Agrofloresta: ciclos, sonhos e preservação num pedacinho de terra

Projeto Reenquadro
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11 min readOct 9, 2017

texto: Juliane Ferreira
edição: Vinicius Batista

É num canteiro que todo resto de alimento se transforma. É num espaço lá no alto, no pico de 400 metros de altura, que se alcança um sonho. É numa margem de 10 anos que os projetos se solidificam e acontecem. E crescem. É numa agrofloresta que se planta com a mão e que se colhe com a ajuda de crianças e até de um cachorro. Cresce o que se planta e o que se coloca no mundo, como os filhos, por exemplo.

O sonho de Jeferson Costa é ver a agrofloresta Vivenda Árvore da Vida muito diferente daqui a 10 anos. Com mais vidas e verdes, águas e árvores. A terra é boa. Tudo que se planta lá, cresce com vigor. A gente sentiu tudo isso, pisando naquela terra numa manhã molhada de maio.

Agrofloresta “Vivendo a Árvore da Vida” nasceu em um sítio, no Ribeirão do Mafra, Brusque

“Vivenda” é sinônimo de sítio ou chácara e “Árvore da Vida” faz referência à árvore que dá nome ao sítio, que nasceu ali e trouxe água à propriedade. As raízes da árvore que batiza o local estão fincadas no interior de Brusque, cidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina.

Quando chega a hora de mudar os hábitos

Mesmo tendo o hábito de plantar alimentos em áreas pequenas, apenas para consumo próprio, Jeferson já pensava em fazer planos para algo além. Uma nova forma de viver a vida, talvez. “Com o passar do tempo fui me informando, pesquisando e conheci Ernst Götsch, que é, vamos dizer, o pai da agrofloresta.”.

>> Saiba mais sobre esta referência da agroecologia.

Depois de muito estudo, cursos, viagens, Jeferson percebeu que a área onde vivia tinha um grande potencial para fazer uma agrofloresta. “Minha intenção é daqui algum tempo estar ministrando cursos para também passar esse conhecimento. E a intenção futura é poder estar trazendo esse pessoal com mais conhecimento do que a gente para cá, também”.

Hoje já existem mais pessoas interessadas em produzir o seu próprio alimento, preservar a natureza e fazer a agroecologia. Além da agrofloresta de Jeferson, existem parceiros dele de Brusque e região colocando a ideia em prática, ainda de forma iniciante, mas com a boa intenção de uma ideia como essa. São parceiros que viram na agroecologia uma nova oportunidade para ser alguém melhor para a natureza e a si mesmo, principalmente. Entre 10 e 15 pessoas já estão envolvidas com agrofloresta em Brusque e Guabiruba, além de outras cidades em Santa Catarina que estão, literalmente, plantando a ideia.

A Agrofloresta Vivenda Árvore da Vida está localizada no bairro Ribeirão do Mafra, a cerca de 15 quilômetros do centro de Brusque. E é para lá que fomos.

Alface, couve, eucalipto, milho, rúcula e trevinho cultivados no canteiro da agrofloresta

Os primeiros raios de sol de abril de 2017 raiavam quando conheci o Jeff (como é chamado entre os seus). Em um primeiro contato, conversamos durante toda uma manhã e decidimos sobre como executaríamos a ideia da reportagem em sua propriedade, além de também observar a rotina dos voluntários que lá moram para trabalhar na agrofloresta — o casal Átila Silveira e Lívia Charão.

Eu não entendo porque choveu tanto nos meses de abril e maio deste ano. Esperei tanto para ir em um dia seco no sítio, que acabei indo um dia após a primeira cheia em Brusque no ano (sim, foram três em apenas dois meses). No dia 29 de maio, enfim, fomos conhecer o endereço onde fica localizada a agrofloresta.

