Contra Cultura, Hackers e o Movimento Maker

Apropriação da tecnologia e autonomia

Andre Sobral
Reflexão Computacional
6 min readMay 24, 2019

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A contra cultura é uma oposição a cultura? O que são Hackers? Fatiadores? O que seria um movimento fazedor? É preciso um espaço para ser Maker? Quem pode dizer o que é ser um Maker? Vamos ouvir uma história sobre apropriação da tecnologia e autonomia.

A juventude inspirada propõe um novo mundo

A contra cultura foi um movimento de resistência e questionamento de padrões culturais dominantes de uma época. O que era esperado de você? Nos Estados Unidos existia a “Modo de vida Americano” ou o “Sonho americano”, no Brasil também existia este modelo de decência.

O cidadão de bem, religioso e recatado que obedeceria as leis, trabalharia de roupa formal em uma empresa, teria uma casa de gramado verde e cerca branca em um subúrbio, teria uma família tradicional com ao menos um filho e eventualmente lutaria em uma guerra caso o Estado precisasse.

As guerras que os Estados Unidos passaram a se envolver, trocaram figuras antes claramente ameaçadoras como o Adolf Hitler e seu Nazismo por uma influência dos Soviéticos em países longínquos como o Vietnã. Em meio a um crescimento da luta por direitos civis, com a consolidação do Movimento Negro e do Movimento LGBT, tornava-se cada vez mais difícil justificar as mortes em terras distantes.

A Contra Cultura seria um movimento para questionar as obediências ao Estado e a regras estabelecidas como “normais”, exigindo liberdade pessoal, profissional, direitos e a construção de um outro mundo possível. São essas ideias de autonomia que provocariam uma revolução no campo da cultura, produzindo narrativas que afetariam a economia e a indústria.

O computador também alimentou sonhos pelo mundo

As ideias de liberdade da Contra Cultura levariam a concepção de que o conhecimento deveria ser livre também. Inspirados, os estudantes de Berkley, na Califórnia, criaram um projeto de memória comunitária, colocando terminais simples que funcionavam como quadros de avisos onde a população poderia trocar notícias, receitas ou quaisquer outras informações.

A América Latina também vivia este sonho de informação democrática, no Chile de 1970 governado por Salvador Allende, um projeto audacioso chamado Cybersyn utilizava as redes telefônicas para produzir uma economia planejada capaz de escutar as industrias de todo o país. Com inspiração dos filmes de ficção científica, seu centro de comando tinha a mesma estética das naves espaciais.

Na mesma época, o Chile ainda ensaiaria um sistema de participação democrática nas votações da câmara de vereadores, o Cyberfolk, onde o povo poderia assistir e votar do conforto de sua casa nas medidas que estavam sendo discutidas pelos políticos, tudo realizado com pequenos receptores conectados a televisão e um controle remoto. Cinquenta anos depois e ainda temos dificuldades de encontrar projetos semelhantes sendo implementados pelo mundo.

A terra como um sistema fechado onde não há espaço para o lixo

Juntamente com essa revolução de negação da ordem tradicional da sociedade, vieram também os movimentos ambientalistas, preocupados com o desenvolvimento como uma busca pelo progresso interminável. Seria possível sermos mais bem sucedidos e ricos que nossos pais? E nossos filhos o seriam mais que nós? E nossos netos mais que nossos filhos?

Essa reflexão sobre o que seria o progresso e o desenvolvimento levaria a uma visão do mundo como um lugar frágil, onde o equilíbrio é mantido por ciclos em um sistema fechado que é o planeta. O que chamamos de lixo não irá a lugar algum se não for transformado por nós em algo diferente.

Assistências técnicas e manutenção são essenciais para o funcionamento do mundo

Essa percepção do mundo como um lugar que necessita de atuação constante para manutenção nos leva a enxergar redes antes “invisíveis” de pessoas responsáveis pelo reparo das coisas e lugares que utilizamos.

