Agrofloresta: ciclos, sonhos e preservação num pedacinho de terra
texto: Juliane Ferreira
edição: Vinicius Batista
É num canteiro que todo resto de alimento se transforma. É num espaço lá no alto, no pico de 400 metros de altura, que se alcança um sonho. É numa margem de 10 anos que os projetos se solidificam e acontecem. E crescem. É numa agrofloresta que se planta com a mão e que se colhe com a ajuda de crianças e até de um cachorro. Cresce o que se planta e o que se coloca no mundo, como os filhos, por exemplo.
O sonho de Jeferson Costa é ver a agrofloresta Vivenda Árvore da Vida muito diferente daqui a 10 anos. Com mais vidas e verdes, águas e árvores. A terra é boa. Tudo que se planta lá, cresce com vigor. A gente sentiu tudo isso, pisando naquela terra numa manhã molhada de maio.
“Vivenda” é sinônimo de sítio ou chácara e “Árvore da Vida” faz referência à árvore que dá nome ao sítio, que nasceu ali e trouxe água à propriedade. As raízes da árvore que batiza o local estão fincadas no interior de Brusque, cidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina.
Quando chega a hora de mudar os hábitos
Mesmo tendo o hábito de plantar alimentos em áreas pequenas, apenas para consumo próprio, Jeferson já pensava em fazer planos para algo além. Uma nova forma de viver a vida, talvez. “Com o passar do tempo fui me informando, pesquisando e conheci Ernst Götsch, que é, vamos dizer, o pai da agrofloresta.”.
>> Saiba mais sobre esta referência da agroecologia.
Depois de muito estudo, cursos, viagens, Jeferson percebeu que a área onde vivia tinha um grande potencial para fazer uma agrofloresta. “Minha intenção é daqui algum tempo estar ministrando cursos para também passar esse conhecimento. E a intenção futura é poder estar trazendo esse pessoal com mais conhecimento do que a gente para cá, também”.
Hoje já existem mais pessoas interessadas em produzir o seu próprio alimento, preservar a natureza e fazer a agroecologia. Além da agrofloresta de Jeferson, existem parceiros dele de Brusque e região colocando a ideia em prática, ainda de forma iniciante, mas com a boa intenção de uma ideia como essa. São parceiros que viram na agroecologia uma nova oportunidade para ser alguém melhor para a natureza e a si mesmo, principalmente. Entre 10 e 15 pessoas já estão envolvidas com agrofloresta em Brusque e Guabiruba, além de outras cidades em Santa Catarina que estão, literalmente, plantando a ideia.
A Agrofloresta Vivenda Árvore da Vida está localizada no bairro Ribeirão do Mafra, a cerca de 15 quilômetros do centro de Brusque. E é para lá que fomos.
Os primeiros raios de sol de abril de 2017 raiavam quando conheci o Jeff (como é chamado entre os seus). Em um primeiro contato, conversamos durante toda uma manhã e decidimos sobre como executaríamos a ideia da reportagem em sua propriedade, além de também observar a rotina dos voluntários que lá moram para trabalhar na agrofloresta — o casal Átila Silveira e Lívia Charão.
Eu não entendo porque choveu tanto nos meses de abril e maio deste ano. Esperei tanto para ir em um dia seco no sítio, que acabei indo um dia após a primeira cheia em Brusque no ano (sim, foram três em apenas dois meses). No dia 29 de maio, enfim, fomos conhecer o endereço onde fica localizada a agrofloresta.
Adentramos em um espaço onde o verde predomina e alcança um total de 40 mil m² com muita imponência. Como era de se esperar, estava tudo molhado por lá também. Porém, com a beleza bucólica do local e com a empolgação do Pedro Pônei (cachorrinho mascote da família), foi mais fácil subir aqueles cerca de 400 metros inclinados à nossa frente.
O cão de porte pequeno apareceu perto da casa da família há cerca de um ano e meio e logo as filhas de Jeferson, Alice Horn Costa e Beatriz Horn Costa, o adotaram com todo amor que só duas crianças de 4 e 6 anos podem dar. Há um ano e meio, Alice e Beatriz ganharam um companheiro brincalhão e carinhoso, e a agrofloresta mais um amigo da natureza.
Durante aquela subida de tirar o fôlego, o motivo de Jeferson fazer nascer o sonho de transformar sua propriedade em um espaço de preservação, cuidado e preocupação com a natureza se revelou. “Quando nasceram as filhas, né? Porque até então a gente não pensava em ter uma vida longa, prosperidade. Hoje, com um filho, coisa que não vinha à minha mente, era de deixar um legado. O que é deixar um legado para mim? É plantar uma floresta, para daqui 40 anos minha filha subir aqui ter árvores enormes, bastante fruto, entendeu? É isso que penso hoje. É para elas”.
