Deep Web, a internet e ciberespaço

Andre Sobral
Reflexão Computacional
9 min readJul 5, 2019

Conhecendo a rede

Uma figura anônima se esconde nas sombras de um quarto iluminado somente pelo brilho tênue de uma tela de computador, um capuz cobre seu rosto sorridente enquanto ele mergulha nas profundezas secretas da rede mundial de computadores atrás de falsificações de programas.

Essa é a narrativa mais comum que encontramos quando o assunto é a internet, um misto de mistério e perigo que aponta para uma capacidade desproporcional de realizar mudanças no mundo para aqueles que a dominam.

Para entendermos melhor de onde vem esse tipo de narrativa e por que a rede ainda é vista desta forma, precisamos fazer um retorno ao passado em busca da história da rede.

Caiu na rede é peixe?

Quando o assunto é a internet, rapidamente surgem as metáforas mais diversas para explicar suas características. Uma hora ela é como rede ou uma teia de aranha conectando e prendendo a todos em seus fascínios, outra hora ela é fluída como o mar, onde surfamos e navegamos em busca do que desejamos. Mas o que é a rede? Onde podemos encontrá-la?

Avenidas de vidro que transportam informação luminosa

A internet também é pensada como algo intocável, virtual, um mundo feito apenas de informações que flutuam como nuvens em um espaço não físico. No entanto, a internet é uma rede literal, de milhares de metros de cabos, milhões de eletrônicos, infinitos kilowatt’s de energia elétrica e incontáveis profissionais atuando em sua manutenção.

Antes da internet veio o telefone, antes do telefone veio o telégrafo.

Sistemas de comunicação sempre dependem de meios de transmissão da informação, quando a distância se torna um desafio insuperável pela voz, apelamos para outros tipos de sinais. Fumaça, bandeiras, pipas e luzes foram historicamente usados para transmitir mensagens visualmente através de grandes distâncias, mas mesmo a visão possui limitações de distância.

A tecnologia de maior alcance por muito tempo foi a escrita, podendo transportar mensagens e manter sua integridade por longas distâncias. No entanto, a mensagem escrita dependia do deslocamento do seu portador, limitada pelos transportes da época, primeiro das pernas dos carteiros e animais de tração como cavalos (ou asas dos pássaros mensageiros) e eventualmente da potência dos motores dos navios, trens e aviões.

O passo seguinte da comunicação à distância foi o desenvolvimento da comunicação sinais elétricos e por ondas. O telégrafo era um cabo de material condutor, geralmente cobre, conectado a um dispositivo que produzia uma corrente elétrica que podia ser interrompida, o padrão de interrupção da corrente poderia ser lido em outro ponto do cabo e interpretado usando o código Morse.

Uma vez desenvolvidos os computadores, inicialmente grandes máquinas que ocupavam salas inteiras, conectá-los a diferentes máquinas que pudessem enviar e receber comandos passou a ser uma necessidade. A primeira concepção de uma rede baseada em um único computador, um servidor, e uma rede local de terminais de acesso a esta máquina.

É nesse sistema que são desenvolvidos os primeiros moldes das trocas de mensagens entre diferentes aparelhos. Era precisa diminuir o ruído e a chance de perda da informação, desta forma convencionou-se que os dados não seriam transmitidos em um fluxo contínuo mas em pacotes que seriam reconstituídos no receptor.

O que chamamos de lag (o congelamento ou atraso) em nossa experiência da internet é justamente o descompasso (causado por muitas coisas diferentes) entre estes pacotes e comunicações entre duas máquinas conectadas.

A expansão da lógica dos terminais locais para a conexão de diferentes centros de computação era apenas mais um passo na expansão das redes de computadores. A necessidade que tornou essas conexões realidades era o desenvolvimento científico e militar, que precisava tornar mais eficiente sua organização e tempo de resposta a ameaças.

O Laboratório Nacional de Física no Estados Unidos foi um dos primeiros a ser conectado outros centros de pesquisa de ponta do país pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa, chamando a rede de ARPANET, criando também uma rede separada apenas para as bases militares chamada MILNET.

