Ancine faz aniversário de um ano sem presidente à frente da entidade graças ao Capitão

Francine A. Galbier
Vértice
Published in
7 min readSep 3, 2020
Flickr Família Bolsonaro/Bolsonaro aponta para a imagem de seu ídolo e ditador Médici

“Bolsonaro deveria deixar a Ancine com pessoas que são do mercado, que entendem. A Ancine é necessária para o audiovisual do país. Acho que a cultura está passando nesse momento por um processo muito difícil”, disse o deputado Alexandre Frota em agosto do ano passado num momento de lucidez.

Naquela época ele tinha recém rompido com o bolsonarismo, se colocava como uma das vozes mais gritantes contra Jair e acabou revelando que teria sido ele a primeira pessoa a falar para o presidente da República sobre a existência da Ancine, órgão que Frota tinha interesse político à época (lembrando que Bolsonaro foi deputado federal durante sete mandatos seguidos, contabilizando 28 anos de Congresso Nacional. Não é como se não tivesse tido tempo para aprender quais eram as agências reguladoras do Estado).

Mas assim que tomou nota o Capitão começou suas ofensivas contra a entidade. Dizia que o governo estava buscando a extinção da Agência Nacional do Cinema caso não pudesse “filtrar” — leia-se censurar — as produções cinematográficas que seriam autorizadas a captar recursos financeiros.

“Vamos buscar a extinção da Ancine, pois não tem nada que o poder público se meter em fazer filme. Se tem uma empresa privada aqui, não tem problema nenhum. O Estado vai deixar de patrocinar isso aí. Eu não posso falar o nome dos filmes patrocinados pela Ancine no passado porque tem criança assistindo (…) E deixo bem claro: quem no Brasil quiser fazer filme de Bruna Surfistinha, seja quem for, fique à vontade. E isso, se nós fossemos interferir, seria uma censura. O que nós não podemos admitir e não queremos é esse tipo de filme ou filme de político, como o com a minha pessoa, que talvez até uma pessoa bem-intencionada queira fazê-lo, com dinheiro público. Isso é inconcebível, não podemos concordar com isso aí. Não tem filme com Bruna Surfistinha, nem com Jair Bolsonaro, dinheiro público não é pra isso não”, mugia o presidente na ocasião, evidenciando que continuava sem conhecer ao certo a função da agência.

Vamos lá: a Ancine foi criada tardiamente em 2001, durante o governo FHC, através da Medida Provisória 2228–1. Se trata de uma autarquia especial, sendo uma agência reguladora com as funções de fomento, regulação e fiscalização do mercado audiovisual brasileiro, além do incentivo ao setor privado para investimento na área. Hoje está vinculada ao Ministério do Turismo. A administração da Ancine é feita através de uma diretoria colegiada que precisa ser aprovada pelo Senado Federal e é composta por um diretor-presidente além de outros três diretores.

Pois bem. O que o governo pseudoliberal de Bolsonaro e tampouco seus apoiadores — que pregam o fim da Ancine e de todo financiamento às artes — fingem que não entender (e alguns realmente não entendem por conta da alta desinformação sobre o assunto ou simplesmente por burrice) é que a entidade reguladora não escolhe os projetos que vão receber financiamento em si, apenas autoriza, através de critérios técnicos, os produtores que estão aptos à captar recursos no setor privado (!).

Mas continuemos a saga.

Quando Alexandre Frota começou a mirar na Ancine, em agosto do ano passado, o então presidente-diretor da entidade, Christian De Castro Oliveira, estava sendo afastado após uma ordem judicial expedida pela Justiça do Rio de Janeiro baseada em denúncia do Ministério Público Federal. Ele foi acusado de constituir empresas com laranjas, crime contra ordem tributária, falsidade ideológica, estelionato e uso de documento falso. Após o afastamento de Christian, Alex Braga passou a ser o presidente interino e segue com esse status até o momento.

O governo Bolsonaro não se deu ao trabalho de efetivar Braga no cargo e muito menos indicar um novo nome para o posto. Também há outras vagas em orgãos e comissões ligados à cultura que seguem sem ocupação — o que também é parte do plano de desmonte da cruzada ideológica contra às artes. Só que Bolsonaro chegou a indicar outros dois diretores para a Ancine: o pastor Edilásio Barra e a diretora do “Festival Internacional de Cinema Cristão” Verônica Bendler. E pela indicação desses dois nomes ouso presumir que a visão de Bolsonaro de produções consideradas "adequadas" para o mercado audiovisual seja algo próximo das novelas bíblicas da Rede Record.

E não para por aí. O governo chegou a apresentar ao Poder Legislativo um projeto de lei cortando quase 43% do Fundo Setorial do Audiovisual, aplicado em fomento ao audiovisual. O ex ministro da Cultura, Marcelo Calero, disse que se tratava de uma declaração de guerra do governo ao setor audiovisual e que eram "medidas que têm um componente ideológico muito forte".

