Fomos na primeira convenção da Terra Plana no Brasil e isso foi o que vimos e ouvimos

Por André Valeriano e Francine Galbier

Francine Galbier
Vértice
11 min readNov 13, 2019

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A Flat Con 2019 foi a primeira conferência brasileira sobre terraplanismo. Its happening. Foto: Francine Galbier

Passado milênios desde a descoberta do grego Eratóstenes, que provou em um experimento o formato esférico da Terra, pessoas ao redor do mundo — em especial no Brasil — começam a questionar este consenso científico tão basilar ao defenderem que, na verdade, o nosso planeta seria plano e isso não é uma piada.

Aqui em Banânia (ou Brasil), os terraplanistas realizaram no último domingo, 10, a primeira convenção nacional sobre o assunto. O evento ocorreu no Teatro da Liberdade, no centro de São Paulo, em frente a uma loja maçônica… pois é.

A ironia do destino se deu por conta da dificuldade que os organizadores tiveram pra encontrar um teatro disposto a recebê-los. Os dois primeiros cancelaram por conta da temática e, assustados com "o assédio midiático", os responsáveis fizeram um mistério, resolvendo revelar o local definitivo apenas na noite anterior a conferência.

"Foram três lugares locados para o evento. Todo o processo de negociação, assinatura de contrato e pagamento foi tranquilo, mas o que ocorreu nos dois locais prévios é que houve uma abordagem intensa da mídia querendo polemizar. Então para evitar que tivesse o aliciamento da mídia que pudesse atrapalhar a realização do local, nós tomamos essa medida de preservar o local de conhecimento público, até não corrermos o risco de termos problemas mais uma vez", explicou Anderson Neves, um dos organizadores da Flat Con.

Ao descobrirem a proximidade do novo espaço com a maçonaria, alguns terraplanistas se revoltaram no grupo do evento no Whatsapp. "Totalmente decepcionado!! Não irei ao evento no templo dos construtores que rejeitaram nossa pedra angular que é nosso Salvador", reclamou um. "A Globo de repente filma a gente lá entrando e o símbolo maçônico no teatro, esse tipo de imagem roda o mundo", disse outro preocupado.

Duas terraplanistas entraram em um bate boca acalorado. Uma se recusava a ir enquanto a outra dizia que reclamar da maçonaria àquela altura era "mimimi". "Comem maçonaria, transgênicos, Bayer, medicamentos, Nestlé, Volkswagem, Boticário… agora vem aqui fazer mimimi. (…) Cuidado, eu se fosse você nem comia nem tomava mais remédio, porque maçonaria tá em tudo, minha linda.”

Loja Maçonica no bairro Liberdade, localizada em frente ao teatro onde aconteceu a Flat Con. Foto: Barbara Zaghi

"Bússula não aponta para o polo sul, todos os globalistas são filhos de gadu"

Filmamos alguns trechos do evento :)

Conversamos com Edson Douglas Neves, um simpático musicista e artesão que aproveitou o evento pra vender sua arte: miniaturas e réplicas da terra plana e chaveirinhos. Tudo feito com material reciclável. “Eu fui artesão por muito tempo da minha vida, hoje eu sou músico. Mas quando eu conheci a terra plana, ela me inspirou a voltar a fazer artesanato e eu decidi fazer pra este evento essas peças porque eu vi que as pessoas estavam querendo e aí pensei: “Ah, eu vou fazer alguma coisa”, contou.

Edson conheceu o terraplanismo por vídeos no Youtube. Quando soube do evento resolveu participar “a fim de buscar conhecimento” e tirar dúvidas sobre o assunto com os “especialistas”. “A terra plana para mim representa um “start”, uma abertura da mente, de visão de mundo, de uma nova cosmologia. Representa um direito de questionar, não devemos aceitar tudo”, completou o artista.

