O Cidadão Codificado

Bancos de dados de interesse público

Andre Sobral
Reflexão Computacional
6 min readMay 17, 2019

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Você é um cidadão codificado? A cidadania é uma forma de entendermos o nosso pertencimento a um sistema político, ela está sempre associada a um lugar e suas regras, somos todos cidadãos de algum país. A programação é a escrita de um código, instruções para o computador, registros que geralmente alimentam ou usam um outro conjunto de códigos chamado de banco de dados.

Números aleatórios?

Um banco é um lugar onde guardamos coisas, um banco de dados seria portanto o lugar onde os dados estão armazenados. Mas o que são dados? A resposta mais fácil para essa pergunta é entender o dado como qualquer informação. Serão os dados apenas números? Se entendermos os dados como informações, as palavras também poderão ser entendidas como dados.

Essa não é uma legenda

O artista surrealista René Magritte propôs a diferenciação entre uma coisa e a representação dela, o cachimbo acima é um desenho feito por pixels em uma tela, não podemos utilizá-lo ainda que nós possamos compreender a imagem como um cachimbo.

As palavras sofrem do mesmo problema, quando falamos de uma árvore pode-se compreender qualquer espécie, seja cajueiros, ipês ou pinheiros, a imagem que a palavra traz é resultado do descarte de todas as diferenças entre as árvores e a valorização do que elas tem de semelhante.

Podemos então compreender os dados da mesma forma, as informações escritas nos bancos de dados são imagens das coisas que estão fora e servem para compararmos, planejarmos e identificarmos com base nas semelhanças e diferenças entre elas.

Documentos e confiabilidade dos registros

Como provar a confiabilidade das nossas informações? É possível existir um dado 100% verdadeiro? Sem intermediários? Toda informação é produzida por alguma fonte, seguindo algum conjunto de regras e buscando alguma finalidade.

A confiabilidade do dado é produzida pela quantidade de coisas mobilizadas por esse dado. Por exemplo, nossas carteiras de identidade possuem um grande número de registros cruzados: Foto, digital, nome dos pais, registro geral, cpf, data de nascimento, assinatura e local de nascimento. Esse documento também é feito sob a autoridade de uma instituição do governo, a secretaria de segurança pública, que atesta a sua validade.

Mapa de potencial para geração de energia solar no Rio de Janeiro.

Toda informação é produzida por alguma fonte, seguindo algum conjunto de regras e buscando alguma finalidade. O mapa acima apresenta as favelas cariocas como regiões não pesquisadas ou sem potencial para geração de energia solar. Seriam as favelas regiões de sombra ou lugares onde não há sol?

Um mapa mostra representado o que foi escolhido pelo seu autor, portanto ele é como uma história contada por alguém através de uma imagem. No caso do mapa acima, ele possui um consumidor alvo e ele se limita a locais onde a legislação atual permite a instalação de placas de geração de energia solar, lei produzida para condomínios, empresas e outras organizações legais.

Os dados não são presentes divinos ofertados aos pesquisadores. Tudo que é colocado em um mapa, banco de dados, servidor, pesquisa ou registro é construído e fruto de decisões dos seus criadores. O que entendemos por dados, a sua construção em categorias e a forma de coleta dos dados são decisões políticas.

O programa Bolsa Família e a construção da categoria pobreza

Um bom exemplo do caráter político da construção dos dados está no programa Bolsa Família. Como estabelecer critérios objetivos do que seria “pobreza” para identificar quem seria o beneficiário do programa? A resposta mais simples é baseada na renda, basta observar quanto é ganho mensalmente.

No entanto, o que acontecerá no caso de pessoas de renda variável, como catadores de latinhas? É possível prever quanto será coletado e fazer uma média mensal por ano? E agricultores que dependem das chuvas para ter sua colheita? É fácil perceber nestes exemplos que a categoria renda mensal é pensada com base na ideia de alguém que possui um trabalho estável, provavelmente com um carteira de trabalho ou contrato.

Os agentes do Bolsa Família tiveram que considerar outros fatores aparentemente menos estáveis mas ainda assim aparentes no julgamento sobre quem deve ou não receber o benefício, como acesso a rede de esgoto, nível educacional, condições da moradia e alimentação.

Como a polícia determina se alguém está desaparecido?

O cadastro de pessoas desaparecidas é um banco de dados criado para ajudar a localizar parentes, amigos e colegas que sumiram sem deixar rastros. No entanto, o que é necessário para se considerar alguém desaparecido?

A polícia utiliza um critério de pelo menos 24 horas sem informações do paradeiro, mas esse número possui alguma objetividade? Quem atesta a quantidade de tempo passada desde o desaparecimento? Caso seu filho esteja desaparecido por 24 horas mas seu último paradeiro foi a casa de um amigo, é possível registrar o desaparecimento antes de consultar o amigo?

A categoria desaparecido da imagem acima é diferente, as fotos são de vítimas da ditadura militar brasileira de 1964, e portanto seguem diferentes critérios na determinação do desaparecimento.

Um banco de dados pode te efeitos intensos

Cerca de 62 milhões de nomes estão registrados nos bancos de dados privados do SPC/SERASA. O acesso a esse banco de dados é vendido como um serviço para empresas. As pessoas cadastradas nele supostamente possuem uma dívida não paga e por isso representam um risco que deve ser evitado, elas portanto enfrentam dificuldade de conseguir crédito e confiança.

Como são determinados os devedores? É possível que alguém neste cadastro esteja lá por engano? Existem motivos que podem levar ao não pagamento de uma conta que devem ser considerados antes da inserção de alguém neste banco de dados?

O objetivo desta postagem é apontar o caráter construído e político dos dados, não sendo as informações dos sistemas necessariamente representações confiáveis. No entanto, o cruzamento de dados de diferentes fontes é a maneira mais eficaz de validarmos e confirmarmos a utilidade das informações registradas.

O cruzamento de dados pode produzir novas visões e compreensões de mundo, sendo uma ferramenta poderosa. É necessário cautela e atenção sobre os dados que produzimos e quem tem acesso autorizado a eles. Munidos de bancos de dados suficientemente minuciosos, é possível para seus portadores manipular comportamentos, prever tendências e construir políticas públicas.

Referências

FEITOSA, Paulo. O Cidadão Codificado: A digitalização da cidadania em bancos de dados de interesse público. COPPE, UFRJ, 2010.

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