No Distrito Federal, toda nudez não será só castigada mas também multada em R$5 mil

Francine Galbier
Vértice
Published in
4 min readAug 27, 2020
Ilustração: Eric Balbinus

O retrocesso continua se espalhando pela política brasileira.

Na última terça-feira (18), a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou em primeiro turno um projeto de lei que pretende censurar expressões artísticas com nudez ou que “atentem contra símbolos religiosos”. Ontem, quarta-feira (26), aconteceu o segundo turno da votação que se encerrou sem conclusão por falta de quórum. O assunto será retomado na próxima terça-feira (1 de setembro) e depois caberá ao governador Ibaneis Rocha (MDB) sancionar a legislação ou não — mas no fim do dia não deverá vigorar pois se trata de um texto inconstitucional que acabará revogado cedo ou tarde.

Se trata de um desdobramento da histeria propagada por grupos de direita nos episódios Queermuseu e La Bête — MAM-SP em meados de 2017, quando obras de artes foram atacadas e acusadas de “vilipêndio religioso”. Na esteira disso, Rafael Prudente (MDB) resolveu apresentar o PL com o objetivo de “proibir a nudez em atos públicos onde não se possa classificar a idade” prevendo uma multa de R$5 mil para quem descumprir a norma.

O problema aqui se manifesta em três pontos: 1) a sexualidade ainda é um tabu no Brasil; 2) intenções religiosas se misturando com elaboração de legislação não devem ser permitidas pois o Estado — pasme! — é laico; 3) muitos parlamentares parecem não conhecer a Constituição Federal e seguem legislando em contradição ao que diz o texto de 88.

A Constituição Federal é explícita ao dispor que “é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”. Mas o deputado estadual Rafael Prudente resolveu “interpretar” o que não é passível de interpretação mesmo que o constitucional neste caso não tenha deixado brechas para isso. “É fundamental diferenciarmos o que é uma expressão artística daquela em que o sexo explícito e as diversas formas de parafilia (pedofilia, sadomasoquismo, zoofilia, etc) são expostos, os quais se constituem em atos que ferem, que atentam contra valores arraigados da sociedade brasileira”, mugiu o deputado em sua proposta. São tantos níveis de ignorância apresentados no PL em questão que fica até difícil mensurar.

PL 1958/2018, da CLDF

Imagine o dia que o tal deputado do DF e seus colegas que embarcaram neste delírio descobrirem que a nudez está presente na arte desde seus primórdios, assim como o questionamento religioso. Não vou nem entrar em debate sobre essa ladainha de parafilia/zoofilia e outras coisas apontadas por Prudente porque ele mente com fins eleitorais usando termos específicos que sensibilizam fundamentalistas religiosos — isso dá muito voto, não é mesmo?

Em contrapartida, o deputado Fabio Felix (PSOL) apresentou um substitutivo que altera a estrutura do PL, reforçando a classificação indicativa em exposições e apresentações mas deixando claro que não deve existir intervenções no conteúdo artístico. O texto diz que “é livre a produção artística em exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público, tais como as circenses, teatrais, shows musicais, exposições e mostras de artes visuais, inclusive para exibir nudez e símbolos que identifiquem grupos religiosos, políticos ou sociais”.

A OAB-DF se manifestou em ofício encaminhado à Rafael Prudente, que também é o presidente da Câmara Legislativa do DF, dizendo que “a autoridade para a iniciativa e o instrumento legal escolhidos não têm como prosperar, seja porque violam a Constituição Federal e tratados internacionais, seja também porque o que pretende coibir acaba por ter consequências confusas para o respeito a textos e representações religiosos, por não equacionar adequadamente o que é pornografia e o que é conteúdo religioso, e olvidar a relação que há entre um e outro na tradição (…) O projeto proíbe textos que violem símbolos religiosos ou exponham pornografia. A rigor, o projeto proíbe o Velho Testamento cristão e a Torá judaica”.

Qual seria o próximo passo dos parlamentares do DF que querem “proteger a família”? Proibir que brasilienses visitem a Capela Sistina? Impor que as pinturas Renascentistas sejam removidas dos livros de história? Retirar esculturas de museus? Censurar a própria História da Arte?

Talvez eles estejam vivendo em alguma realidade distópica e paralela em que não há laicidade de Estado e tampouco uma pandemia mundial gerando a maior crise sanitária do século no Brasil. Só isso poderia explicar a empreitada de censura que está tomando o tempo dos nem tão nobres parlamentares.

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