Conflito Rússia-Ucrânia chega ao seu 36° dia sem sinal de solução real pelos meios diplomáticos internacionais

Francine Galbier
Vértice
Published in
8 min readMar 31, 2022
Imagem: Diário Mendoza Today
Imagem: Diario Mendoza Today

Passados 36 dias desde o primeiro ataque da Rússia contra a Ucrânia em 24 de fevereiro, a comunidade internacional ainda não chegou a uma solução diplomática capaz de cessar o conflito bélico entre os dois países.

Em 16 de março, a Corte Internacional de Justiça determinou a suspensão das operações militares na Ucrânia por 13 votos contra 2 (sendo esses contrários os juízes que representam Rússia e China). Na ocasião, o presidente ucraniano — Volodymyr Zelensky — comemorou afirmando em seu Twitter que “a Ucrânia obteve uma vitória completa em seu caso contra a Rússia”. Mas, se não houve recuo russo, qual seria a efetividade desta ordem?

Em primeiro lugar, a decisão processual emitida pela CIJ — que é o principal órgão do judiciário vinculado a Organização das Nações Unidas (ONU) — é de natureza cautelar e acontece por força de uma ação ucraniana calcada na alegação de que a justificativa russa de um suposto genocídio que estaria ocorrendo na região de Dombass não poderia legitimar o uso de forças armadas no território ucraniano e tampouco reconhecer novos Estados (sendo a presença de movimentos separatistas uma das camadas desse conflito).

Decisões cautelares, em suma, são proferidas enquanto se aguarda uma sentença final e pretendem preservar o direito material das partes envolvidas no processo. No estatuto da CIJ, essas medidas estão previstas no artigo 41 que diz "a Corte terá faculdade para indicar, se considera que as circunstâncias assim o exijam, as medidas provisórias que devam ser tomadas para resguardar os direitos de cada uma das partes” e que “enquanto se pronuncia a sentença, será notificada imediatamente a ambas as partes e ao Conselho de Segurança as medidas indicadas”.

Também é preciso que se preencham alguns requisitos jurisprudenciais como, por exemplo, 1) jurisdição prima facie (ou seja, a competência para julgar o mérito); 2) plausibilidade dos direitos (também chamado no direito nacional de fumus boni iuri, sendo necessário haver uma ligação entre as medidas cautelares e os direitos que aguardam decisão final); e 3) urgência e risco de dano irreparável (que se configura facilmente visto que há mortes de civis e ataques a alvos não militares — e que a Rússia nega).

Diante da demanda ucraniana, configurados os requisitos necessários, foram três decisões cautelares emitidas: a) a Rússia deveria suspender imediatamente as operações militares no território da Ucrânia — 13 votos contra 2; b) a Rússia deveria garantir que unidades militares ou armadas irregulares que possam ser por ela apoiadas ou dirigidas, assim como quaisquer organizações e pessoas apoiadas por ela, não tomassem nenhuma medida para promover operações militares — 13 votos contra 2; e c) Rússia e Ucrânia deveriam abster-se de qualquer ação capaz de agravar ou estender a controvérsia e dificultar sua resolução pela corte. — decisão unânime.

No centro dessa ação encontra-se a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, datado de 1948, sendo Rússia e Ucrânia países signatários do tratado, como diz a própria decisão emitida pela CIJ:

"27. Ukraine and the Russian Federation are both parties to the Genocide Convention. Ukraine deposited its instrument of ratification on 15 November 1954 with a reservation to Article IX of the Convention; on 20 April 1989, the depositary received notification that this reservation had been withdrawn. The Russian Federation is a party to the Genocide Convention as the State continuing the legal personality of the Union of Soviet Socialist Republics, which deposited its instrument of ratification on 3 May 1954 with a reservation to Article IX of the Convention; on 8 March 1989, the depositary received notification that this reservation had been withdrawn".

E, como previsto na convenção citada, em seu artigo IX, o órgão jurisdicional competente para julgar controvérsias em torno do tratado é a Corte Internacional de Justiça:

"Art. IX — As controvérsias entre as Partes Contratantes relativas à interpretação, aplicação ou execução da presente Convenção, bem como as referentes à responsabilidade de um Estado em matéria de genocídio ou de qualquer dos outros atos enumerados no art. III, serão submetidas à Corte Internacional de Justiça, a pedido de uma das Partes na controvérsia."

Curiosamente, em sua defesa, a Rússia atacou o requisito jurisdicional da Corte alegando que a mesma não teria competência para julgar a controvérsia porque não se tratava de uma disputa relacionada àquela convenção, uma vez que fazer referência ao termo “genocídio” não significaria invocar o tratado internacional em questão. O que Moscou quis dizer? Me parece um caminho argumentativo contraditório já que quem falou em um suposto genocídio como forma de justificar um primeiro ataque foi o próprio Vladimir Putin.

Agora começa outro “problema”. Sendo a CIJ responsável por comunicar os estados envolvidos e o Conselho de Segurança da ONU sobre as medidas determinadas, caberia então ao Conselho de Segurança garantir a aplicabilidade das decisões? Isso seria inviável até mesmo por conta da existência do “poder de veto”, ou, como é nomeado pela Carta das Nações Unidas, o “voto negativo”, que é conferido a alguns países que participam deste Conselho, entre eles a própria Federação Russa.

