E Ainda Bem!

Ricardo Lapão
Reflective Practice on Life
4 min readJun 16, 2017

Por alturas do Pride em Lisboa sinto-me sempre convidado a reflectir sobre os temas da descriminação, da minha própria orientação sexual e do meu mundo afectivo e social no que diz respeito a esta diferença.

É curioso aperceber-me, sobretudo nos últimos 2–3 anos, como é diferente, como uma serie de ansiedades e necessidades já não me dominam, uma serie de medos já não se passeiam pela minha sombra, e uma certa paz reina neste tema, neste momento na minha vida, de forma um pouco ortogonal à minha maior ou menos satisfação na minha área afectiva. É saborosa essa paz.

Sinto orgulho nessa paz. Acho que é esse o meu Pride 2017! E pode parecer arrogante esse sentimento de orgulho, para mim não o é. Porque tenho a plena noção do custo, do esforço e do imenso caminho que tive de percorrer até aqui. E ainda bem!

Não sei bem qual é a realidade das gerações mais novas ou mais velhas que a minha. Diz-se que para os mais novos é mais fácil. Talvez. Tenho dúvidas. O que vou vendo aqui e ali mostra-me o contrário. Talvez justifique essa ilusão pelo domínio da ilusão virtual nos tempos actuais, em que os episódios dominam as histórias, as emoções os sentimentos, e os actos dominam os silêncios. Talvez.

Mas o que gostava de partilhar hoje aqui é um pouco desse caminho. Das curvas e contracurvas que estão por detrás desta paz. Penso nos meus amigos que também são homossexuais e vejo muita coisa em comum com o meu caminho.

Todos tivemos que nos afastar dos nossos círculos de amigos da escola. Todos tentamos muito manter e investir nessas relações até percebermos que a amizade não é suposto ser algo que se carrega sozinho, e muito menos algo que sobreviva à tolerância. E ainda bem.

Todos tivemos que enfrentar o furacão da adaptação familiar até aceitarmos construir um novo equilíbrio. E ainda bem.

Alguns familiares ficaram pelo caminho porque não estavam dispostos a fazer esse caminho e tivemos que aceitar que há o que podemos mudar e o que não podemos mudar. Percebemos os nossos limites e os dos outros. E ainda bem.

Todos tivemos que adiar a nossa adolescência, ou vivê-la em segredo, até descobrirmos que a dimensão sexual e afectiva é uma dimensão importante da nossa vida e que requer maturidade e que essa maturidade implica vivência, partilha e identificação. Isso levou-nos a construir novos laços, novos grupos, novos espaços seguros na nossa vida. E ainda bem.

Todos tivemos que amar e sofrer em silêncio, fazer escolhas erradas e limitadas até descobrirmos que era o nosso próprio preconceito que nos limitava a visão. E ainda bem.

Todos tivemos que viver várias ilusões até percebermos que «não é possível amar onde não há amor». E ainda bem.

Todos procurámos referências, respostas e alternativas incansavelmente, numa fome de aceitação. Uns viajando, lendo, outros fazendo terapia, vendo filmes e séries, outros tornado-se activistas ou simplesmente sentando-se várias horas em frente ao mar a pensar. Isso tornou-nos mais maduros, mais sensíveis à diferença e mais conscientes de nós e dos outros e ainda bem.

Todos tivemos que esconder partes de nós para construir carreiras, fechar negócios e ser reconhecidos pelo mérito, livre de preconceitos, até percebermos que o sabor não é o mesmo. Que não compensa. E ainda bem.

Todos pensámos várias vezes em desistir, em saltar fora, em deixar de fazer força. E percebemos que amar e ser amado não é um capricho mas uma necessidade. Isso deu-nos força para continuar. E ainda bem.

Todos começámos a dar os primeiros passos na nossa sexualidade sem ter a menor noção do que estávamos a fazer e não tínhamos ninguém com quem falar. Isso fez-nos explorar. E ainda bem.

Todos vimos pornografia e andámos em sites de engate para nos experimentarmos e aprendermos o que fazer e o que não fazer, o que gostávamos e não gostávamos e isso expandiu nosso leque de possibilidades, o conhecimento do nosso corpo e a nossa relação com o prazer e cresceu, assim como nosso à vontade para falarmos entre nós sobre as nossas experiências. E ainda bem.

Todos chorámos. E ainda bem.

Todos tivemos o privilégio de conhecer os nossos verdadeiros amigos, aqueles que realmente gostam e estão lá para nós independentemente dos preconceitos e das dificuldades. E ainda bem.

Todos questionamos várias vezes a nossa orientação sexual ao longo do caminho, e isso fez-nos ir mais profundamente dentro de nós e ainda bem.

Todos tivemos medo da SIDA e vivemos aterrorizados com esse fantasma até descobrirmos que não era um castigo para os gays, mas mais uma causa de muita descriminação. E ainda bem.

Todos sentimos na pele o não ter lugar neste mundo e isso fez-nos perceber o quão rico pode ser o mundo de casa pessoa. E ainda bem.

Todos fomos marginalizados pela religião e isso fez-nos crescer muito na nossa fé, seja em Deus, em nós ou na ciência. E ainda bem.

Talvez não sejam todos, talvez e ainda bem!

Hoje sinto verdadeiramente que ser homossexual é uma das maiores bênçãos da minha vida. E Ainda Bem!

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