Como uma onda

Ricardo Lapão
Reflective Practice on Life
8 min readJun 10, 2015

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Uma onda quando está a formar-se não sabe, que uns segundos depois, estará a cair de volta no oceano. Assim como a onda ao diluir-se no oceano desconhece que estará a contribuir para a formação de uma nova onda.

Uma onda profunda, não sabe que existe uma onda à superfície, assim como a crista da onda ignora o movimento de massas que está a acontecer em baixo. Se soubesse, diria, é para eu existir que a massa de água está a fazer isto. Na verdade, não é possível uma sem a outra, é uma relação de interdependência. E, por se ignorarem, não há espaço para frustração ou arrogância, simplesmente são, sendo… a ser.

Dizem os sábios que a vida é como o mar, cheio de ondas, sendo sempre e nunca sendo. Às vezes estamos no cimo da onda para logo a seguir passarmos para a depressão do mar, e logo de seguida voltar a estar em cima.

Pelo meu medo, creio eu, quero-me agarrar, luto com todas as minhas forças para não ser o mar, para ser separado do mar, e quando estou no cimo quero-me agarrar a esse cimo e quando estou em baixo quero-me agarrar a esse baixo. Enjoa-me o constante movimento. Há algo em mim que quer parar, o tempo, o mar, e talvez voltar atrás e recuperar, reparar o que já foi. Talvez eu goste mesmo é da subida e da descida, e por não me ver como parte do mar, desconfio do movimento, desconfio do fluxo, e parece-me mais seguro, mais razoável, tentar voltar atrás, à adrenalina da subida ou da descida e para isso parece-me lógico tentar parar, em cima ou em baixo.

Algo acontece. Levanto a cabeça. Vejo dezenas, centenas, milhares de pessoas. Cada uma agarrada ao seu barrote de madeira, na sua luta. Se pudesse levantar voo veria milhões de pontinhos, cada um uma pessoa, cada um juntinho a tantos outros, no entanto tão sós. Que loucura esta em que estamos quase encostados a tantas pessoas, e no entanto, estamos sozinhos. Porquê? Será porque acreditamos que a nossa luta é só a nossa luta? Porque acreditamos que é preciso lutar? O que acontece se pararmos de lutar? Seremos reféns do oceano? Parece-me limitado, sinto-me impotente, inunda-me um vazio e uma vontade de parar de lutar, talvez deixar-me submergir. Afogar. Pelo menos servirei de alimento aos peixes, às plantas, ao círculo da vida. Por um momento parece-me heróico, e de seguida estúpido, arrogante. Até na desistência me parece necessário lutar. Que merda!

Eu não sou estúpido! Eu sei coisas e sei que não é real, que nada disto é real. Eu sou parte do oceano. E sinto que se me render a essa verdade eu vou estar completo, mas não consigo. Eu não consigo parar de lutar para me separar.

Se ao menos alguém me acudisse. Eu grito para um homem que passa a bracejar com uma jangada de madeira ao meu lado, mas ele não me ouve. Se ao menos ele me acudisse, se ele percebesse que estamos juntos, que a luta dele é também a minha luta. Se ele me pegasse, me abraçasse, me aconchegasse e dissesse, meu filho não é preciso lutar. Relaxa, só relaxa. Está tudo certo. Ou simplesmente não dissesse nada e só me abraçasse. Contivesse a minha dor e o meu sofrimento, para que eu pudesse chorar. Tão simples. Tão fácil. E, tão difícil. Tão raro.

É tão simples. Parece-me tão pouco, e no entanto representaria um mundo para mim, Tenho sede desse colo. Tenho ganas de me fundir, de me diluir, de ocupar o meu vazio.

Não é possível. Simplesmente não é. Tenho que ser forte, tenho que lutar, não vale a pena lutar, desistir não consigo. Estou preso. É um colete de forças que não me deixa mover, estou paralisado, de repente o mar fica mais agitado. Seria mais fácil afogar-me, mas não me parece possível, eu tenho que lutar, a minha natureza é lutar. Mas não posso lutar mais. Alguém perde um tronco que me atinge na cabeça. Fico inconsciente. Silêncio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Acordo. Percebo que estou rodeado de peixes. Sustento-me num cardume de peixes que me suporta. Salvaram-me a vida! Aquele suporte salvou-me a vida. Impediu-me de submergir. Manteve-me à tona. Não foi um esforço, percebo, estava inconsciente, e não estava a lutar, a fazer força, toda a força que os peixes faziam era apenas a leveza do meu corpo suavizada pela impulsão da água salgada.

Sinto o sal na minha boca. É como se pela primeira vez o estivesse a sentir. Sinto os raios de Sol a aquecerem o meu corpo nu. Sinto-me protegido pelos peixes que me suportam — é como se estivesse a navegar numa nuvem de algodão — ao mesmo tempo que me sinto aquecido pelo Sol. Começo a espreguiçar-me, como se estivesse a acordar de um grande sono, e conforme me mexo a nuvem de peixes desfaz-se no oceano. Perdi o meu barrote de madeira. Não vou conseguir nadar tanto tempo. Resta-me boiar. É uma luta mais pequena, mas continua a ser uma luta. Percebo que não ter o barrote me diminuiu a minha ânsia de lutar, mas continuo a lutar. Concentro-me na minha respiração para facilitar o processo de ficar à tona da água. O meu corpo enche-se de sensações, sou inundado por um cocktail como se fosse uma droga e o meu pensamento volta a suavizar. Re-ganho consciência de mim. Volto à luta. Sinto-me mais leve. Talvez pela experiência de saber que não estou sozinho. Pelo menos, existem os peixes e o Sol. Sinto que isso não me basta. Preciso de me ligar. Mas como me vou ligar? Para quê? Porquê?

