Proibir o Afecto é Errado

Ricardo Lapão
Reflective Practice on Life
9 min readApr 14, 2016

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Eu sou Antigo Aluno do Colégio Militar, onde entrei no dia 21 de Setembro de 1992 com 9 anos de onde saí com 18, algures em Julho do ano 2000. Quem entra em minha casa percebe-o rápida e facilmente pois são muitas as referências. Eu sou uma pessoa de recordações e desses 8 anos tenho muitas e boas, assim como outras bastante desagradáveis — como as tem qualquer pessoa da sua infância e principalmente da adolescência. É com orgulho que o digo que andei no Colégio Militar, pois durante esses 8 anos vivi, cresci e aprendi muita coisa, e muito do que eu sou hoje devo-o também aquela Casa e ao tempo lá passado. Ao contrário de outros, entrei no Colégio de sorriso de orelha a orelha e saí com os olhos em lágrimas, de nostalgia e saudade, mas também de medo. Aquele medo de quem sabe que tem que largar o colo da mãe para ir para a vida. O “Colégio” foi para mim muitas vezes Pai e Mãe. E como os Pais e as Mães foi muitas vezes injusto, cruel, duro e castrador.

Escrevo esta introdução para tornar claro que o meu amor pelo Colégio é inquestionável, não admito que alguém o coloque em questão. Uma das coisas que o Colégio me ensinou, que penso ser uma característica bastante comum nesta fauna, foi a de ter espírito crítico, e consequentemente um nível de exigência que hoje muitas vezes até me atrapalha. Sobretudo nos últimos anos do Colégio sempre fui conhecido por ser crítico em relação a muitas coisas que aconteciam no Colégio, sobretudo no que diz respeito à violência e ao processo educativo (e reconheço que hoje em dia, para meu agrado, tem havido um progresso). Como era próprio da idade, eu defendia as minhas posições com muita veemência, sangue na guelra e ignorância, o que não ajudava muito à minha causa.

Durante os meus dois últimos anos, em que fui graduado cometi muitos erros e excessos, mas tenho como contrapontos disso o enorme valor da experiência que me foi dada de com 17–18 anos ter a responsabilidade de zelar por 80–90 crianças entre os 11–13 anos, as relações que criei com alguns desses miúdos, e os elogios que recebíamos dos pais sobre a diferença que fazíamos na vida daquelas crianças.

Não me tenho por uma pessoa dogmática, obtusa ou extremista. A vida deu-me muita “porrada” que felizmente me tem trazido um olhar mais doce sobre a vida e sobre mim próprio. Da mesma forma estou muito longe de ser perfeito, um exemplo, ou qualquer outra coisa acima de qualquer outro. Sinto-me humano e essa condição traz-me muita satisfação. Até porque a minha vida é recheada de contradições, opostos e ambivalências, fazer o quê… “O mundo pula e avança”!

“A juntar à festa” sou homossexual, e também nisso tenho orgulho. (Curiosamente, da mesma forma que fui vogal da direcção da AAACM sou vogal do Conselho Fiscal da ILGA Portugal) Hoje sei que sempre o soube e que sempre o fui (eu sei que parece contraditório). E, como é fácil de perceber, a minha constatação desse facto aconteceu enquanto eu era aluno do Colégio Militar. Eu quando entrei para o Colégio nem sabia o que era isso de homossexualidade. A primeira vez que me lembro de ouvir tal palavra foi a agora famosa frase dos “3 tabús do Colégio” — honestamente aquilo na altura não me dizia nada. Eu nunca tinha experimentado nada da minha sexualidade, por isso tudo o pudessem juntar como prefixo a sexualidade eram coisas meramente conceptuais que me diziam mesmo muito pouco. No entanto, o que também é fácil de imaginar, descobrir-se ser algo num meio que criminaliza esse algo e onde a ligação emocional com esse meio é de uma intensidade próxima de Pai e Mãe, é algo digamos que desafiador…

