A repulsa do Bolsonarismo pela arte: lições do De Stijl para tempos de crise

Bruno Oliveira
Reflexões
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6 min readAug 9, 2019

O De Stijl (em tradução literal do holandês: o estilo), foi um movimento de vanguarda (esse detalhe é importante) que surgiu na revista de mesmo nome, principalmente sobre as perspectivas de seus dois principais expoentes: Theo van Doesburg e Piet Mondrian (que é na humilde opinião desse que vos escreve, um dos maiores pintores da história).

[De forma simplista] as obras no De Stijl estava limitada às três cores primárias acrescidas de preto, branco e/ou cinza, e os elementos composicionais se limitavam a linhas horizontais e verticais, bem como superfícies retangulares. Além disso, equilíbrio e harmonia — a essência do design De Stjil — não deveriam recorrer à simetria [1]

A forma simples de arte valoriza o que é essencial

De uma certa forma, a arte de Mondrian e de outros artistas do movimento, tentavam procurar a paz espiritual, inspirado nas artes xamânicas e esotéricas. Mondrian acreditava que o poder criativo, livre dos erros da tradição, é fundamental. Mas do que ser uma grande confusão, um barroco moderno, a arte deve ser baseada em princípios maduros e alinhados ao espírito da época, funcionando como meio de expressão. Outro artista importante do De Stijl, Piet Zwart, acreditava que a simplicidade da linguagem visual abstrata era eficiente, imediata e ideal para captar e orientar um desejo coletivo. Distinção entre a grande obra e os prazeres do dia a dia.

Serviço de mesa para o café da manhã — Piet Zwart

Provavelmente, deve estar se revirando no túmulo ao saber que seu estilo agora virou uma arte estéril com seus conceitos (simplicidade, cores chapadas, geometria, etc) sendo amplamente utilizados pelas agências de publicidade para vender produtos. O capitalismo é implacável. E aqui reside a principal contribuição do De Stijl para o entendimento da nova perspectiva da arte no governo Bolsonaro: a dialética das vanguardas.

[…] a crítica, a utopia social e cultural das vanguardas tornou-se um movimento ambíguo com sua estética cartesiana e maquínica, para depois tornar-se conservador e artisticamente estéril ao integrar-se às estratégias comerciais da indústria, mídia e publicidade [2]

Dialética das vanguardas

As artes de vanguardas, de forma geral, buscam trazer a realidade para a arte, e não o contrário (como são as artes mais conservadoras). Poetas como Carlos Drummond de Andrade ou Arthur Rimbaud contam a realidade das pessoas e dos acontecimentos de seu tempo.

Trecho de “Mãos Dadas” — Carlos Drummond de Andrade (livro Sentimento do Mundo)

A relação entre realidade e arte nestes novos movimentos de vanguarda geram diferentes posições quanto as mudanças culturais que elas trazem ao imaginário popular. Por exemplo, na URSS, havia-se a discussão de qual seria o movimento artístico que melhor representasse a nação: do futurismo vanguardista do Vladimir Maiakovski (leninista) até o movimento de arte proletária — Proletkult (estalinista). Trotski defendia uma visão dialética sobre a situação, não rejeitava as vanguardas, mas não apoiava o Prolekult: (i) é visivelmente contra a estética burguesa, para ele a arte, mesmo a mais pura, se rompe com os grandes fins, quer o artista tome consciência disso ou não, degenera numa simples confusão [3]; ao mesmo tempo, (ii) é visivelmente a favor da liberdade dos indivíduos: ninguém certamente pede à nova literatura que tenha a impassibilidade de um espelho. Quanto mais profunda a literatura, quanto mais imbuída do desejo de modelar a vida, tanto mais dinâmica e significativamente poderá pintar a vida [3].

