O tratamento desigual para o que é desigual

Eric Balbinus de Abreu
Vértice
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4 min readSep 29, 2020
Operários, Tarsila do Amaral

Um programa de trainee lançado por uma gigante do varejo incendiou os debates nos últimos dias. Grupos acusaram a empresa de descriminação contra brancos, falou-se até em racismo reverso. A disputa política envolveu até políticos anunciando representações contra a empresa no Ministério Público. Apesar da revolta, o Ministério Público do Trabalho disse o óbvio: não há qualquer ilegalidade no ato. Isso porque a Constituição de 1988 estabelece o princípio de igualdade. Não é exatamente a igualdade pregada por estes grupos, e sim o tratamento desigual para quem é desigual. O ponto por trás da controvérsia está no artigo 5, que segundo os opositores de qualquer tipo de política social ou ação afirmativa é a razão para rotular o programa de trainee para negros como “flagrante ilegalidade”.

Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

Se o argumento da empresa é equilibrar a presença de negros nos cargos de gerência após identificar uma desproporção com relação a colaboradores brancos, os chamados “liberais do Alabama” alegam que deve imperar o princípio de igualdade previsto no Artigo 5º. O que mostra que desconhecem o direito. Quem explica é o jurista Nélson Nery Júnior em seu livro Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal.

O Artigo 5º, caput, e o inciso n. I da CF de 1988 estabelecem que todos são iguais perante a lei. Relativamente ao processo civil, verificamos que os litigantes devem receber do juiz tratamento idêntico. Assim, a norma do artigo 125, n. I, do CPC, teve recepção integral em face do novo texto constitucional. Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades

Sim, justiça é isso. Imagine se a Constituição fosse interpretada como querem os liberais do Alabama… É este princípio que coloca em legalidade a criação de legislações específicas contra o racismo, violência contra a mulher, direitos dos povos tradicionais, dos imigrantes, refugiados e minorias diversas. A lei 7.716/1989, conhecida historicamente como Lei Caó (em referência ao seu autor, o deputado federal Carlos Alberto de Oliveira). A legislação surgiu mesmo após a Constituição ter definido o que é disposto no Artigo 5°, já que o fomento da cidadania demandava a proteção específica de negros e pardos. Isso pode ser ilustrado com os exemplos do caixa de atendimento preferencial ou do assento preferencial do transporte público. Imagine o garotão voltando da academia e a idosa octogenária. O senso de igualdade dos liberais do Alabama entende que o atleta tem a mesma prerrogativa que a velhinha pelo banco. Se ele se sentar enquanto a frágil senhora fica em pé ou enfrenta a fila do caixa com ele, isso é problema dela. Afinal, os dois são iguais.

Claro, é preciso saber interpretar o que está por trás de certos argumentos. Por aqui há muitos saudosistas dos tempos coloniais. Muitos que não sabem viver no sistema proposto pela democracia liberal. Desejam manter para si privilégios, um sentimento claro de ordem baseada no que chamam de mérito (e que só pode ser conquistado por conta do parasitismo institucionalizado). Por esta razão uma deputada que passou anos atuando no judiciário, recebendo altos salários e penduricalhos se vê a vontade para expor racismo nas redes contra quem ousa empregar negros em um programa de trainee. Para a excelentíssima excrecência, este lugar pertence aos seus filhos. Por acaso é a mesma senhora que se acha esforçada porque na infância vendia quitutes para pagar por aulas de tênis. De acordo com o senso estabelecido pelos liberais do Alabama, a deputada e ex-procuradora do Distrito Federal se enquadra nos mesmos critérios daquelas crianças dos rincões do Brasil. Ela própria entende as coisas assim, tanto que advoga junto ao presidente aspirante a carniceiro pela volta do trabalho infantil.

Perceba que este prisma institucionaliza o império da selvageria. Porque a sociedade é composta por elementos que historicamente concentram força, influência política, midiática, poder financeiro e acesso a ferramentas que garantem seus interesses, enquanto outra parcela possuí pouco ou quase nada. Há muita peculiaridade em nossas diversidades, muitos elementos distintos formam a coletividade que conhecemos como sociedade. Correntes distintas como o cristianismo e iluminismo, movimentos sindicais, os ativismos pelos direitos civis, contra o colonialismo e pelos direitos femininos, todos apontaram para distorções que de forma muito lenta pautam o direito e garantem a compreensão das desigualdades. A partir daí, tratar os que pertencem a estes contextos como quem se dirige aos senhores é desconsiderar a carga histórica que carregam, o que perpetua de forma ainda mais sórdida a injustiça.

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Eric Balbinus de Abreu
Vértice

Bacharel em R.I, pós-graduado em Ciência Política e cursando MBA em Desenvolvimento Sustentável. Centrista e Corintiano, claro.