora do capitalismo como “natural”.

Obviamente, existe uma infinidade de outras ferramentas, mas a maioria delas pode ser compreendida sob a visão dessas três ferramentas, que são as ferramentas básicas de qualquer sistema de dominação: Punir, pacificar e condicionar.

O QUE PODE-SE CONCLUIR?

Assim, o capitalismo não é um sistema dirigido e controlado por uma classe, porque a própria existência de uma coisa como a classe sob o capitalismo é uma consequência direta do capitalismo. Isto não quer dizer que todas as classes dependem do Capitalismo, mas que o sistema de classe moderno é uma consequência da instituição existente, ao contrário das instituições que estão sendo formadas pela classe. A burguesia não é diferente! Eles são escravistas que são escravos, exploradores que são explorados. Eles vivem à mercê da continuação da quimera sempre crescente, em expansão e incontrolável, e nascida da história que é o capitalismo.

Precisamos entender que a abolição do capitalismo não é simplesmente a abolição e o enfraquecimento da classe burguesa, e não é simplesmente um programa econômico, mas a abolição do capitalismo depende do enfraquecimento dessas estruturas de poder, da luta contra seu domínio cultural e do questionamento das instituições legitimadoras em vigor. Não estamos lutando contra a burguesia, pelo menos não diretamente, mas estamos lutando contra o sistema que cria uma opressão compartilhada entre todos os seres humanos, de todas as origens imagináveis. Estamos lutando contra um sistema que luta para se manter vivo, e a burguesia não é o inimigo, mas simplesmente um obstáculo. A classe burguesa é um bode expiatório. O que lutamos contra, é a entidade, o leviatã da história que é o capitalismo.

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