Crise na Amazônia expõe problema ambiental brasileiro ao mundo e bota em xeque governo Bolsonaro

Francine A. Galbier
Vértice
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11 min readAug 24, 2019

Por André Valeriano e Francine Galbier

23 de agosto de 2019, São Paulo. Manifestantes pedem providências sobre queimadas e desmatamento na Amazônia. Foto de Francine Galbier

Quando demitiu Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o presidente Jair Bolsonaro não poderia imaginar que ali seria o início da maior crise em seu governo, até agora, que o faria recuar diante da pressão popular e internacional.

Em 17 de julho, Bolsonaro questionou dados do Inpe sobre o aumento do desmatamento na Amazônia e lançou suspeitas sobre Galvão durante uma reunião com correspondentes internacionais em Brasília.

— Com toda a devastação que vocês nos acusam de estar fazendo e de ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido (…) e inclusive já mandei ver quem está à frente do Inpe para que venha explicar em Brasília esses dados que foram enviados à imprensa.

Pouco tempo depois, em 2 de agosto, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações confirmou que Galvão seria exonerado do cargo. Mesmo possuindo mandato até 2020, era a decisão do governo. Desde então, a questão ambiental virou destaque no Brasil e no mundo, com todas as distorções que a polarização ideológica tem para oferecer, mas elas não vem ao caso.

O dia do fogo

Em 10 e 11 de agosto, a derrocada. No Pará, um pequeno jornal da cidade Novo Progresso, sudoeste do estado, chamado de “Folha do Progresso”, convocava fazendeiros para um evento peculiar.

Amparados pelas palavras do Presidente Bolsonaro, produtores e/ou criadores da região da BR 163 planejam a data de 10 de Agosto para acender fogos em limpeza de pastos e derrubadas.

O Jornal Folha do Progresso conversou neste fim de semana com uma das lideranças, elas querem o dia 10 de Agosto para chamar atenção das autoridades que na região o avanço da produção acontece sem apoio do governo, precisamos mostrar para o Presidente que queremos trabalhar e único jeito e derrubando e para formar e limpar nossas pastagens é com fogo, argumentou”.

Mas foi na segunda-feira, 15, que algo Aronofskyano aconteceu na maior capital do Brasil. A cidade de São Paulo escureceu às 15h00 e do céu choveu sujeira. As imagens viraram destaque no mundo.

Cidade de São Paulo, durante o meio da tarde do dia 15 de agosto. Foto: Leila Germano.

Com o agravamento da crise ambiental na Amazônia, ontem (23), aconteceram protestos em cerca de 40 cidades brasileiras. Em outros países também houve atos em frente as embaixadas do Brasil.

Em São Paulo, a concentração se iniciou a partir das 18h, no vão do Museu de Artes de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, região central da capital paulista. Pouco depois, às 19h, os dois sentidos da via foram bloqueados pelos manifestantes até às 20h, quando começaram a caminhar e interditaram a Rua Augusta no sentido Jardins. Muitos usavam máscaras cirúrgicas, em referência a poluição do ar gerada pelas queimadas nas florestas . Pediram, sobretudo, a saída do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Novo)

A Bancada Vegana é uma iniciativa de ativistas dos direitos do animais. Foto: Francine Galbier

“Eu acho que claramente ele [Bolsonaro] acredita que a floresta vale mais tombada do que de pé”, disse Danielle Simões, uma militante da Bancada Vegana, grupo que defende o veganismo e o direito dos animais. “Com certeza ele acha que é mais importante que existam bois, exploração animal do que uma floresta preservada que, a meu ver, parece que ele até discursa dessa forma colocando a floresta como algo que tem que ser explorado e que tem que gerar dinheiro”, completou

“A gente sabe que é uma época de seca, entretanto, insinuar que as ONGs que fazem preservação ou que levantam a bandeira de preservação são as culpadas ou que podem ser as culpadas por isso é no mínimo leviano para tentar varrer a sujeira deles para debaixo do tapete”, declarou Yoichi Takase, também ligado ao grupo Bancada Vegana.

Ele se refere as declarações de Bolsonaro de que as recentes queimadas na Amazônia teriam sido provocadas por ONGs que atuam na região. “Quer que eu culpe os índios? Quer que eu culpe os marcianos? É, no meu entender, um indício fortíssimo que é esse pessoal de ONG que perdeu a teta deles, é simples”, declarou em entrevista à imprensa.

