Caso da Bienal do Livro mostra escalada da censura no meio artístico no Brasil

André Valeriano
Vértice
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9 min readSep 8, 2019

A HQ “Vingadores: a cruzadas da crianças” foi alvo de censura por parte do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, e trouxe de volta o debate sobre liberdade artística e homofobia

Capa da HQ Vingadores: a cruzada das crianças — Foto: Marvel/Divulgação

O que deveria ser somente mais uma edição pacata da Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, acabou se tornando nessa última semana um evento de grandes proporções nacionais e internacionais. O motivo: um gibi dos Vingadores continha uma cena onde dois rapazes se beijam, o que fez o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), exigir o recolhimento do gibi e de outros livros considerados “impróprios” para menores e que não estivessem lacrados com advertência sobre o conteúdo, sob pena de cassação da licença para quem os comercializassem.

A decisão do prefeito, no entanto, causou uma enorme polêmica, trazendo de volta o debate sobre a liberdade de expressão e artística, e a questão da homofobia. O prefeito justificou dizendo que “livros assim precisam estar em um plástico preto, lacrado, avisando o conteúdo”. Ainda sobre o gibi, Crivella disse em uma publicação no Twitter que fez isso para preservar as crianças.

“Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças. Por isso, determinamos que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdos impróprios para menores. Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades”, escreveu ainda Crivella no post.

Ele se refere a HQ Vingadores: a cruzada das crianças (Marvel Comics), de Allan Heinberg e Jim Cheng. A história tem como protagonista o grupo dos Jovens Vingadores, e gira em torno da procura de outra personagem dos quadrinhos da Marvel, a Feiticeira Escarlate, que está desaparecida no enredo da HQ.

Dois personagem que compõe o grupo são Wiccano e Hulkling, que são namorados na trama, tanto que há uma cena onde os dois heróis se beijam, o que resultou na decisão do prefeito em tentar censurar o gibi.

Página onde mostra os dois personagens, Wiccano e Hulkling, se beijando — Foto: Reprodução/Redes Sociais

Após a decisão, todos os exemplares da HQ foram vendidos na sexta-feira (6) em pouco mais de meia hora após a abertura do evento. O assunto virou um dos mais discutidos no Twitter e as hashtags #CensuranaBienal e #CensuraNuncaMais ficaram no trending topics.

No mesmo dia, a Prefeitura do Rio conseguiu uma liminar pelo TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) para recolher materiais “impróprios” para menores, mas a decisão foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, que cassou neste domingo (8) a liminar emitida pelo TJ-RJ.

Em nota, a Bienal respondeu que não acataria a decisão e que “reafirma a manutenção da programação para o fim de semana, dando voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser”.

Outras editoras como a Companhia das Letras, a maior do Brasil, declarou que o ato de Crivella é uma censura e que “manifesta seu repúdio a todo e qualquer ato de censura e se posiciona, mais uma vez, a favor da liberdade de expressão”. A Editora Panini, que publica HQs da Marvel e da DC no Brasil, soltou uma nota em que afirma repudiar “toda e qualquer tentativa de censura discriminatória às suas publicações ou às de terceiros”.

Estande da Editora Faro na Bienal do Livro do Rio Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo

O caso ganhou destaque nos principais jornais do mundo. O jornal americano The New York Times publicou uma matéria sobre o assunto. Também o jornal britânico The Guardian deu destaque a polêmica em uma matéria em seu site. Já a Folha de S. Paulo, em sua capa, colocou a imagem dos dois personagens se beijando em forma de protesto contra a censura.

Capa do jornal Folha de S. Paulo — Foto: Reprodução/Twitter

O desenhista da HQ, Jim Cheng, se manifestou em sua conta no Instagram, onde se diz “surpreso” com a decisão e que Crivella “pode estar fora de contato com os tempos atuais”.

“A comunidade LGBTQ está aqui para ficar, e eu não tenho nada além de amor e apoio para aqueles que continuam lutando pela validade e uma voz a ser ouvida”, disse o desenhista.