Basicamente o “veto” ou “voto negativo” é uma prerrogativa de todos os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos da América, China, França, Rússia e Reino Unido), que lhes confere o direito de impedir a aplicação de uma Resolução decidida. Por exemplo, se o Conselho determinar a adoção de medida X, a Rússia pode simplesmente vetar invocando o voto negativo e todos os outros membros não podem fazer nada a respeito.

Esse instituto, inclusive, é alvo de constantes críticas pela forma abusiva como é utilizado por alguns Estados-membros, sendo o exemplo mais evidente o caso Estados Unidos Vs Nicarágua, quando EUA — condenado pela Corte por terrorismo internacional — ou “uso ilegítimo de força” — não aceita se submeter a jurisdição e também veta a Resolução do Conselho de Segurança da ONU que o convocava a respeitar o direito internacional. Diante deste impasse, fica o questionamento: de que serve a existência de uma Corte Internacional de Justiça quando não há uma maneira eficaz para garantir que as sentenças proferidas terão efeito?

Para o professor Luis Fernando Baracho, mestre em Direito Internacional Público pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Relações Internacionais, se trata de um ponto de referência de legitimidade nas relações internacionais. “Não é apenas uma questão de solucionar tecnicamente um conflito à luz do Direito Internacional, mas de reconhecer que a discussão se dá por um sistema coletivo e técnico. Logo, levar o tema para Corte tem um viés de legitimidade e ter uma decisão favorável aumenta ainda mais a legitimidade da pauta do Estado favorecido pela decisão”.

Sobre a verificação do cumprimento de sentenças emitidas pela CIJ, Baracho explica que “não há, infelizmente, uma literatura extensa no Direito Internacional que verifique com base em evidências o cumprimento de sentenças da CIJ. Um dos poucos bons trabalhos, de Contanze Schulte, analisou casos entre 1940 até 2002. Ela verificou um elevado nível de cumprimento com as decisões em geral, mas baixo no que diz respeito às medidas provisórias. Isso significa que o sistema das medidas provisórias é irrelevante? Claro que não, afinal, a Corte não tem apenas a função de solucionar conflitos, mas também de pautar a sua legitimidade”.

Para ele, é nesse aspecto que a medida provisória concedida pela Corte deve ser percebida. “A Rússia está colocando o sistema internacional liberal no limite de sua existência. E a Corte é uma das maiores expressões desse sistema junto com a Assembleia Geral. Ora, poucos dias antes a Assembleia Geral deu a sua resposta com uma Resolução com amplo apoio como há muito não se via. A Corte reforçou essa ação. Apenas os juízes nacionais da Rússia e da China votaram contra, o que mostra uma convergência muito grande dos membros da Corte. É importante notar que maiorias apertadas são comuns na Corte. Nesse caso, o apoio foi muito grande”.

No que diz respeito a uma possível imposição da sentença por meio do Conselho de Segurança da ONU, Baracho explica que não é possível porque a Rússia tem poder de veto e, sendo assim, só restaria a legítima defesa como uso de força. “O problema é você recorrer a ela entre Estados que são potências nucleares. Nunca testamos isso e espero que continuemos assim. A questão [do poder de veto] é problemática mas foi o que garantiu a existência da ONU em 1945. Logo, sem isso, não teríamos a ONU. Tem problemas? Sim. Mas é o que teve pra ontem e é o que continua tendo pra hoje”.

Já o professor David Magalhães, doutor em Relações Internacionais e coordenador do Observatório da Extrema Direita, explica que nas relações internacionais as decisões de órgãos como a CIJ têm efeitos meramente condenatórios. “Isso se deve ao fato de inexistir uma polícia global para impor o que as instâncias jurídicas decidem à luz do direito internacional. Se torna ainda pior quando nos damos conta de que, assim como os EUA, a Rússia não é signatária do pacto que criou a CIJ”.

Para ele, a solução da crise por meio diplomático só seria eficaz mediante uma participação ativa de um ator poderoso e mais neutro possível. “A China é a única força política que pode ter papel decisivo como mediadora desse conflito. A ONU também não pode resolver o problema, porque as decisões nesse terreno passam obrigatoriamente pelo Conselho de Segurança, que conta com a possibilidade de veto russo. Assim ocorreu durante a Guerra Fria. O sistema de vetos produziu uma paralisia decisória do órgão.”

Por fim, ele avalia que a OTAN seria um último órgão que poderia atuar em nome da pacificação. “Ela não é apenas parte interessada, como está por trás das origens do conflito ao se expandir na direção do leste europeu produzindo na Rússia uma sensação de insegurança”, explica Magalhães.

Enquanto a comunidade internacional busca uma solução pelos meios diplomáticos e os dois países envolvidos não chegam a um acordo, Vladimir Putin assinou nesta quinta-feira, 31, um decreto ordenando a convocação de 134.500 novos soldados para o Exército Russo. Segundo informações da Reuters, o Ministério da Defesa da Rússia afirmou que o fato não teria relação com a guerra. Do outro lado, Zelensky disse hoje ao Parlamento de seu país que a guerra na Ucrânia está começando a se tornar rotina. “Não importa o quão assustador possa parecer, as pessoas já estão começando a se acostumar com isso”, lamentou.

Já a China, apontada como um possível agente importante para uma solução pacífica, mantém a neutralidade embora evite utilizar o termo “invasão” ao se referir a ação da Rússia no território da Ucrânia, sendo pressionada pelos países europeus e Estados Unidos a adotar uma posição “mais clara”.

As negociações entre Rússia e Ucrânia devem ser retomadas amanhã, 1 de abril, de forma virtual.

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