A declaração gerou reações de ONGs que atuam na preservação da floresta amazônica no Brasil. O WWF Brasil respondeu as acusações em nota oficial dizendo que a prioridade do governo deveria ser zelar pela Amazônia e não criar intrigas “sem base na realidade”.

“O WWF Brasil lamenta a nova tentativa do presidente Jair Bolsonaro de desviar o legítimo debate da sociedade civil sobre a necessidade de proteger a Amazônia e, consequentemente, combater o desmatamento que está na origem dos incêndios fora de proporção que assolam o País e comprometem a qualidade do ar em várias regiões”

Sobre a declaração de Bolsonaro, o deputado federal pelo PSOL de São Paulo, Ivan Valente, que acompanhou o ato na capital de São Paulo, rebateu dizendo que “essa ideia de que uma ONG pode botar fogo na Amazônia é uma grande mentira porque as ONGs são só estudiosas, complementares, são poucas pessoas”. “O que causa os incêndios é articulação por Whatsapp por madeireiros na Amazônia, estimulados pelo ministro Salles, o que é uma coisa criminosa no nosso país”, acrescentou.

Deputado do PSOL, Ivan Valente participou do ato pela Amazônia em São Paulo e criticou o ministro do meio ambiente Ricardo Salles. Foto: Francine Galbier

Para o deputado da oposição, Bolsonaro é o grande responsável pela crise ambiental na floresta amazônica e, segundo ele, o governo quer uma política de desmonte dos órgãos de fiscalização como o Ibama. “O principal responsável por isso é próprio Bolsonaro, que quer destruir a Amazônia, que não vê valor na biodiversidade brasileira e quer uma política que desmonta o Estado Brasileiro, inclusive os instrumentos de fiscalização, como o Ibama, ICMBio e assim por diante”.

Manifestante segura cartaz com críticas ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Foto: Francine Galbier

Ricardo Salles, apesar de levar o selo de nova política, tem se destacado de forma negativa por adotar uma postura considerada anti-ambientalista. No final de maio, mandou cortar 24% do orçamento anual que estava previsto para o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Os recursos cobririam três meses dos gastos do órgão neste ano. A redução do orçamento impactou nas ações de fiscalização no meio ambiente. Motivo pelo qual o tal dia do fogo aconteceu sem entreveros.

O mesmo corte também afetou o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade), também responsável por fiscalizar a conservação florestal. Não só isso, Salles causou também 4 saídas de servidores do ICMBio. O ministro determinou a abertura de um processo administrativo disciplinar contra um funcionário no Rio Grande do Sul. O motivo seria a ausência de representantes do órgão em um evento ruralista. No entanto, o ICMBio não havia sido convidado para o tal evento. Na época, funcionários divulgaram uma carta de repúdio à Salles, o presidente do ICMBio se demitiu e outros três diretores pediram exoneração.

A ativista pelos direitos do animais, Luli Sarraf, fundadora da ONG Celebridade Vira-lata, que esteve no protesto em São Paulo, criticou a postura do governo e as políticas ambientais adotadas. “Quando a gente fala de caça, e o Bolsonaro quer liberar a caça, a política dele de defesa animal é zero, é da morte”.

Para Sarraf, um dos grandes responsáveis pelo desmatamento na Amazônia é o ministro Ricardo Salles, que teria esvaziado órgãos de fiscalização ambiental no Brasil. “Ele [Bolsonaro] coloca uma pessoa que é do agronegócio, que é o Salles, um antiambientalista no Ministério do Meio Ambiente. Ele deu um aval para todo mundo: pro madeireiro, pro carvoeiro, pro minerador, pro pecuarista fazer o que tem sido feito na Amazônia”.

A Amazônia vira destaque mundial

A revista inglesa The Economist dedicou sua capa a crise ambiental no Brasil e declarou que o presidente brasileiro é “o chefe de Estado mais perigoso ambientalmente no mundo”.

A crise piorou após os governos da Alemanha e Noruega terem suspendido os repasses de dinheiro para o Fundo Amazônia argumentando que o governo brasileiro teria quebrado o acordo firmado com os países.