Adentramos em um espaço onde o verde predomina e alcança um total de 40 mil m² com muita imponência. Como era de se esperar, estava tudo molhado por lá também. Porém, com a beleza bucólica do local e com a empolgação do Pedro Pônei (cachorrinho mascote da família), foi mais fácil subir aqueles cerca de 400 metros inclinados à nossa frente.

O cão de porte pequeno apareceu perto da casa da família há cerca de um ano e meio e logo as filhas de Jeferson, Alice Horn Costa e Beatriz Horn Costa, o adotaram com todo amor que só duas crianças de 4 e 6 anos podem dar. Há um ano e meio, Alice e Beatriz ganharam um companheiro brincalhão e carinhoso, e a agrofloresta mais um amigo da natureza.

Durante aquela subida de tirar o fôlego, o motivo de Jeferson fazer nascer o sonho de transformar sua propriedade em um espaço de preservação, cuidado e preocupação com a natureza se revelou. “Quando nasceram as filhas, né? Porque até então a gente não pensava em ter uma vida longa, prosperidade. Hoje, com um filho, coisa que não vinha à minha mente, era de deixar um legado. O que é deixar um legado para mim? É plantar uma floresta, para daqui 40 anos minha filha subir aqui ter árvores enormes, bastante fruto, entendeu? É isso que penso hoje. É para elas”.

Lá em cima, um visual deslumbrante. Um espaço honestamente especial. É possível visualizar um futuro verde naquele espaço, por conta da intenção de quem está ali, envolvido diariamente. Jeferson nos conta que entre outros projetos em andamento, a intenção para o futuro já está traçada. “Nossa intenção, também, é fomentar alguns cursos de agrofloresta. A intenção é receber o pessoal aqui, fazer a parte de recepção, e poder dividir os locais — aqui em cima agrofloresta e lá embaixo minha residência — , e fazer um alojamento aqui, para poder receber os voluntários”.

Olhos que guiam, mãos que produzem

Cada metro quadrado da propriedade é cuidado de forma consciente e responsável. Alguns trechos que percorremos em meio à mata não seriam mais percorridos por alguns dias para que os locais amassados pudessem se recuperar das pisadas humanas. Neste cantinho da natureza preservado pelo Jeferson, sua família e os voluntários, o homem é um mero espectador dos processos naturais da biodiversidade. Jamais um ser superior.

Átila Silveira e Lívia Charão são voluntários na agrofloresta

Dois voluntários moram na casa com a família do Jeferson desde abril. O casal Átila e Lívia. Jovens de idade, maduros mentalmente. Ficarão por tempo indeterminado com Jeferson em Brusque, ajudando na agrofloresta. Pessoas do bem e da vida natural.

“Eu e a Lívia morávamos em Pelotas/RS, fazíamos faculdade e começamos a nos sentir um pouco descontentes com o rumo que as coisas estavam levando. Vimos que não era bem como nos era colocado, que a gente, saindo faculdade, necessariamente estaria ajudando a sociedade a melhorar”.

Quando o casal se conheceu, Lívia já pensava em viajar e desbravar o mundo. Pouco tempo depois, ela convidou Átila para viajar. Convite aceito. Partiram com destino ao Uruguai, onde ficaram por alguns meses, antes de retornar ao Brasil. Depois, novamente para o Uruguai, onde entraram em contato com a permacultura e o voluntariado na área da agroecologia. “Passou a me chamar atenção a produção de alimentos para nós mesmos, porque a gente não tem mais o controle da qualidade do nosso alimento, para nós mesmos. A rigor, a gente não sabe o que está comendo”.

Preocupados, Átila e Lívia começaram a estudar e buscar alternativas, quando chegaram à agrofloresta, ao Jeferson e a Brusque.

“A Vivenda Árvore da Vida é uma verdadeira escola. A gente está aprendendo tudo, desde o início, como implementar uma agrofloresta. Isso é muito importante, porque nos dá autonomia, e isso é essencial hoje em dia. Saber de onde vem o nosso alimento, o que a gente está ingerindo e como produzi-lo”, relata Lívia.