Nada funciona se não houverem pessoas trabalhando ativamente na manutenção do mundo. A energia elétrica, os aviões, as construções, a água, as estradas, todas dependem de pessoas que acordam todas as manhãs e se dedicam a manter a estabilidade do mundo em que vivemos.

Os quiosques de reparo nas feiras do Brasil e o improviso como solução provisória

Mas o que acontece nos lugares onde não há uma infraestrutura de reparo formal? O mundo para de funcionar? Como os pequenos quiosques de reparos de celulares nos mercados populares do país aprendem como fazer seu trabalho?

É aqui que podemos notar como o conhecimento sobre as coisas e o trabalho são desenvolvidas também na prática cotidiana e na necessidade. Quando não há redes formais ou elas são muito caras para a população, o povo desenvolve seus próprios meios de manter o mundo em funcionamento.

A gambiarra, tão celebrada no Brasil como criatividade e criticada como informalidade, é exatamente essa forma de superação e autonomia pela necessidade.

O artesanato é uma das formas de trabalho autônomo mais celebradas por sua autenticidade na nossa cultura

É por aqui que podemos começar a pensar o Movimento Maker, ele parte de uma familiaridade com o trabalho. A partir da apropriação do conhecimento pelo trabalhador, ele pode atuar de forma criativa para além da mera repetição da mesma tarefa.

Os computadores Apple são exemplo de inovações industriais que surgiram da garagem

A história do computador pessoal, que hoje ocupa nossas casas e ambientes de trabalho, parte justamente dessa apropriação do conhecimento pelos profissionais e amantes da área. Foi nas garagens e nos tempos vagos dos engenheiros e técnicos que surgiram várias das inovações industriais que hoje se fazem presente em nossas vidas.

A informação livre como um valor em si

Surge também deste desejo de autonomia a ideia de que a informação deveria ser sempre livre, gratuita e aberta. Como uma resistência a propriedade intelectual defendida pelas corporações, os profissionais qualificados se uniriam para quebrar sistemas de empresas e compartilhar informações para o público.

O sigilo governamental e empresarial seriam entendidos como formas de privatização e controle do mundo, selecionando quem teria direito e a possibilidade de aprender e construir no mundo. O movimento Hacker é justamente a luta por essa máxima de liberdade do conhecimento e o direito a nossa independência intelectual.

O movimento Maker propõe este retorno a relação artesanal com o trabalho e a qualificação das pessoas para atuar, modificar e controlar suas coisas. No entanto, existem organizações que produzem uma marca e uma padronização do que seria um fazedor.

Espaços privativos e caros são construídos para reunir ferramentas de alta tecnologia e facilidades, onde produtos e acesso são comercializados sob um rótulo de modernidade e estilo para um público de alta renda. Será que o movimento Maker pode ser entendido como um clube para entretenimento e expressão artística?

O Movimento Maker defende em seu manifesto pelo conserto os valores que orientam sua atuação, que em nenhum momento se baseiam em marcas e clubes. A defesa é uma postura filosófica em frente ao mundo e nossa relação com as coisas que o habitam.

O Maker enxerga em nossa relação com o consumo e com os objetos uma necessidade de autonomia. Não saber consertar e construir não é mera especialização do trabalho, mas uma relação de dependência e exploração com forças corporativas.

Somos todos potenciais fazedores, e nossa atuação como consumidores e como estudantes ou professores é uma questão política. Só é possível modificar os objetos e relações do mundo nos apropriando das tecnologias e as aplicando a diferentes contextos e situações. Não teríamos a internet, os computadores pessoais e a ciência que temos hoje através da submissão e obediência das regras que controlaram e ainda tentam deter o conhecimento e a informação.

Referências

Roszak, Theodore. O computador e a contra cultura. Em: O culto da informação, O folclore dos computadores e a verdadeira arte de pensar. Ed. Brasiliense, 1988.

Jackson, Steven J. Rethinking Repair. Em: Media Technologies: Essays on Communication, Materiality and Society. MIT Press, 2014.

Jackson, Steven J. Speed, Time & Infraestructure. Em: Sociology of Speed. Oxford University Press, 2016.

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