Não consigo precisar bem quando, pois uma coisa como a nossa identidade e orientação (sexual ou outra) não é algo que se descubra por anúncio ou comunicado, é algo que se vai percebendo, mas penso que a primeira vez que tive verdadeiramente consciência da minha homossexualidade e das suas consequências práticas foi quando no meu 4º ano um grupo de miúdos do meu curso (ou do meu ano) foram “apanhados” e apesar da tentativa que o meu curso fez de omitir os factos, eles foram descobertos e os miúdos “expulsos” do Colégio (e nós todos castigados por termos tentado omitir os factos). Lembro-me perfeitamente do último momento da saída deles, as lágrimas escorriam-me pela cara, o que era fácil de justificar com o afastamento de crianças que conviveram durante quase 4 anos juntas diariamente e cujo vínculo era naturalmente forte, mas a verdade é que eu chorava de medo e desespero. Eu sabia que a partir daquele momento eu não poderia continuar com a cabeça enterrada na areia, eu sentia-me uma fraude! Eu, que nunca tive uma educação particularmente católica, agradecia a Deus não ter sido descoberto e pedia desesperadamente que as coisas continuassem dessa forma, em troca, eu ía ser um aluno exemplar. E assim foi, eu cumpri a minha parte do acordo, e Deus cumpriu a Dele. Uns bons anos mais tarde lembro-me de revisitar essas memórias e nessa altura pensar que mais valia que tivesse sido descoberto (Tem cuidado com o que desejas ahahahaha), que teria sido tudo tão mais fácil, mas a verdade é que isso ninguém sabe e, segundo eu acredito, tudo tem um propósito.

Durante os anos que se seguiram eu investi toda a minha energia na minha auto-castração, apesar das várias paixões, elas eram impossíveis, e eu sabia-o. Mas o pior não era sabê-las impossíveis, pois isso continua a ser verdade nos dias de hoje quando nos apaixonamos por alguém e não somos correspondidos, independentemente do género. O pior dano foi o medo da humilhação, o senso de indignidade e de vergonha. Posso dizer que o meu medo de ser descoberto e da humilhação consequente era do mesmo tamanho senão superior ao medo da morte.

O culminar deste senso de indignidade foi quando no final do penúltimo ano, enquanto me despedia do meu Comandante de Companhia oficial, este me diz, achando que me estaria a dar um óptima notícia, que eu seria o próximo Comandante de Batalhão. Acho que esse foi o único momento em que houve algo mais forte que eu que se sobrepôs ao meu elevado auto-controlo e eu desatei a chorar na cara dele. Ainda hoje não sei como é que ninguém percebeu aquilo como anormal, mas a verdade é que o meu acto de desespero me salvou e eu não fui o Comandante de Batalhão. Este foi o tamanho do dano e era o tamanho do meu amor ao Colégio. O Colégio não poderia ter um Comandante de Batalhão homossexual.

Quando olho para trás penso que tudo isto poderia ter sido evitado, não me arrependo do que vivi, mas se poder fazer algo hoje para que amanhã seja melhor, sinto que o devo fazer. E por melhor entendo inclusão e não exclusão, pois a sexualidade, independentemente de ser homo ou hetero ou bi não é uma ameaça para ninguém, até porque não é algo que seja passível de ser alterado. Ao contrário disso, a repressão é! E quanto maior a repressão, maior a perversão.

A minha história mostra-me muitas coisas, e uma das coisas que me mostra claramente é que a orientação sexual de uma pessoa em nada define os seus comportamentos, posturas ou educação. Eu diria que se é uma ameaça tão grande uma criança ou jovem homossexual num ambiente de internato talvez fizesse sentido haver campos de férias só para homossexuais, piscinas e ginásios só para heterossexuais, talvez fizesse até sentido isso constar do seu cartão de Cidadão.

