“Eu sou daqui, eu não sou de Marte”

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reflexões da meia noite
8 min readAug 16, 2020

em 20/11/2019

Olhares invisíveis

São mais de 2.100 pessoas fazendo das ruas da capital gaúcha seu lar. A exclusão social, a invisibilidade e a discriminação impactam na saúde mental dessa população. O poder público tem papel importante, mas é pelo trabalho que ocorre a reinserção

Para os notar, só é preciso parar de torcer a cabeça. O último censo que apontou o número de pessoas em situação de rua em Porto Alegre, coletado em 2016, por estudo realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), contabilizou 2.115 indivíduos. Entretanto, segundo o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), esse número pode ultrapassar cinco mil, já que o censo não contemplou bairros mais afastados do centro urbano, onde o número de pessoas nessa situação também é considerável. Nessas condições, são alvos do desemprego, do racismo (mais de 55% são negros, segundo o Cadastro de Adultos em Situação de Rua de Porto Alegre), da discriminação, da deterioração social, da exposição a ambientes inóspitos, da pobreza e da fome. A invisibilidade faz com que quem vive às margens do sistema acabe por se excluir ainda mais e, assim, se apresentar a maiores condições de vulnerabilidade ao sofrimento psíquico. Segundo dados da FASC, em 2019, 85% da população de rua de Porto Alegre são homens, com idades entre 27 e 45 anos. Somente 5% admitem viver nas ruas por opção, 65% alegam uso de substâncias psicotrópicas, 45% romperam vínculos com a família e 5% possuem problemas graves de saúde mental.

Para a mestre em Saúde Coletiva Rosane Machado Dollo, saúde mental e exclusão social são convergentes. “A vulnerabilidade psicológica da população de rua pode se relacionar, também, com a configuração familiar, que, às vezes, é violenta, e com características de abandono ao indivíduo, somado às carências socioeconômicas. Tal contexto induz a ida às ruas, e a hostilidade do cotidiano acaba por impulsionar o aparecimento ou agravamento de distúrbios mentais”, explica ela. A utilização de álcool e drogas faz parte da dinâmica das ruas e se torna substância essencial para o processo de fixação, permanência e convivência nesses meios, pois potencializa a socialização entre os indivíduos. “O uso excessivo dessas substâncias, além da depressão, acarreta patologias mentais como psicose e esquizofrenia”, alerta Rosane. Nesse contexto, o papel do poder público é essencial, ao atuar como agente de ações de assistência social para recuperação e reinserção desses indivíduos em sociedade.

Assistencialismo para ajudar a quem?

Até agosto deste ano, das 2.115 pessoas em situação de rua em Porto Alegre, somente 54 foram beneficiadas pelo Moradia Primeiro, através da Bolsa Auxílio Moradia e do Aluguel Solidário. Em entrevista para a Rádio Guaíba, no mês de agosto, a Comandante Nadia Gerhard, então secretária da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDSE), culpou as equipes responsáveis pela abordagem social pela baixa adesão aos programas. “Nós não vamos admitir uma cidade, uma praça que esteja cheia de morador de rua. É um lugar público e as pessoas não podem levar seus filhos, seus pets. Não têm condições de caminhar nem em uma calçada, porque uma pessoa se acha no direito de morar na rua”, afirmou ela. Nadia foi contatada, mas não retornou o contato. No dia 18 de outubro, a Comandante informou à Prefeitura que deixaria o comando da pasta para retornar à Câmara de Vereadores.

Integrado à rede do Sistema Único de Saúde (SUS), o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é destinado a pessoas com transtornos psíquicos intensos ou persistentes, ou seja, decorrentes do uso de substâncias psicoativas, como álcool e drogas. No Rio Grande do Sul, até 2015, haviam 105 unidades do CAPS, já, na capital gaúcha, são 12, segundo levantamento feito pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). A ampliação dos CAPS, junto com os programas Mais Dignidade e Moradia Primeiro, integra o Plano para Superação da Situação de Rua, apresentado pelo município de Porto Alegre, em 2018, e liderado pelas Secretaria Municipal da Saúde (SMS) e SMDSE.

Ação para geração

Criado em 1996, o Geração POA: Oficina de Saúde e Trabalho é um serviço da SMS, vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), para reinserção social, a partir do trabalho, de pessoas afetadas por doenças psíquicas. Segundo a coordenadora do serviço, Kátia Berfknecht, estão em atendimento hoje 110 usuários. São oferecidas diversas oficinas, em que são produzidos cadernos, agendas, mosaicos, velas aromáticas, bolsas e camisas. Há também oficinas de serigrafia, costura e bordado. O dinheiro obtido com as vendas é revertido proporcionalmente para os usuários conforme o número de presenças de cada um.

Sílvio Lima tem 40 anos. “Anota aí. Cresci em Vacaria e fui criado por uma família adotiva, que também criou minha mãe, e, aos 19 anos, vim para cá (para a capital do Estado) procurar minha família biológica”, diz ele. Quando questionado sobre sua condição mental, ele dispara sem exitar: “Tenho F70 — Retardo Mental Leve, eu sou assim, mas consigo trabalhar. Antes eu era muito agressivo, minha família não entendia. Agora eu tomo os remédios e fico bem. Pego no posto de saúde todo mês”. Silvio reencontrou sua família biológica, mas a falta de conhecimento da doença e a falta de tato da família com ele o levou a abandonar sua casa e buscar, nas ruas, condescendência. “Morei na rua durante seis anos, fui pro abrigo Bom Jesus, casa de convivência, discriminam muito a gente”, relembra. A virada veio em 2004, quando, muito sujo e quase irreconhecível, passou por seu irmão que trabalhava em uma ronda do caminhão de coleta do lixo. Seu irmão foi em sua direção, o reconheceu e o tirou da rua para rever suas irmãs. Após isso, ele ficou 11 anos frequentando o CAPS II Adulto, próximo ao Parque da Redenção. Em 2014, ingressou no Geração com a expectativa de um retorno financeiro, mas recebeu muito mais. Segundo Sílvio, o momento das oficinas é de reencontrar os amigos e se sentir entre iguais. Além disso, segundo ele, acompanhamento psicológico é feito pelo CAPS e seus mais de cinco remédios para o tratamento e controle dos transtornos são retirados em posto de saúde. Atualmente, Sílvio está na oficina de papel. Em meio a muito papo e risadas com os outros usuários do serviço, ele corta o papel para a produção do material que dará origem a capa dos cadernos.