Teve de tudo que já era esperado. Os palestrantes foram desde ataques contra agências espaciais, explanações repetitivas em cima de memes toscos de “zapzap”, negação da gravidade, trechos do curso online de filosofia de Olavo de Carvalho, montagens e referências ao filme "Matrix" (1999), jargões batidos de teorias conspiratórias sobre a viagem do homem à Lua, citações a "máfia das vacinas", uso de sermões bíblicos como “provas” pra refutar a ciência e até uma apresentação inusitada de canção original gospel em karaokê sobre terraplanismo (esse foi, com certeza, o ponto alto e momento mais constrangedor da Flat Con).

A youtuber Prisca Côco resolveu cantar uma música de sua autoria durante sua palestra

“Eu não vou dizer que todas as agências espaciais do mundo mentem. Eu vou é mostrar!”, afirmou o youtuber Bruno Alves para a plateia. Logo em seguida, mostrou vídeos de astronautas flutuando em estações espaciais que, segundo ele, são imagens com efeitos especiais com "as mesmas técnicas usadas em filmes de Hollywood”.

A afirmação de Bruno sobre a Nasa e outras agências espaciais de vários países ao redor do mundo é corroborada por outros terraplanistas que foram prestigiar o evento, como Oswaldo Corrêa e sua esposa Patrícia. Ambos também conheceram o terraplanismo pelo Youtube e disseram que há um conluio entre agências espaciais para esconder a verdade sobre o formato da terra.

“Há quem questione [a terra plana] utilizando modelos bíblicos, mas a terra globo é defendida por modelos de imagens de CGI (computação gráfica). A Nasa seria uma entidade religiosa”, diz Oswaldo. “É muito dinheiro envolvido, é muita questão em jogo e por isso que todas as agências espaciais estão juntas em informar certas coisas pro povo porque não é do interesse deles que saibamos a verdade", completou Patrícia.

Porém, engana-se quem acredita que os adeptos do terraplanismo se resumem a meros especuladores do formato do nosso planeta ou críticos da Nasa. Um dos convidados para palestrar a Flat Con foi o youtuber Douglas Aleodin, que possui um canal com mais de 100 mil inscritos e chegou a gravar um vídeo para o evento, mas que não foi exibido para o público por fazer críticas a maçonaria.

Douglas, além de produzir conteúdo defendendo o terraplanismo, é também militante político e apoiador convicto de Jair Bolsonaro. Mais recentemente, também passou a propagar teorias conspiratórias sobre vacinas, em especial a dose contra o HPV, fazendo alegações de que seriam inseguras e citando supostos casos de mortes ou complicações decorrentes da vacinação no Estado do Acre.

Em setembro, a agência de checagem Aos Fatos publicou uma reportagem mostrando como a desinformação fez com que parte da população jovem deixasse de tomar a vacina contra o HPV no Acre. A agência de checagem mostrou ainda que muitos dos relatos feitos por pessoas que vacinaram seus filhos e tiveram supostas complicações decorrentes da vacina eram falsos, não tendo qualquer relação entre os problemas de saúde com a dose da vacina.

Em outro vídeo, o youtuber lança dúvidas sobre a segurança de vacinas contra doenças como o sarampo e incentiva seu público a não se vacinar. Assim como Douglas, outro palestrante (e também youtuber) Siddhartha Chaibub, dono de um canal com quase 30 mil seguidores, comentou sobre o que chamou de “farsa das vacinas” durante uma longa e entendiante apresentação de montagens cafonas. Para ele, se todos entendessem a terra plana "o mundo seria melhor".

“Eles não entendem como seria se a humanidade tivesse o entendimento de todo universo. A possibilidade de recursos limpos, energia gratuita — assim como alimentação — o nível de saúde dessas pessoas… a gente não teria tantos venenos como essa questão inclusive da farsa das vacinas, da indústria das vacinas”, diz Chaibub para a plateia. Em outro momento, se utilizando novamente de memes e imagens relacionadas ao longa Matrix, Siddhartha declarou que grupos ocultos — dentre eles a mídia — “escravizam a humanidade” e a ciência moderna seria "uma farsa".

Meme que circulou pelo grupo de whatsapp do evento mostra "a rede da elite global".

O componente conspiratório e o negacionismo científico de terraplanistas também é embasado na religião. Muitos dos que estavam lá, inclusive os palestrantes, se utilizavam de passagens bíblicas para justificarem suas crenças no modelo plano.