Encontro outras pessoas sem barrote, sem paus e sem pedras. Estão a rir. Divertem-se a boiar. Inconscientes! — diz o meu julgamento. O que vão fazer quando o Sol se for? Como vão dormir ou descansar. Revolto-me. Nado. Afasto-me. Embato numa delas, que me agarra. Suporta-me. Por momentos relembro-me da sensação de não ter de lutar, relaxo o meu peso suavizado pelo impulsão da água salgada no colo daquele ser que me envolve com os seus braços fortes e ao mesmo tempo ternos. Os meus olhos começam a chorar. Devolvo ao mar o sal que me emprestou. “Voltei a casa” — sai-me pela boca.

Caio. Sou solto. Sou surpreendido por uma pequena onda que me faz engolir o sal que entreguei. Sinto-me enganado, frustrado e humilhado. Como eu pude ser tão estúpido!? Como é que eu pude voltar a confiar!? Eu estou sozinho. Sempre estarei. É uma ilusão. Porque me largaste? Eu só queria sentir-me validado, visto, aceite. Eu exigi-te demais. Tu não podes ser a minha casa. É demais. A minha casa tenho de ser eu. Eu sei! Iludi-me uma vez mais. Ninguém pode pertencer a ninguém, e eu não sei existir sozinho. Não pertenço a este mundo. Sou errado. Faltam-me peças para encaixar, neste mundo, socorro, Ridículo! Gritas para quem? Como se alguém se importasse? RIDÍCULO! ÉS RIDÍCULO!!! Eu importo-me! É isso, vou importar-me! Se eu me importar pode ser que os outro se importem. Parece-me pesado. Parece-me demais para mim. Ignoro.

Encontro pessoas. Decido importar-me. Sinto-me mal. Luto contra o vazio. Importo-me mais. Desconfio do que sinto. Estou vestido de importância, e consolo-me com a nudez dos que cruzam o meu caminho. Sinto-me mal. Tento vender as minhas roupas aos outros, como se vendesse a salvação. Ninguém quer comprar. Ninguém precisa de roupas. Porque preciso eu de roupas. Sem roupas sinto-me nu, frágil, desprotegido. Passa o tempo e percebo que tenho ainda mais roupa. Começa a ser difícil suportar tanta roupa no oceano, mas parece-me tão importante, já não sei viver sem roupa.

Troco abraços com quem passa, mas a roupa que trago não me deixa sentir o outro — são repetidas experiências falhadas de voltar a sentir-me suportado e aconchegado. A ilusão da sensação de que posso ser EU. De que eu sou certo, e de que não sou errado. Percebo que me falta essa nota. Vejo-me como um piano velho a quem faltam algumas teclas. Observo o espaço vazio. Sinto uma dor, um vazio, uma impotência, um vazio.

Decido iniciar uma busca por uma tecla nova, corro por todas as lojas, armazéns, sucatas. Nada. Não encontro uma tecla que sirva no meu piano. Questiono-me se não recebi nada nesta busca. Percebo um tom comum do vendedor ao sucateiro. “Não tenho nada para ti” “Só tu podes reconstruir a tua peça”. Ouço relâmpagos. Sinto medo. Assusto-me e mergulho para não ouvir o barulho, o mar revolta-se, luto contra as ondas. Sou sacudido, fico inconsciente. Silêncio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Acordo numa praia deserta. Estou a sonhar. Volto a dormir. Preciso de descansar. Acordo numa praia deserta. Vomito. Não estou a sonhar. O que é isto? Onde estou? Não sei. Nada. Entro num choro compulsivo. Abraço-me. Volto a dormir. Acordo numa praia deserta. Estou num mundo estranho, tudo me é estranho. Grito. Bato na areia. Revolto-me. Volto a chorar. Volto a dormir. Não estou a sonhar. Não tenho força nas pernas, não me consigo mover. Fico. Vou ficando. Só posso estar. Espero. Espero tanto que quase sinto os meus cabelos a crescer.

Percebo que estou paralisado. Que as minhas pernas têm forças, e que é o meu medo que me paralisa. Tenho uma floresta à minha frente e sinto que não posso trair o mar. O oceano é a minha casa. Como posso largar o oceano? Se largar o mar nunca mais voltarei a casa. Nunca mais encontrarei a minha casa. A minha família. O meu colo. O meu ninho.

Decido dar um passo para a floresta. Percebo que sinto as ondas no meu peito. Vejo a minha vida num segundo, cai-me uma lágrima por tudo o que vivi, e por tudo que não vivi. Olho para o chão e vejo um ponto final. Percebo que já não sou o mesmo. Viro a cabeça para trás e olho pela última vez o Oceano. Coloco a minha mão no meu peito e sigo em frente. Percebo que não estou sozinho. Vejo velhos fantasmas conhecidos, amigos e não só. São de muitas cores. Dou outro passo. Dou outro passo. Dou uma gargalhada. Dou outro passo. Dou outro passo. Sinto medo. Dou outro passo. Dou outro passo. Caminho.

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