A Noruega bloqueou cerca de R$ 133 milhões, enquanto a Alemanha suspendeu o montante de R$ 155 milhões. Dinheiro destinado à preservação e fiscalização da floresta amazônica no Brasil. Bolsonaro, no entanto, fez pouco caso dizendo que a chanceler alemã, Angela Merkel, deveria usar o dinheiro para reflorestar seu próprio território. “Eu queria até mandar um recado para a senhora querida Angela Merkel, que suspendeu 80 milhões de dólares para a Amazônia. Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, ok? Lá está precisando muito mais do que aqui”.

Para piorar a situação, as declarações de Bolsonaro sobre a crise das queimadas agravou ainda mais a imagem de seu governo no mundo. O presidente da França, Emmanuel Macron, disse que o presidente brasileiro mentiu sobre assumir compromissos ambientais na cúpula do G20 no Japão e que iria se opor ao acordo de livre comércio firmado entre a União Europeia e o Mercosul.

“Dada a atitude do Brasil nas últimas semanas, o presidente da República [francesa] só pode constatar que o presidente Bolsonaro mentiu para ele na cúpula [do G20] em Osaka”, declarou o Palácio do Eliseu, sede do governo francês, em nota.

Já o filho do presidente e candidato a embaixador do Brasil em Washington, Eduardo Bolsonaro, compartilhou em sua conta no Twitter um vídeo que chama Macron de idiota, feito por um youtuber ligado ao bolsonarismo.

Candidato à presidência em 2014 e a vice em 2018 na chapa de Marina Silva, Eduardo Jorge criticou Bolsonaro e sua postura diante de líderes europeus após o acordo prévio entre o Mercosul e a União Europeia.

Eduardo Jorge esteve presente no ato em defesa da Amazônia que aconteceu no dia 23 de agosto em São Paulo, capital. Foto de Francine Galbier

“Ele é ridículo. Vocês sabem que isso, em termos de oportunidade de trabalho, de emprego, de desenvolvimento de comércio, da indústria, da agricultura brasileira é uma coisa extraordinária. Nós estamos na porta de assinar esse acordo e o que o presidente faz? Agride a Angela Merkel”, declarou Eduardo Jorge.

“A Angela Merkel é a maior estadista hoje viva no mundo: uma democrata cristã, humanista, que vem conduzindo e liderando o processo na União Europeia nesse momento de dificuldade no mundo inteiro e ele agride. O que ele quer com isso? Ele quer melar o acordo?”, questionou.

Outro que está preocupado com a piora da imagem do Brasil no mundo é o ex-ministro da Agricultura, Blairo Maggi, que declarou estar apreensivo com possíveis boicotes ao agronegócio brasileiro no mercado internacional.

“Corremos o risco de sofrer boicote às nossas exportações, a pressão dos consumidores e ambientalistas tende a aumentar e o Brasil pode perder mercado”, afirmou o ex-ministro.

As panelas voltaram

Após a má repercussão internacional e ameaças de boicote por parte de países do bloco europeu, Bolsonaro fez um pronunciamento pela Televisão e Rádio em cadeia nacional na noite de 23 de agosto, mesmo dia dos protestos. Em discurso em tom moderado, anunciou medidas de contenção das queimadas e do desmatamento da floresta amazônica como o uso das Forças Armadas para realizar a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) na Amazônia, por meio de um decreto assinado na tarde de sexta-feira (23) e publicado em edição extra do Diário Oficial.

Em seu pronunciamento, disse que “incêndios florestais existem em todo o mundo” e que “isso não pode ser pretexto para sanções internacionais”, referindo-se a possíveis boicotes de países europeus como a França.

“É nesse sentido que trabalham todos os órgãos do governo. Somos um governo de tolerância zero com a criminalidade, e na área ambiental não será diferente. Por essa razão, oferecemos ajuda a todos os estados da Amazônia Legal. Com relação àqueles que a aceitarem, autorizarei operação de garantia da lei e da ordem”, disse na gravação que foi ao ar ontem às 20h30 no horário de Brasília.

Porém, durante o pronunciamento, foram registrados panelaços em várias cidades e capitais do Brasil. O ato foi combinado na internet e registrado por moradores de São Paulo, Brasília, Recife, Salvador, Goiânia, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro.