“Saber que a terra é plana muda o que na minha vida? Você terá a certeza que existe o Deus único e criador. Saberá e crerá que as Escrituras Sagradas são as suas palavras e que Jesus Cristo é o único Senhor e Salvador. Você verá na prática que conhecendo a verdade ela lhe liberta. Você voltará a sua origem com melhor comunhão com o seu Deus”, diz um membro do grupo de Whatsapp feito para os que compraram o ingresso da Flat Con.

Outra palestrante youtuber, Priscila Bandeira, a "Prisco Côco", dona de um canal de youtube com mais de 150 mil seguidores, declarou para a plateia do auditório que ela teria sido escolhida por Deus para estar lá. “A Terra plana é simples e para gente simples”, disse Priscila ao frisar que a teoria conspiratória faz as pessoas “se aproximarem do Criador”.

Canais sobre terraplanismo estão ganhando mais audiência na internet neste ano, principalmente com a divulgação de pessoas influentes na política nacional como o ideólogo Olavo de Carvalho, o guru do governo Bolsonaro. Em maio, Olavo passou a dar crédito aos terraplanistas e até recomendou canais sobre o tema — que também propagam conteúdo antivacina.

Vídeos de Olavo de Carvalho atacando cientistas já consagrados e defendendo teorias conspiratórias são comuns no grupo da Flat Con.

Olavo foi citado em algumas ocasiões por palestrantes da Flat Con e também apontado como um dos responsáveis pela "conversão" de pessoas ao terraplanismo.

“Gente, confesso que aquilo que me atraiu para pesquisar tudo sobre “terra plana” foi o experimento do barco que não some no horizonte (risos), e agradeço ao professor Olavo de Carvalho, pois foi assistindo a uma aula dele que soube sobre as pesquisas”, diz um membro do grupo da Flat Con no Whatsapp.

Terraplanistas possuem diversos stickers personalizados pra zoar nós, os “globoloides”.

Neste grupo, não só há envio de mensagens sobre terraplanismo mas também discussões sobre política com discursos similares aos usados pela extrema-direita para atacar o “establishment”, o “sistema”, além de pautas comuns como a negação do aquecimento global e a conspiração pra "tomar a Amazônia". “Macron e outros sempre teve de olho nas riquezas que só Amazônia tem", diz um membro do grupo se referindo ao caso das queimadas na Amazônia e o incidente diplomático envolvendo Bolsonaro e o presidente francês Emmanuel Macron.

O crescimento desse fenômeno conspiratório no Brasil tem sido mostrado por pesquisas recentes. De acordo com o Datafolha, 7% da população brasileira acredita que a Terra é plana, o que equivale a 11 milhões de pessoas. Além do problema estrutural da educação, outro fator que corrobora com esse fenômeno é a própria internet — com ênfase nas redes sociais e principalmente no Youtube.

Para o cientista social e doutor em sociologia pela USP, Lenin Bicudo Bárbara, a abundância de informação e a riqueza do “mercado de ideias” pode ter um efeito desorientador.

"Temos acesso a muita informação, mas muita informação contraditória. E não é sempre fácil avaliar a qualidade de cada ideia a que temos acesso. Na prática, precisamos de atalhos, de meios que facilitem nossa tomada de decisão, que permitam resolver tais contradições. A confiança na palavra do outro é um desses facilitadores", explica. "Mas a confiança na palavra do outro, se por um lado é indispensável, por outro tem um custo. Podemos, por exemplo, depositar nossa confiança na fonte errada".

Lenin explica que o sentimento de empoderamento que essas pessoas experimentam ao acharem que "acordaram da Matrix" é, sem dúvida, um fator decisivo na dinâmica de todo grupo criado em torno de ideias conspiratórias.

"Participar de um círculo que detém um conhecimento “para poucos” proporciona aos membros desse círculo um senso de distinção em relação ao resto da sociedade. Trata-se além disso de um conhecimento em certo sentido perigoso. Um terraplanista pode não arriscar sua vida ao desmascarar a “conspiração” sobre o formato do nosso planeta, mas arrisca algo muito importante para todos nós: sua reputação” diz o sociólogo.

