Fichamento — A Cruzada Contra o Capital Cultural

Amanda Santos
Reflexões Subversivas
7 min readSep 21, 2021

Logo no início do paper escrito por Luis Felipe Miguel, intitulado “A Cruzada Contra o Capital Cultural”, o autor menciona Bourdieu para explicar o que seria o tal capital cultural abordado no texto, afirmando que seria o capital que é reconhecido como legítimo de forma mais espontânea. Para Miguel, o capital cultural traz uma posição de superioridade social que seria praticamente automática.
Em seguida, garante que nas últimas décadas estamos encontrando dificuldades crescentes para reproduzir o reconhecimento espontâneo do capital cultural. Segundo ele, os avanços recentes do “obscurantismo da extrema-direita” seriam justamente uma revolta contra o capital cultural. Essa desvalorização é tanto dos artefatos em si quanto dos títulos e pessoas que o encarnam. O objetivo não é democratizar o acesso, mas sim fazer uma apologia que exalta a ignorância.
Segundo ele, os movimentos políticos com inclinações conservadoras ou reacionárias, que exaltam o cidadão comum e sua “sabedoria”, podem ser vistos como uma derivação óbvia do ideal democrático de igualdade. Nos últimos anos, a nova extrema-direita não apenas se firmou como peça central nos sistemas políticos como vem ganhando governos. Para o autor, esse grupo expressa um anti-intelectualismo de uma forma que chega a ser rude, pois a linguagem desabusada e direta compõe as personas políticas de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Há, portanto, um abandono do refinamento que até então era característico das elites estabelecidas.
Em contraposição a teorias, fórmulas e conclusões que são comuns à ciência e ao ambiente universitário, o anti-intelectualismo valoriza um conhecimento que vem da experiência direta, sendo muitas vezes baseado no senso comum e até mesmo em preconceitos que são amplamente popularizados. Nesse contexto, as teorias conspiratórias, como a Terra plana, ganham força.
Por meio das redes sociais, as pessoas que defendem essas ideologias encontram reforço mútuo de suas crenças e visões de mundo, de modo que podem ter a sensação de estarem “imunes” a tudo que se opõe às suas opiniões pessoais. Em certas bolhas, qualquer coisa pode ser considerada verdade e, com a depreciação do capital cultural, não há como estabelecer um critério que seja de fato fidedigno e universalizável para validar a informação. É o que chamamos de “pós-verdade”.
O autor aprofunda na teoria de Bourdieu, trabalhando com o conceito de campo, que envolve relações objetivas entre posições de agentes ou de instituições e é definida pelo controle das diferentes parcelas de um determinado capital. No mundo social, os dois principais eixos de dominação são o capital econômico e o capital cultural. Um depende do outro, apesar de seguirem lógicas diversas. Para obter capital cultural, é necessário ter à disposição recursos econômicos para ter acesso a bens, espaços, pessoas instrutoras e até tempo livre. Já o capital econômico vai depender do capital cultural dos administradores e engenheiros.
Assim, o domínio de capital econômico e cultural é conjunto, mas também é assimétrico, pois os detentores de capital cultural elevado ocupariam uma condição de “dominantes dominados”. Seria uma relação de cooperação e conflito, simultaneamente. Isso pode ser exemplificado quando analisamos a relação dos detentores do capital cultural com a posse de diplomas, que são documentos que possuem reconhecimento legal e permitem o acesso a certas posições. Um diploma mais elevado, portanto, teria uma simbologia maior. Por outro lado, aqueles que detêm o capital econômico costumam privilegiar capacidades técnicas, vendo o título acadêmico como algo desnecessário em meio à livre concorrência, defendendo até a desregulamentação de práticas profissionais.
Miguel acredita que a “pós-verdade” não tenha o estatuto de conceito, mas que seja um tipo de modismo atual. O termo está relacionado à desconfiança em relação às fontes de informação que até então eram legítimas e à difusão do que seria uma espécie de relativismo científico popular. Mais importante, a pós-verdade diz respeito ao uso feito pelo discurso político da situação de incerteza social, gerenciando uma difusão deliberada de desinformação e impedindo a interlocução entre diferentes ideias.
É possível dizer que as novas tecnologias da informação e da comunicação contribuem para a prosperidade da pós-verdade. O que poderia ser um ambiente de discussão e auto-organização coletiva acaba se tornando um espaço movido por dados e experiências personalizadas, de forma que raramente nos deparamos com conteúdos diferentes daqueles que já consumimos previamente. Evitamos a dissonância cognitiva, dando espaço apenas para o viés da confirmação ao acreditar somente em informações que sejam similares às nossas opiniões pessoais.
Nessas situações, o único critério de validação de qualquer afirmação seria o apoio da “rede de concordância” da qual o indivíduo faz parte. Questionamentos pontuais são eliminados em prol das crenças da maioria. Aqui, é importante ressaltar que há um forte sentimento de pertencimento dentre os integrantes de tais grupos. É por essa razão que os dispositivos da pós-verdade são eficazes para bloquear o debate público. Quando essas pessoas são contrariadas com fatos, é comum que defendam a percepção falsa de uma forma ainda mais agressiva. E, é claro, não podemos esquecer que a pós-verdade carrega intencionalidade, ou seja, ao aceitar e propagar informações que são desprovidas de conteúdo real verificável estamos servindo determinados interesses, seja conscientemente ou não. Enquanto dados verificáveis são falsificados, histórias inverossímeis são difundidas.
