Nem tudo é 1,99

Amanda Santos
Reflexões Subversivas
4 min readAug 23, 2017
Cena do filme 1,99

1,99 — UM SUPERMERCADO QUE VENDE PALAVRAS. Direção: Marcelo Masagão. Brasil, 2003, 72 minutos.

O filme 1,99 — Um supermercado que vende palavras, dirigido por Marcelo Masagão, faz uma clara crítica ao consumismo incentivado pelo sistema capitalista através do uso de metáforas. Logo de início é mostrado o interior de uma loja — um ambiente branco, limpo e silencioso; totalmente contrastante ao lado de fora. O exterior da loja é marcado por uma imensa sala repleta de pneus de cor preta que enfatizam a dicotomia entre o requinte do interior e a simplicidade de fora. Todos que estão no exterior vislumbram a chance de ingressar na loja, porém, ao serem escolhidos, representam somente um instrumento de perpetuação do capitalismo, uma vez que são aceitos somente para o trabalho, jamais se equiparando aos consumidores. O interior da loja é, por sua vez composto por prateleiras que contém, em vez de produtos, caixas brancas com slogans de marcas conhecidas escritos em seu exterior. As pessoas que frequentavam a loja, portanto, não consumiam produtos, mas sim ideais, rótulos sociais, incentivos, fetiches, o que pode ser percebido na nossa própria sociedade, uma vez que grande parte dos produtos comprados é supérflua. Os rótulos dos produtos também demonstram a linha tênue entre o ser e o ter, uma vez que as ambos se unem na construção da identidade do consumidor. Isso fica mais claro quando no filme a “Avaliação 360 graus” destaca a importância do consumo e das marcas na representação de cada fase da vida. Reafirmando a máxima “você é aquilo que você consome”.

A crítica ao consumismo, ao individualismo e ao próprio capitalismo (é praticamente impossível criticar o consumismo sem criticar o sistema capitalista, uma vez que o primeiro surge a partir do segundo) fica clara na cena em que um consumidor pega a caixa “único” e, segundos depois, um vendedor substitui a caixa por outra exatamente igual. Ou seja, nada é único, inclusive os próprios indivíduos, que não são tratados como pessoas, mas sim como uma massa. Durante o filme todo pode-se perceber certa apatia dos personagens que circulam pela loja, que não possuem nenhum pensamento crítico e são extremamente solitários — praticamente não há diálogos e há interação entre os personagens é bem rara. Marcelo Masagão ainda critica o consumismo/capitalismo ao compará-los a uma compulsão quase “orgasmática”, representada na cena em que ele faz alusão entre uma relação sexual e o ato de sacar dinheiro. No filme, um homem introduz seu cartão na máquina e o rosto de uma mulher aparece no visor. O cartão então é recusado e, logo em seguida, surge a mensagem “tente novamente”. Ao passar o cartão compulsivamente o rosto da mulher vai mudando de aparência e sua feição demonstra um prazer crescente até o momento do orgasmo, que coincide com a liberação do dinheiro.

A ideia de ser o que você consome também está muito presente durante a obra — ao mostrar a história de vida de um dos consumidores, mostram apenas os produtos consumidos por ele em diversas épocas de sua vida (não há um acontecimento específico marcando tal período, mas uma marca). O que não é muito diferente da realidade, uma vez que marcas grandes chegam a ganhar milhões vendendo produtos superfaturados e explorando trabalhadores terceirizadas — as pessoas se importam mais com o “status” que ganham ao usar a marca do que com a responsabilidade social e ética que tanto as empresas quanto os consumidores deveriam ter.

A abordagem do diretor se assemelha ao pensamento de dois estudiosos da Escola de Frankfurt e de inclinação marxista, Adorno e Horkheimer. De acordo com o que defendiam, a burguesia, detentora do monopólio midiático, utilizaria as mídias “de massa” para controlar a massa de acordo com seus ideais e suas necessidades. O processo comunicacional em questão seria usado para manipular as classes mais baixas da sociedade, que em tese não teriam posicionamento crítico em relação às informações que recebiam pelas mídias e acabariam reproduzindo o mesmo discurso padronizado que só serviria para manter o status quo social. De acordo com os próprios autores, “o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação.” Ou seja, o consumismo presente em nossa sociedade é incentivado pelos detentores do poder econômico e imposto às classes mais baixas.

No livro “Conversando sobre ética e sociedade”, os autores Josué Cândido Silva e Jung Mo Sung afirmaram que “quando a acumulação da riqueza passa a ser o objetivo maior de um grupo social, a lógica econômica passa a ser o centro da vida e o principal critério de discernimento para as questões morais”. Portanto, a economia passa a controlar a moral da sociedade e o comportamento social dentro de tal sistema, o que é completamente irresponsável, uma vez que busca-se um objetivo infinito (acumulação constante de riquezas) com meios finitos (recursos naturais).

Escrito por Amanda Pereira Santos e Gabriel Vieira Giband em 2018 para a disciplina de Produção Audiovisual I

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