no fundo do funil
O piso ladrilhado segura a sujeira de pés sujos que vieram da rua em mais um dia de chuva na cidade. O ambiente não é grande, talvez não muito mais do que uns poucos metros quadrados, mas isso não interfere a dinâmica do local. São poucas as pessoas que aparecem com seus rostos cansados e ansiosos demais para pegarem seu pedido e sair logo dali. Concentrados demais em não aceitarem sua participação natural de tudo isso.
O cheiro que enche o ar é denso, quase palpável e tão intenso que é possível sentir o calor pegajoso que vem de trás do balcão em sua boca seca. Alencar, o homem que carrega o mesmo nome estampado no toldo sobre a calçada, não faz a barba por preguiça e usa sua camisa branca encardida sob o jaleco sujo de sangue como um uniforme informal. Ele chama o próximo cliente e um de seus funcionários rabisca alguma coisa no papel, entrega para o balconista, e volta para os fundos.
Uma senhora faz o pedido, esfrega as mãos e olha por trás do vidro molhado e frio que reveste o balcão e a separa de Alencar. São dois quilos de coxa de frango e três de coxão duro. Ela parece não notar o barulho das galinhas presas em grades no final do pequeno corredor ao lado do balcão. Elas cacarejam. Batem suas penas doentes até caiam e deslizam lentamente até o chão. Talvez sejam os óculos ou a atenção voltada à pequena bolsa em que procura o dinheiro para pagar pelas peças de carne que não a deixam observar o lugar e se questiona:Por que um açougue tem, além de galinhas que esperam o abate, pombos brancos e de olhos vermelhos como aqueles que vemos voando em celebrações de paz na televisão, presos em pequenas gaiolas escuras?
Para muitos, o gosto de frango é bom se temperado se bem preparado. Para outros, um crime contra a natureza que proporciona o gosto maquiado de um cadáver.
As opiniões se divergem em discussões da nova cadeia alimentar e ao espaço da humanidade na alimentação humana. Entretanto, qual o gosto de pombo? Tem diferença se for branco ou acinzentado? Ou talvez preto e azulado? Qual seria o melhor vinho para acompanhar o prato? Branco, tinto, rosé?
A senhora paga e some na rua sem ao menos pronunciar uma palavra, talvez essa reflexão não coubesse em sua rotina. As pessoas ali dentro não se falam muito. Parecem todas cúmplices de algum crime oculto e vil. Entretanto, extremamente necessário, e por vezes tão natural quanto a própria selva, em forma de um sádico teatro. O próximo cliente se aproxima. Lá no fundo, uma galinha finalmente é retirada da gaiola. Seu pescoço é afunilado até sair por uma pequena abertura que imobiliza seu corpo. Com um golpe rápido, o funcionário de Alencar corta seu pescoço, joga a cabeça no lixo, ao lado da pia em que prepara o produto. O sangue escorre de seu corpo, agora pendurado, até o ralo. O funcionário limpa as mãos. Vai até o balcão. Fala com um cliente. Rabisca um papel e entrega para a balconista antes de voltar para os fundos.