A arte do nosso tempo (Coletânea)

Coletânea de poemas (meus) sobre a arte, o “nosso” tempo e os dois misturados

Bruno Oliveira
Reflexões
9 min readSep 25, 2021

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Pensar na utilidade das coisas é uma visão tipicamente burguesa de todos os recursos e influencia o pensamento contemporâneo: sempre precisamos estar medindo, quantificando e qualificando todas as coisas. Como se fosse proibido sentar e não fazer nada. Mas essa visão seria mesquinha e não é capaz de “capitalizar” todas as coisas, ao menos é assim que pensava o poeta curitibano Paulo Leminski: “querer que a poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja a serviço de alguma coisa é a mesma coisa que querer que o orgasmo tenha um porquê, que a amizade e o afeto tenham um porquê. A poesia faz parte daquelas coisas que não precisam de um porquê”. A poesia seria então um “inutensílio”.

Fruição — justamente a falta de finalidade. Só pelo prazer de fazer. Fruir é o contato ao usufruir de alguma coisa. É o prazer que se tem em contato com algo que pode ser bonito, feio, que te traz reflexão — é o contato com o consciente (ou o inconsciente, às vezes). Mesmo sem capital cultural, as pessoas podem ser tocadas, a arte é humana. A mudança do ser humano quando em contato com algo que é belo. A beleza é ao mesmo tempo a representação do perfeito e/ou também aquilo que nos deixa confortável, que nos é agradável. A poesia assume aqui um papel de alimento (para a alma).

E não é porque a poesia não PRECISA ser útil, que ela não possa ter utilidade. Querer ler um poema de Carlos Drummond até ele mudar a sua vida não vai ser uma boa experiência, e provavelmente não vai ser útil também. Deve-se ler Drummond com o objetivo de fruir daquele poema, a mudança da sua vida, ou qualquer outro benefício dessa leitura, é marginal e algo que pode acontecer ou não. Só tempo pode dizer.

A criação

A criação é romântica por si só
paixão pueril em transpor abstrações
é aquele sentimento de construir,
realocar, moldar, mover, manipular

Criar é despejar diversidade ao mundo
apelo de um mundo inesgotável em quantidade
é o puro exercício de consciência
criamos para viver duas vezes

A arte nos faz sobreviver a verdade

Sonhos & Barros

Ontem, eu tive um sonho
era sobre o nada
e sobre isso, tenho autoridade

Poesia é a infância da língua, dizia uma voz do nada
Só espero a tarde para entristecer, respondo

desando em pouca poesia
procuro a tristeza, porque triste viro poeta
também preciso de um dicionário,
desses, usado por Drummond, Neruda ou Bilac
quero formar estátuas com as nuvens do meu cachimbo

Abra a torneira e veja a poesia jorrar, dizia a voz do nada
Penso nos peixes. Eles precisam dela, a mim só resta o mar, respondo

êta mundão, olho as estrelas em sua testa
cada estrela é pra mim um espólio
sou gaiteiro, sento nas ruas e toco, toco e toco
até me cobrir de lama, me entupir em Barros
e a poesia voltar

Todos são iguais perante a lua, dizia a voz do nada
De tarde, os homens tem esperanças. Á noite, solidão, respondo

meu sonho já não é mais nada
tem a lua, o ar triste, os peixes no mar de lama
a poesia me chama para dançar, ao menos nesta noite de baile
as palavras me levam até a infância. E volto
o silêncio me leva até o túmulo. E volto, talvez
troco a alma por um chapéu velho

Não lhe fará falta a alma?, diz a voz (agora na lama)
Prefiro o que me é familiar, respondo (na lama)

e me vejo bêbado, operário, mas não poeta
sinto a dobra da chuva, o banho da lua, o suspiro da estrela
mas não sinto as palavras, apenas o cheiro do enxofre
tenho o desejo de amar, mas algumas raízes descobertas
coloco as mãos na lama, mas só resgato lembranças sujas

Entre os seus dedos está o frescor dos musgos, disse a voz
Fresco apenas o ar que respiro, em todo o resto sou caduco

Ontem, eu tive um sonho
era sobre lamas e barros
e sobre isso, tenho autoridade

Bossa

Sou poeta de Moraes,
de São Paulo, de Pernambuco, da Gávea
sou o poeta que chora, que sofre, que se angustia
mas também sou o poeta que ri, que dança
minh’alma é só uma parcela do infinito distante

A vida do poeta tem um ritmo diferente
está sempre na dialética dos extremos
observa a terra, e sente os céus
nessa eterna desventura, de viver
essa tristeza que não tem fim, carnaval
que se acaba na quarta

Meu coração está vago, com versos
de uma saudade imensa
mas a tudo serei atento
não farei do amigo próximo o distante
não farei sozinho quem me fez contente
o coração em silêncio deixa as palavras à poesia

Pedirei ao rouxinol, ao sabiá
que cantem loas, que tragam a paz
para compor essa nova bossa

“A vida é uma grande ilusão. Sei lá, só sei que ela está com a razão”

Aceitação

Em meio aos poemas de Drummond
me dói o sentimento do mundo
descubro que nunca mudarei a realidade

Me via buscando as cargas mais pesadas
anseio pela dificuldade e pelos desafios
me torno o novo Sísifo

É neste instante que perdemos o controle
o tempo aprecia seus esforços em controlá-lo
mas mandou avisar que ainda há tempo

Percebo o absurdo, me resta a revolta
me torno um leão no deserto, o guerreiro
travo batalhas, mas só derroto a mim

