Retrato cotidiano de um projeto de país

Eric Balbinus de Abreu
Vértice
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2 min readAug 25, 2020

Um desabamento na cidade de Mauá serve mais para retratar o país produzido pelas elites brasileiras que qualquer grande tratado sociológico: em um bairro periférico de uma cidade da Grande São Paulo, uma construção feita sem qualquer planejamento desaba. Nenhuma vida se perde, mas ao menos três famílias são impactadas com o acidente.

Os engenheiros de obra-pronta logo assumem que a culpa é dos irresponsáveis que constroem seus puxadinhos sem planejamento técnico. De forma superficial é isso mesmo. Mas estas residências são construídas por famílias sem qualquer acesso a informação, que dispõe de recursos limitados para a construção de seus lares.

Porque os que dispõe de recursos para construir com planejamento não vão morar nestas zonas periféricas. Ninguém constrói de forma irregular por ser um inveterado criminoso, nem todos estes empreiteiros amadores são milicianos da Muzema. São trabalhadores, pardos ou pretos, com pouca ou nenhuma instrução que migraram até os grandes centros em busca de melhores oportunidades. Encontraram cidades já superlotadas, metros quadrados caríssimos que demandam suas mão de obra barata sem oferecer abrigo.

São admitidos sim, mas como os invisíveis que operam o trabalho pesado, que entregam comida, cuidam das crianças, atuam no chão de fábrica ou nos galpões de logística. Se quiserem morar tem que ser a vinte ou trinta quilômetros de distância do trabalho.

As casas são quase todas como a vizinhança do imóvel que desabou em Mauá. Paredes sem reboco, puxadinhos, imóveis retangulares e estreitos. Quase tudo precário, terrenos irregulares, difícil acesso. Em bairros periféricos se constrói o quanto se poder, as casas são ampliadas conforme as famílias se estabilizam financeiramente. Montes de areia e tijolos nas calçadas e vizinhos se juntando para encher laje fazem parte do cotidiano. Se o planejamento urbano que empurra esta massa para estas áreas (muitas vezes morros ou mananciais) é tão precário, por qual razão o planejamento das obras não seria?

Mas vejam só, não é só o planejamento urbano ou das construções irregulares que é deficiente. O projeto de país também é. Nossos infelizes pais fundadores não imaginaram o Brasil como uma sociedade, mas como uma massa tocada por uma pequena elite rural, funcionários da Coroa e alguns destacados profissionais liberais que exerciam sobre a massa de miseráveis (quase todos pretos de tão pobres ou pobres de tão pretos) uma versão piorada da já trágica conjuntura social do decadente reino português, que a época já representava o atraso do velho continente. Não formularam políticas públicas, jamais pretenderam estabelecer aqui uma sociedade — já que isto significa na prática reconhecer tipos como os moradores do bairro Itapark como merecedores de algum cuidado. No fim é tudo como naquele vídeo triste: só gritos, desespero e tragédia em meio a poeira que a tudo envolve.

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Eric Balbinus de Abreu
Vértice

Bacharel em R.I, pós-graduado em Ciência Política e cursando MBA em Desenvolvimento Sustentável. Centrista e Corintiano, claro.