Nem toda avó é como a da Chapeuzinho Vermelho

Na maioria das culturas, a relação entre avós e netas é marcado pelo amor, proteção e cuidado (ALMEIDA, 2009).

Como escreveu Raquel de Queiroz (1963) em sua crônica A arte de ser avó”:

“Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu (…). Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo”.

Em clássicos, avós normalmente são tidas como personagens que fazem de tudo pelos netos, verdadeiras “guerreiras (ALMEIDA, 2009). Em The Witcher, a Rainha de Cintra, avó de Siri, é literalmente uma guerreira que protegeu a neta à todo custo.

A Rainha de Cintra em seu leito de morte, despedindo-se da neta Siri.
As personagens Rainha de Cintra e Siri em The Witcher (2019). Foto: (reprodução/internet).

Na literatura clássica mundial também encontramos o estereótipo da vovó frágil, carinhosa, que precisa de proteção. E o conto Chapeuzinho vermelho não me deixa mentir. No conto, a moral da história é que as meninas precisam tomar cuidado com “lobos maus” que se fazem de mansinhos (ALMEIDA, 2009).

Mas agora vou mostrar uma história em que o lobo mau é a própria avó, e fazendo uma alusão ao conto de cima, estaria mais para “Cafetina Vermelha” (BEZERRA e FIGUEIREDO, 2009).

A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada

A personagem Erêndira com o olhar cansado em direção à sua avó que está na banheira
As atrizes Cláudia Ohana e Irene Papas no filme Erêndira (1983). Foto: (reprodução/internet)

A obra A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada, de Gabriel García Márquez, como o próprio nome já supõe, traz uma avó completamente diferente da vovozinha dos contos que crescemos ouvindo.

Essa novela, destaque em nossa literatura latino-americana, traz um conflito intergeracional entre uma avó tirana e uma neta submissa. Na verdade, conflito é uma palavra muito suave para definir: avó desalmada escraviza e prostitui a neta Erêndira, de 14 anos.

Segundo a senhora, a neta é responsável pelo fato de a casa delas ter sido incendiada, e agora Erêndira precisa trabalhar para pagar o prejuízo (BEZERRA e FIGUEIREDO, 2009).

(Essa história foi adaptada para o cinema e protagonizada por Cláudia Ohana. Clique aqui para ler mais sobre o filme: Erêndira — Filme 1983.)

Em breve continuo contando um pouco mais sobre a história dessa família “disfuncional”, para dizer o mínimo. Agora precisamos entender a base do conflito.

Como formamos nossa identidade

Apesar de o ambiente familiar ter potencial para ser um espaço de convivência riquíssimo, ele também pode ser o lar de muitos conflitos. O sistema familiar exige que as gerações envolvidas se ajustem e se adaptem às diferenças (FALCÃO, SALOMÃO, 2005).

Formamos nossa identidade na medida que vamos nos identificando com múltiplas experiências e construindo esse processo a partir do contato com o que nos parece semelhante e o que se mostra como oposto.

A formação de nossa identidade está intimamente ligada aos detalhes que envolvem nossas relações sociais, que nos afetam positiva ou negativamente.

Nosso desenvolvimento se dá dessa forma: a partir de nossas ligações afetivas, da cultura e das características que absorvemos do meio em que vivemos (BAYARD apud JOACHIM, 2008).

Analisando o conflito entre Erêndira e a Avó Desalmada

Os avós carregam a memória do passado e passam esses conhecimentos aos netos. (WEIL apud OLIVEIRA, 1999). Em diversas culturas, a relação avós-netas é repleta de ensinamentos.

As avós constantemente cumprem um papel de mediar a comunicação entre a mãe e a filha e de incentivar a neta a se realizar como pessoa (ALMEIDA, 2009).

A avó desalmada da novela de Márquez quebra completamente essa expectativa. As falas dela se resumem a ordens e mais ordens exigindo que a neta faça isso e aquilo.

A senhora sequer tem nome: é apenas avó, vilã, sem origem, sem uma história para contar e sem identidade definida (BEZERRA e FIGUEIREDO, 2009).

Como poderia ser uma relação de afeto, se a avó sequer tem uma identidade? Não há identificação entre ambas e muito menos um ambiente que promova o desenvolvimento e a passagem de conhecimentos da avó para a neta.

Desfecho da história

A avó desalmada, cruel e com valores deturpados foi o única referência que Erêndira teve na vida.

Uma relação como essa imprimiu na neta uma aversão a sentimentos bons, e a jovem, mesmo aparentando ser doce e submissa, é dominada pelo desejo de matar a avó carrasca.

Um dos homens que frequentou a tenda onde Erêndira era prostituta, Ulisses, apaixonou-se por ela. Mas ele não sabia que estava apenas sendo usado pela neta.

A ausência de afeto e a objetificação do outro, que existia na relação neta-avó, se fez presente no romance unilateral entre Erêndira e Ulisses (BEZERRA e FIGUEIREDO, 2009).

O personagem Ulisses e Erêndira sentados na cama e olhando para um objeto que ela segura.
Os personagens Ulisses e Erêndira em “Erêndira” (1983). Foto: (reprodução/internet)

Essa história faz o ditado “bem aventurados os que têm avó” ser bem questionado, não é?

Referências bibliográficas

BEZERRA, Anna; FIGUEIREDO, Ediliane. (2009). Hiato entre gerações: a cândida neta e a desalmada avó de Gabriel García Márquez. Anais do IV Colóquio Internacional Cidadania Cultural: diálogos de gerações. Campina Grande, Editora EDUEPB.

Clique aqui para ter acesso ao artigo completo > http://pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/publicacaoonline/Literaturas/28.pdf

ALMEIDA, Lélia. As mães e as filhas e as avós e as netas nas narrativas genealógicas. Revista Destiempos, 2009.

FALCÃO, Deusivania Vieira da Silva; SALOMÃO, Nádia Maria Ribeiro. O papel dos avós na maternidade adolescente. v.22, n. 2, jun. 2005, p. 205–212. ISSN 0103- 166X.

JOACHIM, Sebastien. Cultura & inclusão social: Ariano Suassuna, Paulo Coelho & outros fenômenos atuais. Recife: Ed. Universitária, 2008.

MÁRQUEZ, Gabriel García. A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Rio de Janeiro: Record, 1972.

OLIVEIRA, Paulo de Salles. Vidas compartilhadas. Cultura e co-educação de gerações na vida cotidiana. São Paulo: Ed. Hucitec, 1999.

PERRAUT, Charles. Chapeuzinho vermelho. Trad. Rosa Freire Daguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

QUEIROZ, Raquel de. O brasileiro perplexo, histórias e crônicas. Rio de Janeiro: Editora do autor, 1963.

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Laísla Serejo
Reflexões sobre a vida adulta e a velhice

Atriz, empresária, escritora bestseller e vencedora do Oscar. Essa é a Oprah, eu sou a Laísla!