— Quem era a Lívia antes da agroecologia e quem é a Lívia hoje?

— Acho que eu me permiti sonhar mais, imaginar mais.

Pão integral de fermentação natural

É o próprio Átila quem produz o pão integral de fermentação natural que é feito quase que na sua totalidade com recursos da agrofloresta. O processo para fazer é todo manual, lindo de ver e sentir — o cheiro toma conta. O resultado final fui provar quase 12 horas depois, ainda quentinho, como na casa da vó antigamente. Não é só o pão que é feito lá. As geleias, de diversos sabores, também são produzidas artesanalmente por eles.

Pão integral de fermentação natural produzido na agrofloresta pelos voluntários

O trabalho de produção do pão começa com dois “ingredientes” vitais: muitas horas de antecedência e planejamento. Antes de você se alimentar deste pão, saiba que ele também se alimentou. Isso porque o fermento utilizado é vivo e precisa ser alimentado duas horas antes do início do preparo. Desta forma, ele estimula os microrganismos.

Descobri que na fermentação natural, basicamente, as bactérias se desenvolvem e começam a produzir alguns metabólicos. As bactérias presentes no fermento natural formam ácido lático e acético — o ácido das bactérias do leite e uma espécie de vinagre. As duas são conservantes. “Por isso o pão com fermentação natural dura mais tempo do que o tradicional. Este pão tem os conservantes na própria massa”, explica Átila.

Detalhe: o pão é assado em uma forma com folhas de bananeira da própria agrofloresta. O próximo passo é construir um forno de barro, como aquelas casinhas de joão-de-barro, e assar o pão ali dentro.

Massa do pão integral em período de descanso

Benefícios deste pão:

Farinha integral tem menos glúten; Processo de fermentação mantém o alimento útil por mais tempo; Torna os nutrientes mais biodisponíveis (pode ser absorvido pelo organismo); Já está pronto para ser absorvido pelo corpo, ou seja, o alimento te ajuda a digerir antes de começar o processo da digestão.

Composteira

A Agrofloresta que encontramos em Brusque conta com uma composteira, onde o resto dos alimentos são depositados no centro do canteiro e cobertos por matérias, para depois de um certo tempo poder ser reutilizado na parte de fora.

Resto dos alimentos consumidos na casa são depositados no centro da composteira

“A ideia da composteira surgiu com a chegada dos voluntários e quando a gente fez o primeiro seminário, porque começou aumentar a quantidade de alimento. Pra gente não desperdiçar todo esse alimento, eu trabalhava com minhoca, só que as minhocas já não estavam mais dando conta de suprir a quantidade de restos de alimentos”, explica Jeferson.

E foi aí que surgiu a ideia. “Então a gente pensou: vamos unir o resto dos alimentos com o que a gente está fazendo, que é a agrofloresta. A gente começou a pesquisar e achamos esse formato de canteiro”.

O resto do alimento é colocado no centro da composteira. Para reutilizar o canteiro, toda a terra é literalmente virada. Como a composteira é perto da casa, planta-se ali alface, cebolinha, rúcula e salsinha, para a família e voluntários utilizar na casa. A estrutura da composteira é mantida por uma espécie de bambu que foi implantado do lado fértil. Ele acabou brotando. Quando o ciclo da composteira chegar ao fim, haverá um bambuzal no local, que será utilizado em bioconstrução — construções sustentáveis.

Mas de onde vem o nome deste local tão exuberante?

Uma figueira quadragenária deu origem ao nome da propriedade: Vivenda Árvore da Vida. “Como há muitos anos aqui era lugar de exploração e agricultura, não tinha vegetação, então nasceu a figueira e com o passar dos anos ela cresceu e ela foi se acomodando em cima das pedras, onde achou o lençol freático”.