Tanto a dialética das vanguardas pode ser utilizada para fins revolucionários, como na URSS, quanto também pode ser utilizada para banalizar certos aspectos da arte para geração de cultura de massa. A característica teleológica dessa dialética é inerentemente política. Mal sabia Trotski que parte dessa ideia seria utilizada de forma totalmente diferente por diversos políticos em todo o mundo, inclusive no Brasil.

A guerra cultural bolsonarista

Roberto Alvim é o novo diretor do Centro de Artes Cênicas (Ceacen) da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Em uma de suas primeiras falas após o anúncio, ele convoca um movimento conservador para uma suposta “guerra cultural”. Some a isto as novas regras da Lei Rouanet, à paralisação dos repasses da Ancine (Agência Nacional de Cinema), a retirada de patrocínios para projetos culturais por parte de empresas públicas (ex: comercial do Banco do Brasil), entre outros, e temos um estado de “instabilidade artística”, para não ter que usar outro termo.

Para o professor Eduardo Wolf [4], as “guerras culturais” costumam ser travadas quando um grupo considera que uma identidade da sociedade — da Nação, sobretudo — é interpretada de maneira essencialista, como se houvesse uma identidade fixa. E esse é o ponto chave para entendimento da dialética bolsonarista: (i) visão muito clara do que é ser brasileiro (identidade nacional) — um ser simples, moral, temente a Deus, “do bem”, e qualquer coisa diferente disto torna-se um inimigo da pátria (velha visão dos bárbaros); (ii) defender os clássicos e tradições como única forma de cultura — sem considerar contribuições históricas — a história é apenas alvo de revisionismo para relativizar fatos passados; (iii) as pessoas só podem criar o que o governo define como alta cultura, qualquer outra forma de arte subversiva é considerado baixa cultura e torna-se alvos de retaliação (velada ou não). E o objetivo é sempre o mesmo no final: censura!

Para tratar casos complexos (como a mudança do CSC), a dialética Bolsonarista usa critérios arbitrários para definição do que é arte e do que não é para desvio do foco

A disputa pela apropriação da identidade nacional é o principal objetivo de Bolsonaro com esta Guerra Cultural. O discurso sempre se dá do ponto de vista moral e religioso, o que é conveniente para fugir de assuntos mais programáticos, como saúde, educação e economia — o que evidencia uma ausência de visão de país, ou a ocultação de uma visão obscura que ainda não deu as caras no governo.

Opinião pessoal do autor — Pensando em termos político, a cultura é uma das principais formas de soft power que a diplomacia brasileira poderia usufruir. Deixá-la pra trás, é isolar o país do restante do mundo e do seu próprio cidadão, perdendo parte da identidade nacional em troca de um discurso ideológico que enoja e pouco comove as pessoas, além de não possuir nenhuma visão de futuro para o país. A estética bolsonarista prega a simplicidade, como se ele fosse um homem comum — tal como prega os diferentes estilos de vanguarda, entretanto difunde o conteúdo como uma cultura de massa, puro populismo. A cultura de Bolsonaro diverge das vanguardas ao não trazer a realidade para dentro de sua “arte”, mas justamente o contrário, de criar mecanismos que representam uma realidade que não exista — seja através de fake news ou teorias conspiratórias. O que o De Stijl nos ensina é que apenas o conceito não é suficiente para perpetuação da ideia, diferentes grupos podem se apropriar da arte da forma que bem lhe entenderem. Como observou Trotski, a dialética é importante para suscitar a liberdade de criação da arte, ao mesmo tempo em que ela não pode perder o seu aspecto coletivo e de impacto a realidade (independente da tradição) das pessoas que a consomem. Uma visão saudável de país não pode admitir uma guerra cultural.

Referências

[1] Stephen Farthing. “Tudo sobre arte”. 2011.
[2] Eduardo Subirats. “Da Vanguarda ao Pós-Moderno”. 1984
[3] Leon Trostski. “Literatura e Revolução”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
[4] AFP. “Governo Bolsonaro lança ‘cruzada’ contra progressismo cultural”. Revista Exame. 2019

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Bruno Oliveira
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Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.