Lá em cima, um visual deslumbrante. Um espaço honestamente especial. É possível visualizar um futuro verde naquele espaço, por conta da intenção de quem está ali, envolvido diariamente. Jeferson nos conta que entre outros projetos em andamento, a intenção para o futuro já está traçada. “Nossa intenção, também, é fomentar alguns cursos de agrofloresta. A intenção é receber o pessoal aqui, fazer a parte de recepção, e poder dividir os locais — aqui em cima agrofloresta e lá embaixo minha residência — , e fazer um alojamento aqui, para poder receber os voluntários”.
Olhos que guiam, mãos que produzem
Cada metro quadrado da propriedade é cuidado de forma consciente e responsável. Alguns trechos que percorremos em meio à mata não seriam mais percorridos por alguns dias para que os locais amassados pudessem se recuperar das pisadas humanas. Neste cantinho da natureza preservado pelo Jeferson, sua família e os voluntários, o homem é um mero espectador dos processos naturais da biodiversidade. Jamais um ser superior.
Dois voluntários moram na casa com a família do Jeferson desde abril. O casal Átila e Lívia. Jovens de idade, maduros mentalmente. Ficarão por tempo indeterminado com Jeferson em Brusque, ajudando na agrofloresta. Pessoas do bem e da vida natural.
“Eu e a Lívia morávamos em Pelotas/RS, fazíamos faculdade e começamos a nos sentir um pouco descontentes com o rumo que as coisas estavam levando. Vimos que não era bem como nos era colocado, que a gente, saindo faculdade, necessariamente estaria ajudando a sociedade a melhorar”.
Quando o casal se conheceu, Lívia já pensava em viajar e desbravar o mundo. Pouco tempo depois, ela convidou Átila para viajar. Convite aceito. Partiram com destino ao Uruguai, onde ficaram por alguns meses, antes de retornar ao Brasil. Depois, novamente para o Uruguai, onde entraram em contato com a permacultura e o voluntariado na área da agroecologia. “Passou a me chamar atenção a produção de alimentos para nós mesmos, porque a gente não tem mais o controle da qualidade do nosso alimento, para nós mesmos. A rigor, a gente não sabe o que está comendo”.
Preocupados, Átila e Lívia começaram a estudar e buscar alternativas, quando chegaram à agrofloresta, ao Jeferson e a Brusque.
“A Vivenda Árvore da Vida é uma verdadeira escola. A gente está aprendendo tudo, desde o início, como implementar uma agrofloresta. Isso é muito importante, porque nos dá autonomia, e isso é essencial hoje em dia. Saber de onde vem o nosso alimento, o que a gente está ingerindo e como produzi-lo”, relata Lívia.
— Quem era a Lívia antes da agroecologia e quem é a Lívia hoje?
— Acho que eu me permiti sonhar mais, imaginar mais.
Pão integral de fermentação natural
É o próprio Átila quem produz o pão integral de fermentação natural que é feito quase que na sua totalidade com recursos da agrofloresta. O processo para fazer é todo manual, lindo de ver e sentir — o cheiro toma conta. O resultado final fui provar quase 12 horas depois, ainda quentinho, como na casa da vó antigamente. Não é só o pão que é feito lá. As geleias, de diversos sabores, também são produzidas artesanalmente por eles.
O trabalho de produção do pão começa com dois “ingredientes” vitais: muitas horas de antecedência e planejamento. Antes de você se alimentar deste pão, saiba que ele também se alimentou. Isso porque o fermento utilizado é vivo e precisa ser alimentado duas horas antes do início do preparo. Desta forma, ele estimula os microrganismos.
Descobri que na fermentação natural, basicamente, as bactérias se desenvolvem e começam a produzir alguns metabólicos. As bactérias presentes no fermento natural formam ácido lático e acético — o ácido das bactérias do leite e uma espécie de vinagre. As duas são conservantes. “Por isso o pão com fermentação natural dura mais tempo do que o tradicional. Este pão tem os conservantes na própria massa”, explica Átila.
Detalhe: o pão é assado em uma forma com folhas de bananeira da própria agrofloresta. O próximo passo é construir um forno de barro, como aquelas casinhas de joão-de-barro, e assar o pão ali dentro.
Benefícios deste pão:
Farinha integral tem menos glúten; Processo de fermentação mantém o alimento útil por mais tempo; Torna os nutrientes mais biodisponíveis (pode ser absorvido pelo organismo); Já está pronto para ser absorvido pelo corpo, ou seja, o alimento te ajuda a digerir antes de começar o processo da digestão.
Composteira
A Agrofloresta que encontramos em Brusque conta com uma composteira, onde o resto dos alimentos são depositados no centro do canteiro e cobertos por matérias, para depois de um certo tempo poder ser reutilizado na parte de fora.
“A ideia da composteira surgiu com a chegada dos voluntários e quando a gente fez o primeiro seminário, porque começou aumentar a quantidade de alimento. Pra gente não desperdiçar todo esse alimento, eu trabalhava com minhoca, só que as minhocas já não estavam mais dando conta de suprir a quantidade de restos de alimentos”, explica Jeferson.