Para Ary Martins Jr., o dia 29 de outubro deste ano foi o primeiro dia de trabalho no Geração POA. Ele escolheu ficar na oficina de papel, assim como Sílvio. “Fui pra rua pelo vício, queria a droga, usei de tudo durante 40 anos”, conta Ary. Ele complementa: “Desde 2005 eu morava na rua. Aqui na frente do Geração. Ficava muito aqui nessa praça. Mas eu ainda tinha contato com minha família. Vi nos olhos deles que eu precisava sair disso”. Ary buscava na ‘matilha’ — como se referiu a seus companheiros de rua — similaridade e proteção contra a discriminação, mas, principalmente, contra a violência e as agressões psicológicas e físicas causadas por confrontos entre os próprios moradores de rua e entre moradores e a polícia. Tolerar as adversidades impostas pela rua parecia impossível sem o uso dos psicotrópicos. “As pessoas passam e não te olham, algumas até dão comida, mas, às vezes tu tá com dinheiro no bolso e o dono do bar não deixa tu entrar pra comer alguma coisa, só pela nossa aparência. A polícia também é complicada. Se tem um confronto, a gente é culpado, independente do que aconteceu mesmo”, relembra Ary. Em outubro de 2017, ele foi internado no CAPS III AD, no bairro IAPI, e depois no CAPS III AD, na Avenida Pernambuco. Após esse período de tratamento intenso, Ary conseguiu ingressar no programa Mais Dignidade da Prefeitura e, no final de outubro, iniciou sua atividade no Geração. “Eu fazia bico de guardador de carro desde que morava na rua. No final de semana, eu ainda faço. Quero conseguir um dinheiro pra me manter, ajudar minha filha que é doente também. Ela precisa de acompanhamento psicológico por causa da depressão e da bipolaridade. Preciso de uma renda”, conta Ary, com a esperança de iniciar um novo ciclo de vida pelo seu trabalho.

Páginas que amplificam vozes

Diogo Macedo se apresenta para mais um dia de trabalho nas oficinas do Geração POA. Ele também vivenciou a situação de rua por conta da dependência de psicoativos. “Vinte e três anos eu joguei fora por causa dessa droga, perdi muito tempo”, desabafa Diogo desconfortável com o passado. Diogo é muito inquieto e, em dias ruins, fica vulnerável a maus pensamentos que o paralisam e não o deixam reagir para que viva aquele dia. Ele carregava alguns jornais consigo. Era o Boca De Rua, assinado atrás com seu nome como o jornaleiro. Além disso, ele mostrava orgulhoso sua participação na produção da edição de número 72. “Eu que fiz esses aqui, o poema tá meio incompleto, mas fui eu que fiz”, dizia ele, apontando para curtos poemas e desenhos de sua autoria localizados na última página do jornal. Pelo trabalho no Boca, Diogo realiza uma atividade que lhe gera renda, o auxilia no tratamento da condição psíquica e contribui para sua reinserção social.

Boca de Rua é um jornal produzido pela população de rua de Porto Alegre, fundado nos anos 2000 e vinculado ao Projeto Agência Livre para informação, Cidadania e Educação. O jornal foi criado pelas jornalistas Clara Glock e Rosina Duarte e surgiu como forma de oferecer a ferramenta da comunicação para que pessoas em situação de rua tenham suas vozes ampliadas. A jornalista Clara Glock relembra: “Eu cuidava da produção dos crachás de identificação dos integrantes do jornal, tinha foto. Um rapaz, que participava do grupo, cortou a foto da carteira de identidade dele para colar no crachá do Boca de Rua. O jornal se tornou sua identificação mais importante e que recebia um significado a partir do trabalho dele. Todo mundo tem história e todas são importantes de se contar”. A primeira edição do jornal levou o nome “Vozes de uma gente invisível”, proposto pela própria população. O jornal produz não só conscientização externa, mas mudanças significativas na vida de quem o produz, unindo trabalho e educação. Quando um jornaleiro do Boca oferece a edição, ele não está pedindo ajuda, mas um olhar, mostrando o trabalho produzido por ele e sua identidade como capaz de ser agente produtor de saber.

O ponto zero da ‘loucura’

A qualificação de pessoas portadoras de distúrbios mentais como seres violentos ou anormais surge na antiguidade grega e romana, em que esses transtornos eram associados a manifestações sobrenaturais de deuses e demônios.

Durante a Inquisição, foram entendidos como expressões de bruxaria, cujo tratamento consistiu em perseguição a quem os portava. Já no período renascentista, pessoas que carregavam tal condição eram atiradas ao rio e essa prática representava um ritual simbólico que libertava as cidades dos loucos. Esse estigma é carregado até os dias de hoje, o que torna o preconceito característica dominante.

O isolamento social é consequência direta, e contribui para o agravamento do sofrimento psíquico. Todavia, essa percepção frente às doenças mentais, colocam o indivíduo que às detém como merecedor desse isolamento.

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alguém tentando entender a si e ao mundo em que (con)vive