Computador do ou no Brasil?

Independência e tecnologia

Andre Sobral
Reflexão Computacional
8 min readJun 7, 2019

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Existe diferença entre possuir uma tecnologia e dominá-la? Será que computadores no Brasil são diferentes de computadores do Brasil? Acompanharemos a história dos computadores brasileiros e da reserva de mercado que permitiu um maior desenvolvimento da indústria nacional. O que é uma nação?

Foi seu Cabral?

O que seria o Brasil? A terra em que os navegadores portugueses chegaram já era o Brasil? Ou era a Ilha de Vera Cruz? As capitanias hereditárias já eram o Brasil? Os povos que aqui habitavam, os limites do território e como os colonizadores entendiam este lugar são conceitos que se transformaram com o tempo.

Quando nos tornamos o Brasil? Do que somos feitos? De gritos do Ipiranga? De inconfidentes mineiros? De verde e amarelo, as cores da casa real de Orléans-Bragança? De hinos repletos de brados retumbantes? Identidades nacionais e seus símbolos são feitos de histórias, narrativas repletas de significado.

Independência ou atraso!

A reserva de mercado pretendia criar as condições para produzir no país máquinas da modernidade, os computadores. No lado esquerdo da imagem acima temos duas narrativas que explicam como isso seria irracional e uma produção de lixo, um atraso para o país. No lado direito temos uma narrativa de que a tecnologia é o único caminho para uma verdadeira independência.

Contar histórias é fundamental, elas constroem o mundo em que vivemos e nos ajudam a entender os acontecimentos. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, o narrador está sempre interessado em adicionar à história seu ponto de vista e percepção de mundo. Toda história interessa a alguém e move pessoas em alguma direção.

As histórias que ouvimos nos convencem a enquadrar o que vivemos em certas categorias, no Brasil, por seu passado colonial, estamos acostumados a pensar o país sob a ideia de atraso. Existe um mundo lá fora que é mais inteligente, avançado e moderno, um ideal que quando comparado ao nosso cotidiano destaca que estamos atrasados.

O programa espacial brasileira é um fracasso?

Como entendemos o passado como casos de fracasso ou sucesso? Quanto algo pode dar errado antes de ser considerado um fracasso? Com quantos erros é construído o caminho para o sucesso? Sempre que falamos de vitórias ou derrotas, estamos trazendo alguma régua para medir e avaliar o caso.

O aprendido com os erros é fundamental para a construção de algo bem sucedido, e é somente através da tentativa e erro que algo torna-se possível. É através das nossas narrativas sobre nossos sucessos e fracassos que estabelecemos as fronteiras do que é ou não é realizável. A partir de agora, sempre que escutarmos uma história de fracasso ou sucesso nós faremos a seguinte pergunta: Para quem? Por que? Para que?

Onde está a ponta da tecnologia?

A narrativa do fracasso da reserva de mercado de computadores parte de um público específico, uma fração do empresariado e da mídia. Para estes atores os computadores brasileiros eram mais lentos e menos eficientes que os competidores internacionais. Segundo essa história, o Brasil estaria prejudicando sua economia ao não possuir os computadores mais modernos e velozes estrangeiros.

Quantos computadores de alta velocidade “de ponta” ocupam espaços nos negócios e lares brasileiros atualmente? Será que houve um ganho significativo com o fim da reserva de mercado ou estamos ainda utilizando as máquinas velhas que se tornam obsoletas no estrangeiro?

Desde 1964, o Brasil estava sob regime militar, e presidentes como Ernesto Geisel que eram parte de uma ala intelectual do exército, enxergavam o domínio dessa tecnologia como uma questão de independência nacional. Sem computadores nacionais não haveria controle sobre as cada vez mais comuns armas de guerra computadorizadas como navios, aviões e tanques.

Barbudos revolucionários carregando computadores na selva?

Para possibilitar a criação da indústria nacional de computadores, jovens estudantes de engenharias foram enviados pelo governo para as principais universidades estrangeiras com a missão de aprender e copiar o que fosse possível e retornar para o país. Será que isso seria possível com uma obediência as patentes de propriedade intelectual? Algum país se industrializou sem engenharia reversa?

As universidades brasileiras são polos de excelência na formação especialistas qualificados, e durante este período histórico houveram políticas públicas voltadas para a absorção e aplicação destes talentos na economia do país. No entanto, ocorre também o fenômeno chamado “Fuga de Cérebros”, onde os pesquisadores e especialistas são contratados por empresas no exterior e trabalham para os interesses e problemas delas ou deixam o país, levando consigo anos de investimento.

O que eu vou fazer com essa tal liberdade?

Quando pensamos em ditadura geralmente a imaginamos controle rígido e uma repressão irrestrita aos dissidentes. No início da reserva de mercado observamos uma exceção a regra em certos círculos de especialistas considerados necessários ao desenvolvimento nacional, como no caso da computação.

Os engenheiros da computação desfrutavam em pleno regime militar de várias liberdades para criticar o governo e propor mudanças no regime, possuíam revistas de circulação ampla e eventos onde se falava com relativa facilidade em projetos de Brasil muitas vezes discordantes com o regime. Justamente essa liberdade e integração da comunidade é apontada como um dos motivos do seu bom funcionamento nos relatos da época.

Lembra de algumas dessas marcas?

Quando imaginamos a reserva de mercado, é fácil cair em uma história estatizante em que uma única empresa monopoliza o mercado nacional, mas esse não é o caso. No Brasil muitas empresas privadas foram criadas e prosperaram, dominando fatias significativas das vendas. Empresas são fundamentais para o domínio de uma tecnologia, não bastando apenas os cientistas em seus laboratórios.