A figueira é responsável pela existência de água no sítio. Ela tem cerca de 40 anos e mede aproximadamente 30 metros. Sua circunferência chega a 20 metros e as raízes alcançam quase 30 metros. A origem do nome do sítio vem dela.

Agora, Jeferson está captando a água que nasce embaixo das raízes da figueira, e cuidando com todo respeito. O local permanecerá intacto para que a natureza faça sua parte.

Também tem água jorrando abundantemente na agrofloresta. Um poço foi furado lá embaixo, ao lado da casa do Jeferson, e uma cisterna foi instalada no meio do morro. De lá, a água foi baldeada para cima em suas caixas de mil litros.

— Jeferson, se eu voltar daqui 10 anos, como vou encontrar esse lugar?

— (risada) O pessoal fala muito que a agrofloresta é a cara do dono, né? Então, quando tu voltar daqui a 10 anos, eu acho que tu vai ver bastante fruta, cultura de café e cacau e a floresta bem grande, também.

— Assim como tuas filhas!

— É, minhas filhas já vão estar grandes, também.

Alice Horn Costa e Beatriz Horn Costa com o pai

Novos projetos

Para um futuro não tão distante, a projeção é resgatar algumas culturas de plantio que se perderam com o tempo na região, por conta do êxodo rural. “A gente quer estar trabalhando com isso para resgatar algumas culturas que se perderam, principalmente o arroz e o milho. O arroz da nossa região sempre foi plantado aqui”.

Antigamente, o arroz cultivado na região era o sequeiro. Através de um curso que fez na Morada Ekoa, com pessoas do Rio Grande do Sul, Jeferson conseguiu algumas sementes desse arroz, plantou, nasceu e já distribuiu para um agricultor da região. O agricultor conseguiu produzir cerca de 2kg a 3 kg do arroz sequeiro.

“A gente tem ideia de trazer de volta o milho crioulo, que também se perdeu esse cultivo na região. O pessoal está acostumado a plantar milho híbrido, e tu só planta ele uma vez. Então a gente está nessa busca de resgatar sementes e plantas que há muito tempo serviram de alimentos e que são da própria região”.

Três meses depois

Pouco mais de três meses depois, a gente retornou à agrofloresta e se surpreendeu com o ciclo que agora atinge a fase de colheita. São quatro linhas de produção — duas de alimentação e duas de hortaliças.

Rúcula, alface, alho poró, tomate, banana, eucalipto, citros, laranja, salsa crespa, salsa lisa, repolho, hortelã, manjericão… São muitas culturas em um canteiro só. A isso se dá o nome de otimização dos espaços, um dos conceitos basilares de uma agrofloresta. “Em um canteiro onde seria a monocultura, a gente inclui outras culturas para fazer um ciclo”.

E isso tudo também será compartilhado. Jeferson nos atualizou que uma das novidades que surgiu depois da nossa visita em maio é que pela primeira vez será realizada uma feirinha na agrofloresta. “Vamos começar bem cedo, provavelmente às 5 horas, pra gente poder oferecer verduras e frutinhas ainda vivas para a população”.

Além dos produtos cultivados ali, em sistema de agrofloresta, também é oferecido à população as produções dos parceiros da região, como mandioca, vinho e derivados de leite.

Quanto à questão da água, a ideia da instalação de um “carneiro”, equipamento que ajudaria no transporte de água, que ele havia nos contado lá em maio, foi abortada porque, para ele, o projeto iria agredir muito o espaço.

Nota pessoal

Logo que cheguei novamente, senti falta do Pedro Pônei, o cãozinho que falamos lá no começo do texto, lembra? “O Pedro morreu”. Levei um tempo para assimilar a notícia e nesse mesmo tempo surgiu aos meus pés o mais recente animalzinho mascote do local: um cãozinho do mesmo tamanho do anterior. Pedro Pônei se foi, mas deixou sua marca por aqui, e como uma agrofloresta, cumpriu seu ciclo.

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