Desde que “saí do armário”, apesar de ter continuado a ser a mesma pessoa, com a mesma família, os mesmos amigos, a fazer as mesmas coisas e a pertencer aos mesmos grupos, houve uma relação que ficou para sempre danificada, a minha relação com “o Colégio”, numa primeira fase em que eu próprio me sentia indigno de ter lugar nessa relação, sentindo-me indigno e inferior por ser homossexual e numa segunda fase por perceber que para “o pessoal do Colégio” (em particular com o pessoal do meu curso, onde o vínculo é mais forte) eu sou errado. Com excepções como é claro, mas infelizmente são mesmo excepções, pois o preconceito em relação à homossexualidade fala mais alto que tudo o resto, o que não é de espantar pois o condicionamento para essa visão é forte, constante e intenso, como tal garante não só a preservação do mesmo como a alimenta por garantir a continuidade da ignorância. E esta é apenas uma questão de educação, nada mais.

Tudo isto para dizer duas coisas, uma que me sinto perfeitamente em paz tanto com a minha frequência no Colégio Militar que muito agradeço como com a minha homossexualidade que já me salvou muitas vezes, e outra que me sinto particularmente legitimado para falar sobre o tema.

Quando li a notícia que saiu no jornal Observador, fiquei triste, mas ao contrário do que se possa pensar não tanto pelo que se disse sobre a homossexualidade, mas sobre o que se disse sobre os afectos. Como se lê no texto retirado do Guia do Aluno “Para além da normal convivência, solidariedade e camaradagem, não praticar ou adotar qualquer comportamento, atitude ou manifestação de relacionamento afetivo dentro do Colégio, ou no exterior, quando fardado, que possa comprometer os princípios inerentes a um ambiente pedagógico saudável” ou como diz o subdirector da instituição “é bom que não haja afetos” — isto foi o que mais me chocou e choca! Como é que é possível nos dias de hoje uma frase destas constar do plano pedagógico de uma escola! Isto para mim é chocante! Por isso foi com grande surpresa que vi toda a confusão à volta da questão da homossexualidade. Eu acho óptimo que haja diversidade nos planos pedagógicos e orientações das escolas, mas isto é errado!

Para mim é claro que a descriminação por orientação sexual é uma realidade no Colégio Militar, assim como é claro que essa descriminação é errada, e que ao contrário do que muitos apregoam, o ser uma escola com regime de internato está longe de ser uma justificação aceitável. Mas proibir o afecto entre pessoas é muito mais errado! (se é que se pode dizer tal coisa)

Eu sei bem, até pelo trabalho que faço, que a sexualidade contínua a ser um bicho papão, e que sempre que se fala de sexualidade as pessoas ficam constrangidas, mas o preconceito em relação ao afecto, isso confesso que não estava à espera! Que tipo de sociedade é que queremos construir?

E, na verdade, é o preconceito em relação à sexualidade que alimenta o preconceito em relação à homossexualidade. O preconceito em relação ao corpo, à intimidade, ao toque, à emoção e ao prazer. Quantos homens e mulheres não existem com medo da sua própria sexualidade? Com medo das suas próprias emoções? É esse medo que alimenta o preconceito e a ignorância. Esta ignorância afectiva que insistimos em alimentar que apenas nos deixa mais isolados, insensíveis, e infelizmente doentes. Ao contrário do que aquilo que a homofobia pretende propagar, a homossexualidade, em primeiro lugar, é uma questão de afectos e não uma questão de sexo! Que é do domínio do Sentir e não do domínio do Fazer!

Se eu não tivesse andado no Colégio ficaria indignado com esta afirmação, como andei além de ficar indignado, fico triste. Fico triste porque tenho uma relação afectiva com o Colégio, e porque tenho uma expectativa, porque sei o valor e o potencial que o Colégio tem, e tenho pena que esse potencial não seja aproveitado. Mas como sou um optimista, tenho esperança que esta polémica possa ser usada para progredir e evoluir para uma educação mais humana, pois, por mais voltas que dermos, por mais que se berre, essa é a condição essencial que nos junta a todos no mesmo barco, Sermos Humanos.

Por isso fico contente com a demissão do CEME, apenas lamento que este não tenha tido a capacidade de assumir os motivos da sua demissão e se tenha escondido atrás de “motivos pessoais” pois, como dizia o Thomas Kuhn em “Estrutura das Revoluções Científicas”, a teoria velha só desaparece quando os seus defensores são depostos, pois eles não têm, nem nuca vão ter a capacidade de compreender a nova teoria.

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