E foi aí que surgiu a ideia. “Então a gente pensou: vamos unir o resto dos alimentos com o que a gente está fazendo, que é a agrofloresta. A gente começou a pesquisar e achamos esse formato de canteiro”.
O resto do alimento é colocado no centro da composteira. Para reutilizar o canteiro, toda a terra é literalmente virada. Como a composteira é perto da casa, planta-se ali alface, cebolinha, rúcula e salsinha, para a família e voluntários utilizar na casa. A estrutura da composteira é mantida por uma espécie de bambu que foi implantado do lado fértil. Ele acabou brotando. Quando o ciclo da composteira chegar ao fim, haverá um bambuzal no local, que será utilizado em bioconstrução — construções sustentáveis.
Mas de onde vem o nome deste local tão exuberante?
Uma figueira quadragenária deu origem ao nome da propriedade: Vivenda Árvore da Vida. “Como há muitos anos aqui era lugar de exploração e agricultura, não tinha vegetação, então nasceu a figueira e com o passar dos anos ela cresceu e ela foi se acomodando em cima das pedras, onde achou o lençol freático”.
A figueira é responsável pela existência de água no sítio. Ela tem cerca de 40 anos e mede aproximadamente 30 metros. Sua circunferência chega a 20 metros e as raízes alcançam quase 30 metros. A origem do nome do sítio vem dela.
Agora, Jeferson está captando a água que nasce embaixo das raízes da figueira, e cuidando com todo respeito. O local permanecerá intacto para que a natureza faça sua parte.
Também tem água jorrando abundantemente na agrofloresta. Um poço foi furado lá embaixo, ao lado da casa do Jeferson, e uma cisterna foi instalada no meio do morro. De lá, a água foi baldeada para cima em suas caixas de mil litros.
— Jeferson, se eu voltar daqui 10 anos, como vou encontrar esse lugar?
— (risada) O pessoal fala muito que a agrofloresta é a cara do dono, né? Então, quando tu voltar daqui a 10 anos, eu acho que tu vai ver bastante fruta, cultura de café e cacau e a floresta bem grande, também.
— Assim como tuas filhas!
— É, minhas filhas já vão estar grandes, também.
Novos projetos
Para um futuro não tão distante, a projeção é resgatar algumas culturas de plantio que se perderam com o tempo na região, por conta do êxodo rural. “A gente quer estar trabalhando com isso para resgatar algumas culturas que se perderam, principalmente o arroz e o milho. O arroz da nossa região sempre foi plantado aqui”.
Antigamente, o arroz cultivado na região era o sequeiro. Através de um curso que fez na Morada Ekoa, com pessoas do Rio Grande do Sul, Jeferson conseguiu algumas sementes desse arroz, plantou, nasceu e já distribuiu para um agricultor da região. O agricultor conseguiu produzir cerca de 2kg a 3 kg do arroz sequeiro.
“A gente tem ideia de trazer de volta o milho crioulo, que também se perdeu esse cultivo na região. O pessoal está acostumado a plantar milho híbrido, e tu só planta ele uma vez. Então a gente está nessa busca de resgatar sementes e plantas que há muito tempo serviram de alimentos e que são da própria região”.
Três meses depois
Pouco mais de três meses depois, a gente retornou à agrofloresta e se surpreendeu com o ciclo que agora atinge a fase de colheita. São quatro linhas de produção — duas de alimentação e duas de hortaliças.
Rúcula, alface, alho poró, tomate, banana, eucalipto, citros, laranja, salsa crespa, salsa lisa, repolho, hortelã, manjericão… São muitas culturas em um canteiro só. A isso se dá o nome de otimização dos espaços, um dos conceitos basilares de uma agrofloresta. “Em um canteiro onde seria a monocultura, a gente inclui outras culturas para fazer um ciclo”.
E isso tudo também será compartilhado. Jeferson nos atualizou que uma das novidades que surgiu depois da nossa visita em maio é que pela primeira vez será realizada uma feirinha na agrofloresta. “Vamos começar bem cedo, provavelmente às 5 horas, pra gente poder oferecer verduras e frutinhas ainda vivas para a população”.
Além dos produtos cultivados ali, em sistema de agrofloresta, também é oferecido à população as produções dos parceiros da região, como mandioca, vinho e derivados de leite.
Quanto à questão da água, a ideia da instalação de um “carneiro”, equipamento que ajudaria no transporte de água, que ele havia nos contado lá em maio, foi abortada porque, para ele, o projeto iria agredir muito o espaço.
Nota pessoal
Logo que cheguei novamente, senti falta do Pedro Pônei, o cãozinho que falamos lá no começo do texto, lembra? “O Pedro morreu”. Levei um tempo para assimilar a notícia e nesse mesmo tempo surgiu aos meus pés o mais recente animalzinho mascote do local: um cãozinho do mesmo tamanho do anterior. Pedro Pônei se foi, mas deixou sua marca por aqui, e como uma agrofloresta, cumpriu seu ciclo.