Apesar de falas de Bolsonaro, ainda há muita coisa ser feita para combater o desmatamento e impedir o agravamento do aquecimento global.

O impacto ambiental do desmatamento da Amazônia

Segundo o INPE, foi constatado um aumento de 88% no desmatamento da floresta amazônica comparando junho de 2019 com junho de 2018. Com bases nos dados divulgados pelo órgão, o desmatamento tem crescido nos últimos anos a partir de 2013 e este ano deve superar o índice de 2018, segundo projeções do próprio instituto.

Gráfico do Inpe mostra que o desmatamento deste ano deve superar o do ano anterior. Fonte: INPE

Já em relação ao índice de queimadas na floresta amazônica, a NASA divulgou uma estatística na qual afirma que os dados parciais de 2019 são piores desde 2010. A NASA diz ainda que “apesar de a seca ter desempenhado um papel importante na intensificação dos incêndios em outras ocasiões, o momento e a localização das queimadas detectadas no início da estação mais seca de 2019 estão mais ligados ao desmatamento do que à seca regional”.

Gráfico produzido pela Nasa, com dados dos sensores do Modis, mostra a comparação de focos de queimada em 2019 com os anos de 2012 a 2018 — Fonte: Nasa

O desmatamento de florestas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) aponta em sua pesquisa que o desmatamento, é a segunda maior causa das mudanças climáticas, ficando atrás apenas da queima de combustíveis fósseis.

Cientistas também calculam que, se o desmatamento da Amazônia avançar, a floresta perderá sua capacidade de se sustentar e pode desaparecer com o tempo, alterando o clima no continente com períodos mais secos e com poucas chuvas, fenômeno descrito pelos cientistas como ponto de inflexão.

Metade das chuvas na Amazônia é gerada pela própria floresta, segundo aponta o editorial da revista Science Advances. Com a perda de umidade com o avanço do desmatamento, cientistas especulam que esse ponto de inflexão possa ser de 30% até 40% de floresta desmatada, o que está muito próximo de ocorrer caso o desmatamento não seja contido.

Um dos constituintes de 1988 e responsável pela criação do capítulo dedicado ao meio ambiente da Constituição Federal, Fábio Feldmann, destacou o problema do aquecimento global para os países do mundo, sobretudo ao Brasil, mas disse também que a reação frente ao desmatamento da Amazônia “é um sinal muito positivo” para o enfrentamento dos problemas climáticos e ambientais.

“Eu acho que é no mundo inteiro essa dificuldade, dada a uma série de fatores. No Brasil, a crise não nos auxilia, é um país que está com 14 milhões de desempregados, a agenda de preocupação da sociedade fica muito imediata, mas a reação que está ocorrendo no Brasil e no mundo no caso do desmatamento da Amazônia é um sinal muito positivo de mudança”, declarou Feldmann.

O ambientalista ressaltou ainda que o assunto é tradado pelo governo “como se fosse uma questão de crença” e não como ciência. Ressaltou também que, com as queimadas, se torna um dos principais emissores de poluição no mundo e que é preciso agir rápido para conter o estrago.

“Esse governo do Bolsonaro é um pouco como o governo Trump nos Estados Unidos, que trata a questão ambiental como se fosse uma questão de crença. Eu acho um desastre absoluto porque o espaço de tempo de agir é muito curto. Nós temos 30 anos para tentar mitigar a mudança no clima, o aquecimento global e reduzir as emissões, e o Brasil com essas queimadas se torna um dos principais emissores do planeta. Ou seja, a pressão sobre o Brasil será a cada dia maior.”

Já para Eduardo Jorge, é preciso primeiro que se tome medidas imediatas na postura do governo para conter a crise ambiental, a começar pela demissão do ministro Ricardo Salles.

“Então tem que pedir, como esse povo tá aqui pedindo: Brasília, governos estaduais, exército, polícia, bombeiros, povo da Amazônia, vamos controlar o incêndio, vamos contornar esse episódio agudo. Mas, eu não esqueço de dizer, se não apagar o principal foco de incêndio no Brasil que é a esplanada do ministério, esse fogo vai continuar incendiando e provocando prejuízos no Brasil de ponta a ponta”, completou.

São Paulo, 23 de agosto. Ato em defesa da Amazônia. Foto de Francine Galbier

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