A conexão entre diferentes modelos de máquinas com propósitos diversos civis e militares exigiu uma uniformização de como os dados eram transmitidos e armazenados, assim como a identificação dos aparelhos conectados. É assim que surgem o que chamamos de Transmission Control Protocol e Internet Protocol(TCP-IP).

Os números seguidos de pontos que usamos como endereço na internet são resultado dessa uniformização, um protocolo que instrui comos identificamos as máquinas conectadas, existindo na prática um código diferente para cada ponto da rede. O HTTP é justamente mais uma forma de uniformização da organização dos códigos utilizados para a comunicação entre os computadores.

A própria internet significa “conexão entre redes” ou seja, várias redes nacionais foram unidas em uma grande rede, quando digitamos www no início de um endereço estamos escrevendo world wide web, ou “rede mundial”. Existem conectados as redes não só usuários mas também servidores, máquinas dedicadas a responder a demandas dos usuários, são elas que nos atendem quando solicitamos algo digitando um endereço.

O endereço que escrevemos como “www.google.com.br” é o que chamamos de Uniform Resource Locator(URL), outro padrão que significa um localizador para encontrar um servidor em uma rede, servidor esse registrado em um banco de dados de endereços indexados da rede.

Atualizaram a rede para uma nova versão?

Nos últimos anos a internet passou a ser conhecida por boa parte do planeta que ainda não estava “digitalmente incluída”, a expansão do acesso a rede caminho juntamente com a popularização da chamada “web 2.0”, nome dado ao uso da internet voltado para redes sociais onde o usuário é também o principal produtor de conteúdo.

Esse período também ficou conhecido pelo advento de buscadores que pesquisavam as bibliotecas indexadas da rede facilitando a navegação. Outra novidade foi o surgimento de novas formas de acesso, em especial os cafés de internet e as lan houses que ofereciam máquinas e conexão por períodos de tempo a baixo custo para pessoas que não possuiam computadores.

A revolução no modo de uso da internet foi em seguida consolidada com o barateamento dos smartphones, computadores de bolso que também possuiam a função de telefonar (atualmente poucas pessoas ainda usam desta forma). Todas essas transformações modificaram a nossa relação com a internet, abrindo espaço para uma diferente percepção da rede.

O que entendemos por internet está mais para uma pequena superfície

Quando acessamos a rede, tudo o que aparece nas buscas e é acessível em um clique é o que chamamos da rede indexada, ela é a internet formal que apresenta produtos, textos, vídeos e imagens, aqui estão as portas de entrada para os conteúdos comerciais e privados.

Aqui já estamos na chamada “deep web”, que não necessariamente é tão profunda assim

O acesso a a sites de empresas e lojas vão nos levar diretamente a lugares reservados, que requisitam uma identificação e uma senha do usuário, basta atravessar essas passagens que já temos uma forte chance de ter alcançado a internet profunda.

A “deep web” é todo aquele conteúdo não indexado diretamente, protegido e ocultado das buscas e dos navegadores comuns por controles, catracas, senhas, portas ou barreiras. São os bancos de dados internos das empresas, nossos emails e também os torrents, endereços de computadores que possuem os arquivos que são desejados.

A infraestutura informacional da rede.

Cada comando dado nos navegadores precisa de uma cadeia de efeitos para entregar o que foi solicitado, cada página carregada é construída com um código fonte e mobiliza outros códigos de programas associados, toda essa estrutura é também parte da internet não indexada.

A “dark web” também é parte da internet não indexada, mas é ainda mais inalcançável

Abaixo de tantas camadas de acesso está a chamada “Dark Web”, são máquinas ligadas a rede mundial de computadores que não são indexadas nos bancos de dados e que requerem não só um endereço especial para serem acessadas mas também programas especiais para realizar isso como o navegador Tor.