A burrice de Bolsonaro é generalizada. Ele parece mesmo empenhado em destruir parte da economia brasileira apenas para prejudicar um setor específico em nome de seu delírio "desesquerdizador". Dados da Ancine mostram que mercado audiovisual movimenta mais de 24,5 bilhões de reais por ano, além de ser responsável pela geração de milhares de empregos. Segundo dados do Atlas Econômico da Cultura Brasileira, divulgados em 2017, o mercado audiovisual cresceu de forma expressiva na última década justamente por conta do aumento dos investimentos federais.

Bolsonaro não ataca somente a Ancine e o cinema nacional. Suas ações contra esse setor têm impacto direto no PIB e no desemprego. Mais uma vez, o presidente joga contra seu próprio país. E ainda tem quem o chame de "patriota".

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Segue a legislação específica para quem quiser detalhes sobre a função da Ancine:

Segundo o Artigo 7 da MP 2228–1, a ANCINE tem as seguintes competências:

I — executar a política nacional de fomento ao cinema, definida na forma do art. 3o;

II — fiscalizar o cumprimento da legislação referente à atividade cinematográfica e videofonográfica nacional e estrangeira nos diversos segmentos de mercados, na forma do regulamento;

III — promover o combate à pirataria de obras audiovisuais;

IV — aplicar multas e sanções, na forma da lei;

V — regular, na forma da lei, as atividades de fomento e proteção à indústria cinematográfica e videofonográfica nacional, resguardando a livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação;

VI — coordenar as ações e atividades governamentais referentes à indústria cinematográfica e videofonográfica, ressalvadas as competências dos Ministérios da Cultura e das Comunicações;

VII — articular-se com os órgãos competentes dos entes federados com vistas a otimizar a consecução dos seus objetivos;

VIII — gerir programas e mecanismos de fomento à indústria cinematográfica e videofonográfica nacional;

IX — estabelecer critérios para a aplicação de recursos de fomento e financiamento à indústria cinematográfica e videofonográfica nacional;

X — promover a participação de obras cinematográficas e videofonográficas nacionais em festivais internacionais;

XI — aprovar e controlar a execução de projetos de co-produção, produção, distribuição, exibição e infra-estrutura técnica a serem realizados com recursos públicos e incentivos fiscais, ressalvadas as competências dos Ministérios da Cultura e das Comunicações;

XII — fornecer os Certificados de Produto Brasileiro às obras cinematográficas e videofonográficas;

XIII — fornecer Certificados de Registro dos contratos de produção, co-produção, distribuição, licenciamento, cessão de direitos de exploração, veiculação e exibição de obras cinematográficas e videofonográficas;

XIV — gerir o sistema de informações para o monitoramento das atividades da indústria cinematográfica e videofonográfica nos seus diversos meios de produção, distribuição, exibição e difusão;

XV — articular-se com órgãos e entidades voltados ao fomento da produção, da programação e da distribuição de obras cinematográficas e videofonográficas dos Estados membros do Mercosul e demais membros da comunidade internacional;

XVI — prestar apoio técnico e administrativo ao Conselho Superior do Cinema;

XVII — atualizar, em consonância com a evolução tecnológica, as definições referidas no art. 1o desta Medida Provisória.

XVIII — regular e fiscalizar o cumprimento dos princípios da comunicação audiovisual de acesso condicionado, das obrigações de programação, empacotamento e publicidade e das restrições ao capital total e votante das produtoras e programadoras fixados pela lei que dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado;

XIX — elaborar e tornar público plano de trabalho como instrumento de avaliação da atuação administrativa do órgão e de seu desempenho, estabelecendo os parâmetros para sua administração, bem como os indicadores que permitam quantificar, objetivamente, a sua avaliação periódica, inclusive com relação aos recursos aplicados em fomento à produção de audiovisual; (Incluído pela Lei nº 12.485, de 2011)

XX — enviar relatório anual de suas atividades ao Ministério da Cultura e, por intermédio da Presidência da República, ao Congresso Nacional; (Incluído pela Lei nº 12.485, de 2011)

XXI — tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais no âmbito de suas competências, nos termos do § 6o do art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985. (Incluído pela Lei nº 12.485, de 2011)

XXII — promover interação com administrações do cinema e do audiovisual dos Estados membros do Mercosul e demais membros da comunidade internacional, com vistas na consecução de objetivos de interesse comum; e (Redação dada pela Lei nº 12.599, de 2012)

XXIII — estabelecer critérios e procedimentos administrativos para a garantia do princípio da reciprocidade no território brasileiro em relação às condições de produção e exploração de obras audiovisuais brasileiras em territórios estrangeiros. (Redação dada pela Lei nº 12.599, de 2012)

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