Torno-me, por último, a aceitação
volto a ser criança — ingênua, mas aberta ao novo
detentora de liberdade, de criar além de si mesmo

[…] > Universo > […] > Via Láctea > Sistema Solar > Vários Planetas > Terra > Exosfera > Termosfera > Mesosfera > Estratosfera > Troposfera > Continentes > Países > Estados > Cidade > Bairro > Rua > Casa > Você

Embriaguez

Embriago-me
pra fugir das mazelas do tempo
Tal como os poetas
malditos de séculos passados

De que existia,
me esqueci, meu corpo tornou-se sombra
Uma memória de outrora
sento-me, e me transpareço

Embriago-me de vinho,
e de poemas, menos os feios
Já tenho o andar das borboletas
oscilante como os taninos em minha boca

Após minutos do relógio
a taça frequenta os meus lábios
e o álcool o meu coração
as palavras não ficam mais em minha mente

Zeitgeist

Eis a estória do bardo
que, por destino ou acaso
carrega o fardo
de contar o imaginário popular

O zeitgeist das ausências e da dor:
o doce sem açúcar, o café sem cafeína,
o vinho sem álcool, o amor sem amor,
morrer ainda cheio de saúde

Esta verdade sonâmbula
que invade meu corpo e o desmorona
esta ansiedade que perambula
no meu coração ainda cheio de amanhã

As vozes frias do povo
formam o nosso folclore moderno
uma têmpera deste Estado Novo
metafísica de uma sociedade em isolamento social

O bardo tenta fazer sua própria justiça
também canta o velho gasto e o gosto novo
luta cotidiana de ideias mestiça
hoje, viver é um ato de coragem

Relicário

As paredes que me abraçavam não existem mais
as máscaras que me silenciavam não existem mais
os noticiários que me desanimavam não existem mais
o mundo não existe mais

As praças voltam a ter alguém
as solidões voltam a ter alguém
as estatísticas voltam a ter alguém
o amor continua a não ter ninguém

Mas não baixemos a guarda
há doenças piores que as doenças
a economia opulenta, que roubou vagas nas UTIs
a política fisiológica, que roubou esperança dos civis

Agora vem a crise do sistema mundo
buscamos as respostas nas estrelas
e vemos apenas o que sobrou do céu
e vemos apenas o que sobrou de nós

O calor humano é apenas um resquício
vivemos a era do gelo em pleno aquecimento global
vivemos a nobreza dos epitáfios das valas comuns
vivemos pelos que morreram antes de nós

É o momento das insurgências dos de baixo
o sentimento do mundo tornou-se acessível
o sentimento do mundo é maior do que a minha rua
o sentimento do mundo não depende apenas de duas mãos

Ode a Drummond

Neste mundo caduco, sou um gauche
desafio as pedras em meu caminho
grito minha ansiedade, meu Deus
tenho o sentimento do mundo

Do banco, vejo o cosmo se reunir
vejo a lagoa, todas as cores
vejo o tempo, quero medi-lo
vejo, mas me proibiram de sonhar

Amo sem conta, ainda que mal
sinto a ausência sem a falta
a velhice recai sobre meus ombros
será que vou morrer de medo?

No fim, percebo o tempo presente, a vida presente
tenho apenas duas mãos, às vezes dadas
E agora?
Fui ler Neruda — que ainda não havia entrado na história

O Vazio

O vazio é o que está por trás dos olhos
é o que coloca em existência todo o universo
é o que transforma as luzes, cores, pesos, texturas,
em significados — o vazio é fértil

O vazio está nas artes,
está (e não está) nas criações recursivas de Escher,
está nas contemplações de Miyazaki,
está nos não-lugares da Lina Bo Bardi

O estado mais real é o vazio
posso percorrer todo o caminho
mas quando desaparecer
retornarei para o vazio — a essência de tudo

O vazio dá espaço ao tempo
este tempo que não me move,
mas que permite que me mova com ele
neste vazio que, quando bem assimilado, me preenche

O testamento

Vim narrar um fato
a uma hora da aurora que ilumina o vale ameno
tem os tinir de louças de chá
tem as almas úmidas de caixeiros
e a traição dos indolentes

A carne e o sangue são frágeis
nesta tarde de inverno nevoento e tépido
nesta cidade hostil de caminhos enlameados
o desprezo surge como letras na areia
neste charco de angústia e melancolia

Quando esta epístola for lida
surgirão sorrisos vacilantes e discretos
esta sensação inefável
um misto de culpa e ansiedade
sobre estes dividendos de sangue

Mas a manhã tomará consciência
entre o cheiro de choro e cerveja
a verdade recôndita florescerá
nesta primavera em pleno inverno
haverá, por certo, um tempo de justiça

Em meu princípio está o meu fim
das velhas lenhas — novas chamas
das velhas chamas — cinzas que semeiam a terra
há um tempo para viver e conceber
e agora durmo nesse silêncio vazio

Réquiem

Ela virá,
seja num domingo a tarde
ou no inverno, sem alarde.
Não importa, ela virá

Rogo a Deus,
pela ausência de sofrimento
ou pela culpa sem lamento.
Não importa, rogo a Deus

Fico imaginando,
os bosques dos pirilampos
ou os lírios nos campos.
Não importa, fico imaginando

Aproveito meu réquiem,
com tons de murmúrios
ou lágrimas de perjúrios.
Não importa, aproveito meu réquiem

Poderei descansar,
sentirei a paz da eternidade
ou o restante da minha sanidade.
Não importa, poderei descansar

O tempo já passou,
já não posso voltar
ou tentar amar.
Não importa, o tempo já passou

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Bruno Oliveira
Reflexões

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.