Donzela da Tumba

Encontros Pendrake — NQ1

Rafão Araujo
Reduto do Bucaneiro
5 min readMar 8, 2021

--

Eu tinha resolvido retornar à cripta de lady Methilde de Llorvast, em parte para recuperar os restos mortais de meu antigo assistente Jek, mas principalmente em busca de vingança contra a donzela da tumba que o havia matado. Obtive a melhor arma possível no combate a um monstro mekânico como esse: os serviços de um certo Uriah Graydon, um membro da companhia mercenária dos Cães do Diabo, que ganham a vida caçando gigantes-de-guerra. Embora essa talvez seja uma profissão tola e suicida, os Cães do Diabo foram-me altamente recomendados e, para a solene tarefa de vingar um velho amigo e recuperar seus restos mortais, eu queria os melhores, não importavam as despesas.

Avistar a velha tumba mais uma vez provocou-me arrepios. Não consigo tirar da mente a imagem daquela assassina de ferro, esperando do outro lado das portas imensas, para terminar o que começou meia década atrás. A porta da câmara interna, uma escotilha mekânica complicada semelhante aos cofres dos bancos de Caspia, seria um absoluto empecilho para um intelectual como eu, e exigira de Jek uma hora para que ele passasse da primeira vez. Contudo, Uriah atacou a entrada sem pestanejar. Com alguns goles de sua garrafa, duas chaves cygnaranas e uma torrente de profanidades que faria um marinheiro órdico corar, a porta rangeu e entreabriu-se. Era um caminho apertado, e não seria útil no caso de uma retirada rápida, mas conseguimos entrar em questão de apenas alguns minutos.

Esprememo-nos passando pelas engrenagens e molas arruinadas, o que foi uma façanha e tanto para o físico tordorano avantajado de meu companheiro, e não encontramos nada além de escuridão lá dentro. Acendi minha lanterna, pronto para enxergar um quadro daquele dia de tantos anos atrás, mas, em vez disso, tive uma surpresa mais sinistra.

Alguém havia mudado tudo. A luz da lanterna mostrou paredes reformadas e livres de poeira. Os equipamentos que tínhamos deixado cair não mais estavam no chão. Era como se os mil anos desde o confi namento de lady Methilde — daquele momento até agora — não houvessem passado. Uriah tinha um mau pressentimento a respeito de qualquer cripta que parecesse nova, e eu concordava inteiramente.

Ninguém mais havia entrado, até onde eu sabia, apenas a donzela, e criações autônomas como ela são capazes de realizar uma só tarefa. Criaturas feitas de engrenagens não podem evoluir ou aprender, não como os córtices de hoje em dia, e eu falei isso a Uriah.

Ele riu, dizendo “eu não passo muito tempo no meio de gigantes velhos”, enquanto colocava uma carga do tamanho de um punho em sua pistola-bazuca. Era a maior arma de fogo que eu já tinha visto sem uma plataforma de canhão, e a confi ança com que Uriah manuseava-a deu-me mais segurança do que eu queria admitir.

Movi a luz vagarosamente pela sala, e então o vi. O corpo de Jek jazia sobre uma mesa, como uma oferenda, e, a emoção sobrepujando a lógica, fui até ele. Uriah gritou, mas quando entendi seus avisos, a donzela já havia aparecido.

Aquela maldita donzela da tumba tinha preparado uma emboscada para nós. Ela se moveu, um borrão de aço enferrujado, e poderia ter-me partido em dois, não fosse o gatilho rápido de meu companheiro. Recuei quando sua pistola-bazuca disparou, e pensei que a cripta fosse desabar por causa do som. O tiro quebrou a placa facial da donzela, e derrubou-a ao chão. Fiquei parado por um momento, no silêncio trovejante, em choque. Poderia um construto como aquele realmente fi car obcecado, e planejar e aguardar por todos esses anos pelo meu retorno?

A donzela estremeceu uma ou duas vezes enquanto Uriah recarregava, mas não se ergueu. Esperamos um minuto inteiro antes de decidir que ela estava “morta”, e Uriah tomou sua picareta para arrancar as partes reaproveitáveis do monstro mekânico. Assim que ele chegou à donzela, ouvi o fraco gemido de minúsculas engrenagens, e ela saltou de pé. Um golpe com o dorso da mão arremessou Uriah para o lado, e ela veio diretamente para mim. Ela tinha-se fingido de morta, e pego Uriah desprevenido. Poderia tê-lo matado com facilidade, mas queria a mim.

Consegui aparar dois golpes, e minha armadura bloqueou um terceiro, que não obstante deixou-me um hematoma durante uma semana, mas não pude resistir por muito tempo. Tropecei, e ela ergueu sua alabarda, mas ao invés do golpe, veio apenas o som de engrenagens raspando, e faíscas de seus ombros.
Uriah, sangue pingando de seu nariz quebrado e seu lábio partido, tinha enredado uma rede grossa de metal nas pernas da criatura, e tentava enfiar uma chave-de-gigante em seu pescoço — sorrindo e cantarolando alguma música órdica o tempo todo, obviamente divertindo-se muito. A donzela dobrou-se e estalou, e juro que ouvi-a rosnar para mim.

Ela lutava contra a pesada rede, contra os mecanismos que Uriah tinha estragado, e então soltou um apito estridente que posso descrever apenas como o canto de uma locomotiva. Ela caiu de joelhos, e Uriah disse que seu trabalho não iria retê-la para sempre. Enfiei minha fiel espada curta pela placa facial partida, recebendo em troca um jorro de muco secular que deve um dia ter sido óleo. Alguns espasmos e um gemido estrepitoso, e a donzela da tumba ficou imóvel.

Permaneci de prontidão durante uma hora inteira, enquanto Uriah desmontava-a peça por peça — ele podia ficar com as partes que quisesse. Eu quase esperava que a coisa recomeçasse a se mover na mochila de meu companheiro.

Continuei tenso até muito depois de ter sepultado Jek em Ceryl, e separei-me de Uriah em Cabo Bourne. A idéia de que máquinas possam realmente aprender e pensar é impressionante, devo dizer. A verdade de Morrow é que, recentemente, tenho me assustado com o tique-taque de meu próprio relógio de bolso.

A maior autoridade de Immoren ocidental sobre a fauna dos Reinos de Ferro, o Professor Victor Pendrake (Povo-do-Meio) ensina Zoologia na Universidade de Corvis, e escreveu o MONSTRONOMICON, um excelente recurso para mestres, que descreve criaturas como a temida Donzela da Tumba. Este é apenas o início das aventuras do Professor Pendrake, como você vai descobrir nas próximas páginas…

--

--