De acordo com o chargista e cartunista brasileiro Maurício Ricardo, a decisão de censurar a história em quadrinhos foi um “retrocesso” e que Crivella e outras pessoas estariam “surfando” no que chamou de “onda neoconservadora” para terem apoio.

“Como cidadão, eu fico chocado com o que esteja acontecendo porque, para mim, é um retrocesso. A gente demorou anos para chegar num grau de inclusão, de entendimento, de tolerância com o outro e parece que tudo está andando para trás como se tivesse sido uma coisa imposta para as pessoas quando na verdade eu acho que é o contrário”, disse o chargista.

“Então fica bem claro que eles estão surfando mesmo em uma onda política, que é essa onda desse neoconservadorismo, que inviabiliza a felicidade das pessoas no sentido de que qualquer pessoa que seja gay, que tenha gays na família ou que conviva com gays e que seja desencanado com relação a isso acaba sendo prejudicado em nome de alguém, que não devia tá se preocupando com isso, mas sim se preocupando com a própria vida.”

Para Maurício Ricardo, o que aconteceu no Rio neste fim de semana é uma “vergonha” e que a imagem da cidade e do país saem arranhadas com a tentativa de censura.

“Isso mancha a imagem do Rio, mancha a imagem da Bienal e é uma vergonha que o Rio de Janeiro e a Bienal sejam lembrados assim no exterior, até pelo Jim que é o autor da obra, eu acho vergonhoso. Todos nos que somos criadores devemos lutar contra isso”, completou Maurício Ricardo.

Outro que se envolveu ativamente nessa polêmica foi o youtuber Felipe Neto, que possui um canal com mais de 34 milhões de inscritos no Youtube. O influencer decidiu comprar todos os livros com temática LGBT e distribuí-los gratuitamente para quem quisesse um exemplar. Neste caso, os livros seriam lacrados em um saco preto com um selo de advertência que trazia a seguinte mensagem: “Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”, um claro sinal de protesto contra a censura do prefeito do Rio.

(foto: Reprodução/Twitter)

“Eu acho louvável a atitude do Felipe Neto. Muito legal ele ter distribuído os livros, ter abraçado essa causa, não só ele como vários escritores que também gravaram uma versão do “Apesar de você” do Chico Buarque, cada autor cantando um pedacinho da música”, disse Maurício Ricardo se referindo também ao protesto de escritores na Bienal contra a apreensão de livros.

Censura nos quadrinhos

Não é a primeira vez que histórias em quadrinhos são alvos de censura por conta de conteúdo. Nos anos 1950, após o trabalho do psiquiatra americano Fredric Wertham, que culpava as histórias de super-herói pela delinquência juvenil (tema de sua obra mais famosa, “A Sedução dos Inocentes”), deu início ao surgimento de um código de regulação entre as próprias editoras, o “Comic Code Authority”, que vigorou durante as décadas de 1950 até os anos 1980, quando passou a perder força até ser abandonado pelas editoras de quadrinhos dos Estados Unidos.

“Por conta desse livro, o que aconteceu: já existia um movimento paranoico muito forte nos Estados Unidos por conta do macarthismo e que já tinha influenciado e prejudicado muita gente na indústria cinematográfica. A indústria de quadrinhos, pra evitar uma ingerência maior no trabalho dos artistas, resolveu criar o Comics Code, que é uma série de regras para publicações de quadrinhos. Aí passou-se a ter uma autocensura dentro da própria indústria”, disse Dionísius Amêndola, criador do canal Bunker do Dio, que trata de cinema e quadrinhos no Youtube.

O Batman, personagem da DC Comics, foi acusado por Wertham em seu livro “A Sedução dos Inocentes” de apologia a homossexualidade por ter, supostamente, uma relação muito além do combate ao crime com o personagem Robin, parceiro do Batman nos quadrinhos.

A HQ clássica do Batman, A Piada Mortal, também foi alvo de censura nos EUA por uma suposta apologia ao estupro, protagonizada pelo vilão Coringa e pela filha do comissário Gordon, a futura Batgirl.

Dionísius conta que esse tipo de atitude só prejudica a indústria e o próprio leitor que consome esse mercado, e que a associar o consumo de HQs a comportamentos agressivos ou até homoafetivos não faz sentido.