A anônimidade na rede só é alcançada depois de tantos protocolos e endereços quando temos o trabalho de desviar os acessos por inúmeros pontos da rota, dificultando o rastreamento. A “Dark Web” é conhecida por seus comércios ilegais como o antigo site “Silk Road” que vendia de contrabando de produtos proibidos até a execução de contratos de atos criminosos.

Imagem de Detona Ralph 2, onde o ciberespaço é representado como uma grande cidade

Todos temos a impressão de acessarmos locais na rede, alguns sites são como mercados, outros como praças públicas ou escolas. A ideia de que dentro dos computadores conectados há algum espaço antes inexistente não é tão intuitiva quanto acreditamos ser hoje.

Os computadores do passado não só eram grandes, pesados, quentes e frágeis como seus usos eram pensados como substituições de coisas bem materiais como máquinas de escrever e calculadoras. No entanto, usamos a palavra ciberespaço para descrever esse lugar virtual que acessamos.

A ficção científica é muitas vezes inspiração para inovações tecnológicas

A palavra ciberespaço vem da ficção científica “Neuromancer”, do escritor William Gibson. Neste romance imaginava-se um futuro onde máquinas eram conectadas diretamente em nossas mentes e a interação coma máquina seria como a experiência de sonhar.

Feito sob medida para você ;-)

Hoje vivemos um mundo repleto de dispositivos que possuem milhares de funções que antes eram inexistentes, eles fotografam, filmam, gravam, sentem nosso toque e respondem quando falamos com eles. A internet se assemelha cada vez mais a uma experiência e não uma mera funcionalidade ou produto.

Os espaços que chamamos de redes sociais são arquitetados por profissionais dedicados a otimizar a captura da nossa atenção pelo maior tempo possível. As cores, posições de botões, perguntas sobre nosso dia a dia e até mesmo disposição das novidades e interações possíveis com elas são pensadas para gerar sensações de recompensa e dependência.

Técnicas de jogos de azar foram transferidas para nossas plataformas de socialização, para garantir que voltemos para mais atualizações. Jornais e produtores de conteúdos disputam nossa curiosidade com imagens e chamadas enganosas para conquistar o maior número de cliques e acessos.

Os provedores destes serviços gratuitos ou pagos vendem nossas informações em um grande mercado publicitário e de inteligência e espionagem. Vivemos hoje em um cenário infinitamente mais complexo e grave que as piores histórias distópicas do passado.

O grande irmão está observando você

“Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.”, essa é uma passagem da distopia “1984" do escritor George Orwell, um mundo onde boa parte do mundo é controlada por regimes autoritários que observam seus cidadãos a todo momento através de cameras em suas casas. Após vários escandalos de espionagem como os episódios de Edward Snowden e Julian Assange, já está claro que somos vigiados por governos a todo momento.

Esses dados obtidos através da vigilância das redes sociais são utilizados para construir notícias falsas, propagandas e campanhas políticas, moldando a percepção do público de forma precisa e personalizada. No Rio de Janeiro em particular temos o caso de prisões de ativistas políticos durante os protestos de 2013, 2014 e 2016 construídas através de vigilância das redes sociais e grampeamento dos aparelhos telefônicos.

A disputa política sobre a rede não se resume a brigas contra regimes autoritários, ela inclui também muitos aspectos que pensamos como privados e pessoais. Sem a existência de privacidade, muito do que é feito e dito na rede impacta a vida das pessoas, incluindo trabalho e relações afetivas.

O caráter descentralizado do armazenamento de dados na rede leva a um dilema sobre o quanto informações antigas podem prejudicar pessoas por toda a vida, existindo uma disputa pelo direito ao esquecimento e ao perdão.

A internet não tem nada de virtual, sua existência é física e palpável, seus ambientes e serviços mudam a economia mundial e seus conflitos e disputas são centrais para a construção de um futuro menos sombrio para a humanidade.

Referências

Chun, Wendy. Programed Visions. MIT Press, 2011.

Chun, Wendy. Control and Freedom. MIT Press, 2006.

Paul N. Edwards, Closed World. MIT Press, 1995.

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