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Mini Conto

Rafão Araujo
Reduto do Bucaneiro
5 min readFeb 16, 2019

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Kaya balançou sua cabeça, tentando se concentrar. O ambiente detinha uma estranha energia, um cheiro como o que segue o cair de um raio, e as cores da paisagem revelavam-se particularmente claras, como se uma tempestade houvesse deixado o ar supreendentemente limpo. O chão tremeu sob seus pés e havia um ruído inaudível que se fazia sentir como uma pressão em seu peito. Aquelas pessoas ali reunidas haviam iniciado uma grande cerimônia druídica, o poder do ritual emanava como ondulações na superfície de um lago.

Ela sentia certo ressentimento por ter sido encarregada de vigiar o perímetro ao invés de estar incluída na cerimônia. A data marcava uma rara conjunção astronômica que permitiria aos druidas harmonizarem diversos monólitos ancestrais, inativos por décadas. Sua escolha como uma guardiã era uma honra, um sinal de confiança, particularmente diante do fato de que se encontravam em uma região instável e a possibilidade de que houvessem intrusos era real. Ainda assim, ela desejava que pudesse participar diretamente.

Encontravam-se ao norte do rio Hawksmire, entre as encostas que se estendiam a oeste do monte Shyleth Breen, em um local estranho e vagamente inquietante. Essa área era uma fronteira natural. O ar era muito seco e a proximidade com as Planícies da Pedra Sangrenta tornava-se aparente com o tom avermelhado do barro que formava os morros próximos, além das árvores magras e retorcidas que compunham a paisagem. Atrás dela havia uma gruta perfeitamente abrigada entre as colinas que era alimentada por um riacho que eventualmente se juntava ao Hawksmire. Por muito tempo esse local havia sido um santuário de poder natural, um local guardado resolutamente pelo Círculo.

Sua pequena matilha de Argus encontrava-se espalhada pela área, atenta ao menor sinal de perigo. Um lobo aberrante chamado Kastor também havia se juntado à sua patrulha. Haviam lutado lado a lado por alguns meses, mas ela ainda não se sentia confortável ao lhe dirigir a palavra quando ele revertia para sua forma humana, sua mente parecia presa em algum lugar entre o selvagem e o civilizado, fragmentada e, por vezes, irracional. No campo de batalha, porém, ele se tornava uma criatura inarredável de instinto temível e lutavam juntos em fina sintonia.

Franziu o cenho quando sentiu que Kastor havia farejado algo diferente no ar. Encontrava-se muito distante para ler seus pensamentos, mas dirigiu-se naquela direção. Ela soltou um chamado mental para os Argus e materializou um manto de névoa para escondê-la de olhos curiosos.

O Mestre Torturador Morghoul estava patrulhando ao norte da frente principal dos skorne, à procura de um bom ponto de reabastecimento. Parecia-lhe que a Archdomina havia cometido um erro tentando avançar pelo sul do grande lago, onde haviam encontrado uma feroz resistência dos trollóides. Por essa razão ele estava investigando a configuração do terreno mais ao norte, tentando descobrir uma localização que lhe servisse como um ponto de observação ou de apoio para uma força de flanqueamento.

Estava acompanhado por dois ciclopes. Logo atrás, a alguma distância, havia um enorme Titã, mas ele havia se cansado de esperar por sua marcha lenta e, impacientemente, decidiu seguir na frente. Na medida em que desceu a inclinação em direção as árvores, um movimento chamou-lhe a atenção, uma sombra massiva. Com um gesto de mãos dirigiu à frente os dois brutos de um olho só, sentindo uma onda de euforia e uma familiar inquietação.

Kaya deixou escapar uma imprecação quando Kastor disparou para fora da floresta com um uivo arrepiante, ignorando seu comando mental para que esperasse. Como um borrão, seu corpo se transfigurava. Sua massa dobrou e depois triplicou, pêlos surgiam ao longo de membros retorcidos, enquanto músculos inchavam e chifres saltavam de sua carne.

Os alvos de sua fúria eram três figuras vestidas com pesadas armaduras, cada uma exibindo as cores vermelha e dourada. Duas delas vestiam visores de um olho só e carregavam enormes espadas curvas, suas silhuetas eram consideravelmente maiores do que a forma delgada que compunha a terceira figura, cujas mãos encontravam-se calçadas com luvas em formato de enormes garras. O warpwolf lançou-se contra uma das criaturas largas, suas presas pareciam um violento borrão. Prendeu-se ao gigante com ambas as garras e mordeu-lhe violentamente o pescoço, retraindo sua cabeça em um jorro de sangue.

A criatura apenas cambaleou e não caiu, boa parte da força do ataque fora defletida pelo seu pesado elmo. O outro ciclope tentou intervir, golpeando para baixo com sua enorme lâmina curvada. Kaya já vira Kastor lutar em outras ocasiões — sabia que ele era atento e ágil, ainda sim o ciclope pareceu antecipar sua esquiva, mudando sua postura no meio do golpe e ferindo seriamente o warpwolf. Neste ínterim, a figura magra rapidamente se aproximou para acabar com ele.

Kaya novamente deixou escapar uma maldição. Seus Argus corriam em sua direção, mas ainda estavam distantes e não seriam rápidos o suficiente. Transpôs o espaço entre ela e Kastor, abrindo um portal. Com um passo, ela apareceu próxima ao warpwolf, atrás da estranha figura mascarada. Percebeu que ele era mais alto do havia avaliado, pequeno apenas quando em comparação com os dois ciclopes. Havia algo perturbador na maneira graciosa como ele se movia, mas era tarde para recalcular seu ataque.

Com seu bastão de madeira fez um golpe amplo, como se varresse o chão, com toda a força que pôde encontrar, acertando ruidosamente as pernas da figura carmesim, derrubando-a na terra. Julgando-o um soldado comum, presunçosamente preparou-se para um segundo e último golpe. Seu bastão chocou-se com um baque brutal, mas não havia sinais de machucados. Um dos ciclopes que batalhava contra o warpwolf grunhiu e deu um passo para trás; Kaya percebeu que o estrago que pretendia causar havia sido defletido, o que significava que estava enfrentando um inimigo mais poderoso do que havia antecipado.

Ele sorriu para ela um sorriso com dentes estranhamente pontudos e levantou-se agilmente com um pulo, suas mãos em garra rasgavam o ar na direção de Kaya em uma sequência de ataques tão cegamente rápidos que seus olhos não podiam acompanhar. Tentou interceptar os cortes com seu bastão, mas seus esforços lhe pareceram desajeitados diante da velocidade de seu agressor. A dor explodia nas laterais de seu corpo e em ambas pernas. Cambaleou para trás, seus olhos arregalados. Os cortes não haviam sido profundos, ainda sim ela havia sido arranhada uma meia dúzia de vezes. As pontas metálicas dos dedos de seu adversário pingavam sangue fresco.

Com o canto dos olhos ela percebeu algo — uma gigante e terrível besta blindada de presas encurvadas vinha em sua direção pelo terreno poeirento. Ela quase podia sentir o chão tremer sobre cada passada que era acompanhada por um estrépito trombeteante do animal.

Cerrou os dentes e drenou a força de suas criaturas na medida em que os dois Argus passaram uivando por ela. Soltando seu próprio grito de guerra, lançou o poder que reunira diretamente contra seu risonho inimigo — dentes fantasmagóricos explodiram em seu peito, fazendo-o cambalear para trás. Ergueu o bastão, exibindo um brilho determinado em seus olhos e jurou que nada viveria para passar por ela e interromper a cerimônia cuja proteção lhe fora confiada.

Fonte: No Quarter #5

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