O Bolsonarismo e o macarthismo caipira

Eric Balbinus de Abreu
Vértice
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5 min readAug 11, 2020
Gabriela Biló / Estadão

O ruidoso deputado estadual Douglas Garcia revelou que aquele dossiê elaborado de forma ilegal por seu gabinete foi enviado a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro. A afirmação provocou furor, já que temos duas práticas criminosas em sequência: primeiro é um legislador estadual que decide empreender um macarthismo a partir da ALESP. Depois é o deputado federal que há pouco aspirava chefiar a embaixada brasileira em Washington repassando informações de cidadãos brasileiros a um governo estrangeiro.

O documento formulado de forma ilegal continha mais de cinquenta páginas, com dados pessoais, fotografias e outros detalhes a respeito de cidadãos que se declararam “antifascistas” nas redes. Douglas sabe bem que o dossiê é criminoso, tanto que negou ser o autor da peça. Sobre ter repassado as informações ao filho do presidente Douglas merece algum crédito, afinal de contas a afirmação se deu no âmbito do processo que ele responde após ser enquadrado pelo Ministério Público de São Paulo por violar direitos dos cidadãos envolvidos e por solapar as funções atribuídas a um deputado estadual (que obviamente não incluem espionagem).

Reparem que o bolsonarismo desenvolveu certa obsessão pela inteligência: um dos motivos que provocou a queda do juiz federal Sérgio Moro do Ministério da Justiça foi o desejo expresso pelo presidente de interferir na Polícia Federal do Rio de Janeiro e a ordem para que os órgãos repassassem a seu gabinete os tais “relatórios de inteligência”. Para bom entendedor, pingo é letra: municiado de informações contra adversários Jair aniquilaria opositores e teria o caminho livre para a consolidação do seu Reich de mil anos. Quando o bufão Douglas Garcia anunciou em suas redes a confecção do tal dossiê, logo foi enquadrado pelas autoridades pela flagrante ilegalidade. O que não se sabia é que quase ao mesmo tempo outro dossiê era elaborado — este por mãos mais habilidosas que a do soldado bolsonarista na ALESP. Foi na SEOPI, a Diretoria de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça que se forjou um dos maiores atentados ao estado democrático desde a posse do atual governo. Chefiada pelo pastor André Mendonça, a pasta monitorou mais de quinhentos servidores públicos que se identificaram como “antifascistas” nas redes. Quando o jornalista Rubens Valente revelou a conspirata, só restou ao ministro terrivelmente evangélico negar — para depois admitir e se refugiar no cinismo típico do governo que integra.

Mas o que eles tanto temem? Antes de tudo é preciso dizer que não há no horizonte qualquer ameaça de terrorismo por parte de grupos relacionados a extrema-esquerda como pretende a narrativa bolsonarista, que de forma proposital confunde “antifascistas” com “antifas” (sendo que antifa sequer é ideologia, mas uma estratégia de mobilização). Na ausência de um adversário real o bolsonarismo que vive de conflitos forja uma suposta ameaça, elegendo para moinho de vento os antifascistas. Claro, em meio a teorias da conspiração são praticados crimes bem reais. Além do uso do Estado contra opositores, assédio e monitoramento de cidadãos também são praticados crimes de lesa-pátria, como a entrega destas informações a um governo estrangeiro. Não se sabe ainda se isto de fato ocorreu ou se é apenas fanfarronice dos parlamentares para botar medo em adversários da esquerda e fortalecer discursos, porém a mera conjectura já nos alerta sobre a total falta de caráter do grupo. Vejamos o que diz a lei a respeito:

LEI Nº 7.170, DE 14 DE DEZEMBRO DE 1983.

Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

TÍTULO I

Disposições Gerais

Art. 1º — Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão:

I — a integridade territorial e a soberania nacional;

Il — o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito;

Ill — a pessoa dos chefes dos Poderes da União.

Art. 2º — Quando o fato estiver também previsto como crime no Código Penal, no Código Penal Militar ou em leis especiais, levar-se-ão em conta, para a aplicação desta Lei:

I — a motivação e os objetivos do agente;

II — a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no artigo anterior.

Art. 3º — Pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, reduzida de um a dois terços, quando não houver expressa previsão e cominação específica para a figura tentada.

Parágrafo único — O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução, ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.

Art. 4º — São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não elementares do crime:

I — ser o agente reincidente;

II — ter o agente:

a) praticado o crime com o auxílio, de qualquer espécie, de governo, organização internacional ou grupos estrangeiros;

b) promovido, organizado ou dirigido a atividade dos demais, no caso do concurso de agentes.

Aqui parece bem claro: Eduardo e Douglas atentam contra a Segurança Nacional, exatamente o que não foi feito pelos servidores que foram espionados pela pasta do ministro André Mendonça. Em 2020 temos o exemplo do que foi feito durante os terríveis anos do macarthismo nos Estados Unidos, com a diferença de que ali havia o império da lei e do Estado Democrático de Direito. Apesar de violações as instituições souberam conter os ímpetos autoritários do senador alcoólatra que sob a fachada de anticomunista se vendia como modelo do bom patriota americano. O bolsonarismo é pior, já que requenta estes medos em nome de um projeto de poder familiar. Até agora este macarthismo caipira não teve consequências maiores, mas apenas porque os Bolsonaro ainda não conseguiram a meta maior que solapar a democracia brasileira. Talvez porque, parafraseando o general Heleno quando Jair quis mandar tropas para o Supremo Tribunal Federal, “ainda não é o momento”. Apesar de dolorosa, a conclusão mais óbvia é de que a desenvoltura com que a família Bolsonaro incorre nestes crimes sem que se desenhem qualquer punição talvez seja o mais acabado atestado da falência institucional brasileira, o que reduz o grupo do presidente a mera condição de animais carniceiros.

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Eric Balbinus de Abreu
Vértice

Bacharel em R.I, pós-graduado em Ciência Política e cursando MBA em Desenvolvimento Sustentável. Centrista e Corintiano, claro.