“Ele sabe muito bem que a maior parte das pessoas vai fazer pouco caso de suas ideias. Sabe que encontrará rejeição. Mas essa rejeição pode ser racionalizada como sinal de coragem. Não é qualquer um que tem coragem de dizer que a terra é plana. E não é só: ao se associar a um grupo de pessoas que compartilham da mesma ideia, um indivíduo especialmente corajoso e bem articulado pode, com isso, alçar-se a uma posição de destaque dentro desse grupo", completa Lenin.

Roberto Dell’Aglio, professor do Departamento de Astronomia da USP, acredita que uma das causas do aumento de adeptos do terraplanismo é o excesso de informação sem curadoria.

"Todo mundo sabe que a Terra não é plana, que ela é redonda. Os gregos já sabiam disso há mais 2500 anos atrás, não é nenhuma novidade isso. Desde que Galileu inventou o telescópio, no começo do século 17, se sabe que todos os corpos celestes são redondos, que planetas todos são redondos, por que a Terra deveria ser plana? Não faz o menor sentido em diversos aspectos", diz.

O professor ainda explicou como a ideia da terra plana não faz sentido citando o eclipse lunar e a impossibilidade do fenômeno ocorrer dentro do modelo terraplanista.

"O argumento mais simples, mais fácil de entender e provavelmente o mais antigo é o chamado “argumento grego”. Os gregos sabiam que, nos eclipses lunares, a sombra da Terra projetada na Lua é sempre um círculo. O que é o eclipse lunar? O eclipse lunar ocorre sempre nas luas cheias quando a Terra se coloca entre o Sol e a Lua e a sombra da Terra é projetada na Lua, isso é o eclipse lunar. Mas agora veja só, se o eclipse ocorre em torno da meia-noite quando o Sol está de baixo dos nossos pés e a Lua acima da nossa cabeça, se a Terra fosse uma pizza, ainda assim a sombra da Terra projetada na Lua seria um disco. Mas se fosse uma pizza e o eclipse ocorresse não na meia-noite, mas logo no início da noite com a Lua subindo no horizonte leste, se a Terra não fosse redonda, a sombra da Terra projetada na Lua não seria um disco, seria uma faixa ou uma barra e os gregos constataram isso. Não importa a hora da noite que o eclipse ocorrer, a sombra da Terra na Lua é sempre um disco, portanto, a Terra é redonda. Esse argumento é bem simples e completamente irrefutável", explica Dell'Aglio.

"Tem outro argumento muito simples também que qualquer pessoa pode constatar: é o fato de você observar estrelas como, por exemplo, as três Marias. Se você observar as três Marias em um determinado dia do ano, uma certa hora da noite, você vai ver que ela vai tá em uma altura diferente da linha do horizonte se você observar de São Paulo, Rio de Janeiro, de Belém do Para, Porto Alegre, ou seja, se você observar de diferentes latitudes, a mesma estrela no mesmo dia do ano e no mesmo horário da noite, vai mudar. Ela não vai estar na mesma altura na linha do horizonte. A única maneira disso acontecer é a Terra sendo redonda. Além do fato de que todos os demais planetas que a gente pode olhar com um telescópio da Terra são redondos, os planetas e os satélites dos planetas são redondos. Não precisa de conhecimentos técnicos, não precisa de computação gráfica, não precisa de fotografia, basta mero bom senso que a gente entende isso", aponta.

Já o escritor e filósofo Luiz Felipe Pondé destaca a paranoia dos conspiracionistas. "Eu também acho que isso é um componente paranoide porque na irrelevância e na invisibilidade da pessoa, ela acha que sacou que o homem não foi à Lua, ela acha que sacou que ela é na verdade o Neo do Matrix”, diz Pondé. “É o preço que se paga pela complexidade da realidade, pela dificuldade de organização dos dados cognitivos e pelo fato de que, no final das contas, nós não temos absoluta certeza das coisas e essas pessoas paranoicas e irrelevantes acabam assumindo que esse fato da complexidade da dificuldade é na verdade um manto que esconde a simplicidade da realidade".

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