Que horas ela volta?

Amanda Santos
Reflexões Subversivas
5 min readAug 23, 2017
Cena do filme Que horas ela volta?

O filme “Que horas ela volta?” é uma das grandes produções nacionais dos últimos tempos — grande tanto em questão de abordar um tema bastante abrangente quanto de popularidade, pois foi exibido em festivais de cinema do mundo todo — e possui uma abordagem bastante crítica de problemas extremamente atuais acerca das relações de classe e também de gênero na sociedade brasileira. A questão racial também poderia ter sido muito bem debatida, mas não parece ter sido uma das preocupações da obra. Dirigido por Anna Muylaert, o drama lançado em 2015 fala sobre a vida de uma empregada doméstica, Val (interpretada de forma incrível pela Regina Casé) que, por falta de melhores oportunidades, sai de Pernambuco para trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família burguesa paulista, deixando sua filha para trás. A grande reviravolta da trama acontece quando a filha de Val, Jéssica, vai a São Paulo para fazer um vestibular e precisa ficar na casa da mãe, que mora com os patrões.

No começo do filme, vemos Val cuidando de Fabinho, o filho do casal para quem trabalha. O menino, na piscina, a convida para nadar — Val recusa dizendo que não tem maiô e, enquanto isso, conversa com Jéssica, pelo telefone. Tal cena retrata muito bem a realidade de uma parte da população brasileira: mulheres pobres que, por terem poucas opções de trabalho em sua própria cidade, mudam para cidades grandes em busca de emprego, principalmente como empregadas domésticas, para tentar, assim, ajudar sua família financeiramente e sustentar seus filhos. Val cuida do filho da patroa mas, para isso, precisa negligenciar os cuidados de sua própria filha. O nome do filho, inclusive, remete à pergunta que Fabinho faz à Val, quando questiona que horas sua mãe vai chegar do trabalho. A pergunta é bastante instigante, uma vez que Jéssica também deve ter feito a mesma pergunta durante sua infância mas, ao contrário da mãe de Fabinho, sua mãe não voltou.

Desde o início, a família sempre reforça a ideia de que Val também faz parte da família, o que percebemos ser uma falácia com a chegada de Jéssica na casa. A posição de Val não é como membro da família, mas sim uma posição subalterna. Não há uma relação de afeto, mas uma relação de poder e hierarquia, na qual a empregada, por ser de classe baixa, está em situação de submissão. Ela é da família, mas não pode entrar na piscina nem quando não está em serviço, não pode tomar o sorvete caro do filho do casal. É da família, mas dorme em um quarto abafado e pequeno enquanto há vários quartos enormes e vazios na casa. A presença de Val na casa só é realmente bem-vinda quando ela está trabalhando, o que nos faz questionar o posicionamento da burguesia brasileira: permitem que as empregadas domésticas morem na sua casa, limpem sua sujeira e cuidem dos seus filhos, mas não há nenhuma relação além dessa.

Quando Jéssica chega na casa e começa a afrontar certas regras — ela entra na piscina ao ser convidada por Fabinho, apesar de ser repreendida por isso, toma o sorvete caro e pede para dormir em um dos quartos de visita da casa. Sua presença ali é claramente repudiada por Bárbara, a dona da casa. Carlos, o dono da casa, trata Jéssica muito bem durante sua chegada, mas logo depois tenta beijá-la e fica claro que a única relação que ele pretende ter com ela é sexual. Fabinho conversa com ela em alguns momentos, mas parece sempre tentar se impor de alguma forma, como se ele se considerasse melhor do que ela. O preconceito com Jéssica fica ainda mais claro quando ela passa no vestibular e Fabinho não — a reação de todos é de surpresa, pois não esperavam que a filha da empregada fosse passar, uma vez que ela não tinha as mesmas condições financeiras.

A entrada de “Jéssicas” na universidade é, na nossa sociedade, uma afronta à burguesia; um exemplo disso é a grande quantidade de pessoas que se dizem contra as cotas sociais/raciais. A elite branca brasileira não espera e nem aceita que pessoas pobres e/ou negras frequentem universidades, tanto por acharem que essas pessoas são menos capacitadas quanto por puro preconceito. A universidade é pública, mas não é popular — é elitizada e branca. A universidade é exclusiva. É uma vitória que uma pessoa como a Jéssica, pobre e filha de uma empregada doméstica, frequente esse espaço, mas não essa vitória não deve ser resumida a um resultado de uma meritocracia, como filme deixa transparecer. Jéssica estudou e lutou para chegar onde chegou, mas as chances de conseguir eram mínimas. Embora no filme Fabinho tenha reprovado e Jéssica tenha tido um bom resultado, todos sabemos que a universidade está cheia de Fabinhos e possui poucas Jéssicas — que, além de terem dificuldades para entrar na universidade, também têm dificuldades para se manter nela.

A família é uma clara representação da burguesia brasileira, que só se preocupa com seus próprios interesses e acredita possuir uma certa superioridade por pertencer a uma classe mais alta. Na realidade, entretanto, essa classe alta só se mantém porque há a exploração do trabalhador, principalmente das empregadas domésticas, que são marginalizadas no próprio lugar em que vivem, uma vez que precisam morar na casa dos patrões. No filme podemos perceber, através de Val, que muitas das normas sociais que geram essa opressão já estão fixas na cabeça da população — os patrões não precisam dizer a Val que ela não pode entrar na piscina, comer na mesma mesa que eles ou dormir em um dos quartos vazios; a própria diferença de classe já determina quem pode ou não fazer certas coisas e Val tem conhecimento disso, mesmo que nem sempre seja algo explícito.

É Jéssica quem traz uma esperança de uma nova vida para Val, pois a doméstica já estava acostumada com o tratamento que recebia. A desigualdade de classes é naturalizada e essas hierarquias costumam ser justificadas pela própria sociedade ao serem pensadas como algo inato. Quando Jéssica questiona a mãe sobre certos comportamentos, ela acaba trazendo uma reflexão que antes não existia. Val, em uma das últimas cenas, molha os pés na piscina da casa pela primeira vez em todos os anos em que morou lá, ligando para a filha logo em seguida para contar o que fez. Tal cena é uma representação do empoderamento da classe trabalhadora em relação à classe dominante. Pouco depois Val pede demissão e vai, finalmente, morar com a filha. Ela ainda tem a oportunidade de se redimir por não ter participado da criação da filha, pois descobre que tem um neto.

O filme aborda uma temática pouco discutida e extremamente importante, trazendo reflexões sobre a sociedade de classes em que vivemos, seus privilégios e opressões. Lembra bastante os filmes “Casa Grande” e “O som ao redor”, também nacionais.

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