“Mas isso é algo que acontece não apenas na indústria dos quadrinhos, mas vira e mexe se tem essas discussões, por exemplo, com relação ao videogame, o quanto que o videogame influencia os tiroteios nos Estados Unidos. Era muito comum na década de 80 acusarem as bandas de heavy metal de influenciarem as pessoas a cometerem suicídio. No final das contas, as pessoas terminam sempre buscando responsabilizar um terceiro pelos seus próprios atos, sem contar o nível de estupidez nesse jogo político da decisão do Crivella”, disse.

Ele lembra também que as histórias em quadrinhos cumprem o papel de ser entretenimento e que questões políticas, sociais e comportamentais retratadas nos gibis fazem parte e é consequência do trabalho artístico do autor.

“É óbvio que existem categorias de quadrinhos, autores que trabalham com uma visão mais crítica, com uma questão mais social, etc. Mas aí são gêneros dentro do gênero, são nichos e autores específicos. DC e Marvel, mesmos os filmes, é entretenimento e é esse o papel deles, o resto é consequência, é da relação da própria obra de arte, do próprio quadrinho com o consumidor final que é o leitor”, completa.

Cerco ao trabalho artístico no Brasil

Além da polêmica decisão de Crivella, este ano também houve outras controvérsias a repeito de materiais artísticos e publicitários tidos como “impróprios”. Em abril, o Banco do Brasil veiculou uma propaganda onde atores com tatuagens e cabelos coloridos, além de uma personagem transexual apareciam na peça publicitária. O presidente Jair Bolsonaro decidiu vetar a campanha justificando que “a linha publicitária do banco havia mudado” e que era necessário “respeito à família”.

Outro caso que levantou polêmica foi a declaração do presidente criticando a Ancine (Agência Nacional de Cinema) e o filme “Bruna Surfistinha”, que retrata a vida de uma garota de programa, por conta do financiamento a produtos audiovisuais que o desagradam, e ameaçou extinguir o órgão caso financie produções como o do longa de 2011.

“Mudou o governo, chama-se Jair Bolsonaro. De direita, família, respeito às religiões. E quando você fala em Ancine, de uma forma ou de outra, tem dinheiro público lá. E aí você vai fazer um filme da Bruna Surfistinha? Eu não estou censurando. Mas esse tipo de filme eu não quero. Quer insistir? A gente extingue a Ancine. A primeira medida, tem o decreto, vem para Brasília a Ancine. Tirar do Rio? Qual o problema? Vai ficar na nossa asa aqui”, disse Bolsonaro.

Filmes com temática LGBT também foram alvos de Bolsonaro. Em agosto, o presidente declarou ter vetado a captação de recursos para produções cinematográficas que tratem de temas LGBT.

Um filme chama ‘Transversais’. Olha o tema: ‘Sonhos e realizações de cinco pessoas transgêneros que moram no Ceará. Conseguimos abortar essa missão”, disse Bolsonaro em uma live citando um filme em que teria vetado a captação de recursos.

Na semana passada, uma exposição de cartoons foi retirada do saguão da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. A razão disso foi por causa de cartoons que faziam críticas e ironias em relação ao presidente Bolsonaro, com imagens dele “lambendo as botas do presidente norte-americano Donald Trump”. Batizada de “O Riso é Risco — Independência em Risco”, a mostra trazia 36 obras de 19 cartunistas diferentes. Os trabalhos, em tamanho A3, tinham permissão de ficar no hall da Câmara até 19 de setembro.

Casos como esse mostram que a liberdade artística enfrenta uma forte oposição de políticos mais reacionários, que têm empregados formas de asfixiar a produção cultural no Brasil, sobretudo obras que tenham temática LGBT ou temas mais sensíveis. O que ocorreu na Bienal do Livro vai ficar marcado e deve servir de alerta contra a escalada da censura e do autoritarismo por agentes obscurantistas que estão na política atualmente.

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André Valeriano
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Jornalista, palmeirense, sonhador, defensor da liberdade e careta nas horas vagas.