Uma tecnologia só é dominada através da prática de seu ciclo completo: é preciso desenvolver e inovar nos laboratórios, produzir protótipos testados e bem sucedidos, treinar mão de obra especialista e finalmente implementar em um mercado produtos viáveis para o consumidor.

Produzir uma indústria nacional não é uma mera aposta onde se joga contra a sorte e o contexto da época, é um projeto planejado e executado minuciosamente. As forças econômicas internacionais já consolidadas não assistem passivamente seu mercado ser tomado por novas empresas de outros países.

Independente de quem?

O Brasil já comprava computadores antes da reserva, principalmente da IBM, será que é simples assim fechar o mercado? Como dizer não aos gigantes da informação do mundo? A pergunta inquietante para os militares que planejavam uma indústria nacional de computadores era como enfrentar os interesses dos seus aliados do norte.

A resposta veio através das condições contratuais, o governo estabelecia ricos editais de contratação de máquinas e serviços, mas exigia a contrapartida das peças serem fabricadas nacionalmente com mão de obra brasileira e se possível transferência direta de tecnologia. Assim, lentamente, construía-se a comunidade necessária para o domínio nacional.

Será que ter aparelhos como televisores, celulares e computadores basta para os brasileiros ou eles precisam saber como funcionam e construí-los por aqui? Uma vez que a riqueza é produzida, importa quem o faz? Para onde e para quem vai o dinheiro do brasileiro? A indústria brasileira de computadores fortaleceria os trabalhadores locais e o empresariado nacional.

O importante é ser campeão no futebol

Se analisarmos os dados econômicos da reserva de mercado de computadores, observaremos primeiro que não houve momento em que os computadores estrangeiros foram proibidos ou retirados completamente do mercado. Em seguida, será fácil perceber quantos bilhões eram produzidos neste mercado de tamanho significativo.

Quantos bilhões precisamos ganhar para declarar o sucesso de uma indústria? Precisamos de computadores “de ponta” para as necessidades nacionais? A narrativa do atraso e da irracionalidade é fundada sobre a noção de que não eramos bons o suficiente, modernos o suficiente, avançados o suficiente, noções estabelecidas com réguas importadas.

Programadores e engenheiros comunistas embaixo das nossas camas

Como a reserva chegou ao seu fim? Um dos elementos apontados por aqueles que viveram o fim da reserva é a perseguição governamental e o silenciamento da comunidade da computação.

Após a mudança de liderança do regime militar, os intelectuais deram lugar aos espiões, João Batista Figueiredo saia direto do Serviço Nacional de Informações para a presidência. Figueiredo é conhecido como um dos líderes da abertura da ditadura, mas sob sua liderança que ocorrem cerca de vinte e cinco atentados promovidos pela própria ala conservadora dos militares.

No campo da reserva de mercado, foi criada a Secretaria Especial de Informática, por onde todas as decisões passariam e que seria composta majoritariamente por militares com poder de veto sobre as propostas do civis. É nessa época também que se inicia a investigação e interrogatório das principais lideranças da indústria nacional de computadores.

Ocorreram inúmeras situações onde a Secretaria Especial de Informática julgava e votava processos movidos por estrangeiros onde empresas brasileiras eram derrotadas pelos votos dos militares e as renovações tecnológicas e políticas necessárias eram atrasadas.

Fracasso como destino inescapável

Com a abertura democrática finalmente consolidada, era de se imaginar que algo poderia ser recuperado da comunidade de informática, mas já haviam sido perdidos muitos anos de uma mudança importante, a troca dos minicomputadores por microcomputadores. Além disso, a democratização não significou um governo que apoiava a indústria de computadores.

Fernando Collor, como primeiro presidente eleito pelo voto direto após a redemocratização, possuía a mesma retórica de modernização e atraso. Ele foi responsável por políticas de privatização e abertura do mercado brasileiro, marcando a derrocada da indústria automobilística e de computadores. Para ele os carros nacionais eram carroças e nossos eletrônicos pouco mais do que lixo.

Caixas e urnas eletrônicas

Será que os caixas e as urnas eletrônicas possuem algo da reserva de mercado? A tecnologia nacional contribuiu em algo para a criação e manutenção destes artefatos? O Brasil é o país com maior número de caixas eletrônicos do mundo e um dos setores bancário mais fortes, esteve também entre os pioneiros do uso do Linux como sistema operacional para bancos.

O Brasil é o país pioneiro na utilização de urnas eleitorais eletrônicas, já tendo exportado a tecnologia para mais de trinta países, enquanto Estados Unidos e Europa ainda enfrentam dificuldades na consolidação do voto eletrônico. Quem define a tecnologia de “ponta”? É preciso estar na “ponta” para que o voto seja realizado? Devemos sempre pensar as histórias e suas conclusões de sucesso e fracasso a partir destas três perguntas: para quem? Por que? Para que?

Referências

Benedict, Anderson. Imagined Communities. 2. ed. Verso, London 2006.

Fernandes, Jorge Monteiro. Testemunho de uma vida entremeada com a política Nacional de informática de 1970 a 1990. SHIALC, 2012.

Marques, Ivan da Costa. Reserva de Mercado: Um mal entendido caso político-tecnológico de “sucesso” democrático e “fracasso” autoritário. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. 10(2): 657–81, maio-ago. 2003.

Silva, Márcia Regina Barros da. Para que fazer história da informática? SHIALC, 2012.

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