A pós-verdade indicaria não só um uso estratégico da desinformação, mas também um novo padrão de relação entre o público e a ideia de verdade. Conforme proposto por Harsin, teríamos três tipos de problemas: um epistêmico, relacionado à existência de diversas reivindicações de verdade; um fiduciário, ligado à perda de confiança para com os dispositivos de saber que validavam o que era ou não correto; e um ético-moral, em que há ou uma desatenção deliberada aos critérios de verificação ou ao uso intencional de informações que sabemos que são falsas. As estratégias só prosperam porque há uma cumplicidade vinda da audiência.
Há uma ideia errônea de que é possível escolher o mundo em que vivemos, inclusive quando estamos falando de história. A impressão que temos com a pós-verdade é que o público busca eleger crenças que tragam gratificação imediata, sem necessariamente se preocupar com as consequências futuras das ações que estão sendo tomadas. Em meio a certezas que se dizem absolutas, em que há o bem e o mal, as narrativas da pós-verdade conseguem gerar um enclave sólido e cativar o público com a oferta de um ambiente mais confortável, em que não existe estresse cognitivo.
A intencionalidade em popularizar informações “alternativas” tem uma proximidade com a agnotologia, que denota o estudo da promoção da incerteza e da ignorância mesmo em áreas que já estão avançadas no consenso científico. A palavra também é usada para definir o conjunto de procedimentos usados para promover a ignorância. Tais procedimentos são embasados na difusão de dúvidas sobre verdades validadas cientificamente. Em alguns casos, as empresas investem em produzir dados alternativos, financiando e promovendo publicamente pesquisadores que aceitem defender as conclusões que as organizações desejam.
Infelizmente, a mídia acaba alimentando polêmicas, seja por pressão externa ou simplesmente uma tentativa ineficiente de mostrar os dois lados. Com a dúvida, muitas pessoas aproveitam para justificar a prática de comportamentos que são cômodos e prazerosos, mas não necessariamente positivos. Em nome de uma suposta liberdade de expressão, a validade do método científico é negada e todos os discursos são apresentados como opiniões de valor equivalente. Há uma tentativa de intervenção de força no campo científico, apoiada por dinheiro e visibilidade midiática, que infla a posição de quem está alinhado com os interesses dos patrocinadores.
Outro elemento trabalhado é o anti-intelectualismo, que atinge diretamente o capital cultural, pois afirma que o conhecimento dos acadêmicos seria sofisticado demais para o mundo real, priorizando a experiência empírica de pessoas comuns. Seria, basicamente, uma desvalorização do racionalismo. Em seus discursos, unem apelos ao senso comum da população à experiência coletiva e pessoal com o objetivo de gerar uma desconfiança em relação ao saber científico.
Para enfraquecer a posição do capital cultural, reconhecemos duas estratégias: uma que projeta uma aparência de capital cultural visando a legitimação a autoridade de pessoas e argumentos sustentados por mecanismos externos e outra que é mais radical e aposta no anti-intelectualismo para negar ao capital o reconhecimento dos “profanos”. As estratégias não são excludentes e em alguns casos ambas são usadas, mas em proporções diferentes. Atualmente, vemos inúmeros “autodidatas” que não necessariamente possuem credenciais acadêmicas, mas que usam as redes sociais para difundir suas teorias e alcançar uma audiência específica. Há também o ataque contra os estudos de gênero, principalmente com críticas direcionadas a disciplinas da área de humanas, que têm menor reconhecimento social no Brasil, como vimos após o surgimento da “Escola Sem Partido”. A reprodução de papéis vistos como naturais é tida como essencial para o funcionamento das instituições sociais, começando pela família. É aí que se instala um pânico moral, que traz uma sensação de urgência ao mesmo tempo que impede a reflexão e o debate.
Em um contexto de pandemia, a pós-verdade surgiu com discursos que muitas vezes se contradiziam entre si, desafiando consensos científicos em relação à doença. Os exemplos são inúmeros, desde a negação da gravidade do vírus com o termo “gripezinha” à incitação de que havia uma conspiração da China para que as pessoas adoecessem, visando então uma hegemonia na economia mundial ou até mesmo a implantação do comunismo, uma vez que o isolamento restringiu liberdades individuais e ampliou o controle estatal. Líderes políticos importantes apoiaram-se no senso comum para contrariar a opinião de médicos. Isso sem mencionar a defesa de medicamentos não comprovados como uma possível cura do coronavírus.
Conclui-se, portanto, que o anti-intelectualismo seja um “traço congênito” de um tal populismo de direita. Seus líderes transmitem uma imagem de pouco refinamento que é intencional. O objetivo da guerra contra o capital cultural seria inibir a atividade regulatória do Estado, que valoriza a legitimidade da concentração de saberes e informações. Há não só uma dependência estrutural do investimento privado e de outras formas de financiamento político como o estabelecimento de alianças pontuais entre dominantes e dominados. Cada vez mais, valores como a meritocracia e o empreendedorismo vêm sendo promovidos, o que permite uma deslegitimação da intervenção estatal. Estamos produzindo um ambiente social onde o capital econômico é pouco desafiado, o que permite que seus detentores tenham maior vantagem na sociedade atual.

Referência

MIGUEL, Luis Felipe. A cruzada contra o capital cultural. In: ANAIS DO 30° ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 2021, São Paulo. Anais eletrônicos. Campinas, Galoá, 2021. Disponível em: <https://proceedings.science/compos-2021/trabalhos/a-cruzada-contra-o-capital-cultural> Acesso em: 16 set. 2021.

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