O Deus de Espinosa

O Deus de Espinosa é o todo. “Deus” é tudo o que é. “Deus” não está entre nós. “Deus” somos todos nós. Tudo o que há na natureza, existe para perseverar

Bruno Oliveira
Reflexões
6 min readFeb 6, 2022

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“Há religião cada vez que há transcendência, ser vertical, estado imperial no céu ou sobre a terra; e há filosofia cada vez que houver imanência”– Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia?, p. 54Imagem: [Razão Inadequada]

Baruch Espinosa (ou Spinoza) é conhecido, dentre outras coisas, como o filósofo da imanência absoluta. Para ele não há transcendência, há apenas uma única substância. Substância como sendo algo que existe em si, que não precisa de uma outra coisa para se conhecer, para se explicar. Algo sem causa anterior. A substância é, portanto, livre. Não é limitada por nada mais. Tudo o que conhecemos são modos e atributos desta substância: o Deus de Espinosa.

Einstein, quando perguntado se acreditava em Deus, supostamente respondeu: “Acredito no Deus de Espinosa que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa em premiar ou castigar os homens”

De acordo com a Marilena Chauí (provavelmente a maior estudiosa de Espinosa no Brasil) indica que o Deus de Espinosa seria o “ser infinitamente infinito”, isto é, a substância como a “natureza naturante”; e se manifesta a partir de “seres singulares finitos” que são os modos da substância. Ou seja, os seres humanos seriam modos finitos do infinito e, portanto, imanentes a ele por suas potências de existir e agir.

Experiência espiritual através da imanência e transcendência [Imagem: Soela & Neto] — Um exemplo (não o único) de relação entre imanência e trancendência

Espinosa x Teologia

Há quem considere o espinosismo uma espécie de ateísmo. O que talvez seja um erro. Espinosa considera a existência de um Deus, mesmo que não transcendente. Isso, de certa forma, pode ser considerado uma espécie de teísmo. Não que não possamos acreditar em uma religião, mas devemos evitar a teologia — porque é a teologia que frequentemente luta contra a principal característica da substância: a liberdade. Espinosa pode ser considerado um anti-teólogo.

Mas como sempre costumo dizer, uma discussão sobre qualquer coisa é, antes de tudo, sempre uma discussão semântica. É preciso entender o que Espinosa quer dizer com os conceitos que utiliza, para entender onde ele quer chegar.

A religião aqui seria então aquele conjunto de verdades que são muito simples e quase sempre vem atrelada de teses e ensinamentos morais. Estas verdades são facilmente reconhecidas como verdade pelo ser religioso, não se há dúvidas sobre elas, como por exemplo: não matarás, amar o próximo como a ti mesmo, guardar domingos e festas, etc. A teologia seria o poder terreno, que detém as verdades da religião e as utiliza conforme é necessário para a manutenção do controle, verdadeira dominação dos fiéis por influência política transvestidas de liturgia.

Inclusive, boa parte das críticas de Espinosa são destinadas as obras litúrgicas. Na visão dele, todos estes textos, em especiais os antigos devem ser analisados e interpretados como um fruto do seu tempo. Isso vai em confronto do que prega boa parte das teologias, que glorificam suas liturgias e as tratam como textos divinos: sacros e atemporais. Espinosa então tira a atemporalidade destas escrituras para tirá-las de um local transcendental e trazê-las para um lugar humano e mundano.

Sobre estas “sagradas escrituras” pode ter havido perda de informações, erro de traduções, mudança de significados; aquela não pode ser uma verdade imutável, porque o texto em si é mutável. Por exemplo, ele indica que a leitura da bíblia deve ser feito em sua língua original (hebraico, aramaico), com base nos eventos históricos daquele momento. Se considerarmos aquele contexto, é possíveis que vários contemporâneos de Moises não fosse capaz de entender o que estava escrito no pentateuco, pois várias das expressões e palavras utilizadas não pertenciam aquele tempo.

Samuel Hirszenberg, Spinoza (1907).

Como é o Deus de Espinosa?

O Deus de Espinosa é onipresente: ele é toda a presença; O Deus de Espinosa é onisciente: ele é toda a ciência; O Deus de Espinosa é onipotente: ele é toda a potência. Deus é tudo que há e tudo que é. Deus não faz milagres, pois tudo acontece de acordo com o fluxo deste Deus, sem exceções ou modificações na substância. Para Espinosa, acreditar em um milagre como um evento sobrenatural e inexplicável, é acreditar que Deus está alterando o fluxo e destino das coisas que ele mesmo fez. E se Deus precisa corrigir aquilo que ele mesmo estabeleceu, a ideia de milagre seria a prova de sua falência.

“não há nada mais digno na grandeza de Deus que manter as leis gerais estabelecidas por ele mesmo; nada de mais indigno, do que acreditar que intervém para violar seu curso, e a que propósito?”

Deus é o real como ele tem de ser — não há nele em si um senso de justiça. Deus não julga: ele não é um terceiro, ele é o próprio agente. Deus não condena: ele é o que é. Deus não recompensa: ele é todo o fluxo, a causa e a consequência. Deus não transcende o homem, ele é o homem. As pessoas acreditam em um Deus justo, por que no fundo elas acreditam que o universo foi feito para elas. O Deus justo é um delírio humano. Nem tudo o que existe na Terra (ou no universo) está lá em função da nossa existência.

O pensamento cartesiano indicava a separação entre corpo (existência) e mente (pensamento). “Penso, logo existo”. Hoje, a própria ciência já indica uma conexão entre estes dois fatores: ao comer algo gostoso podemos nos sentir feliz; ou ao estar triste, tendemos a ter um desempenho pior no esporte. Corpo e alma, existência e pensamento seria uma coisa só. E assim pensa também Espinosa: “a ordem e conexão das ideias são a mesma que a ordem e conexão das coisas”. Todas as ideias existem. Ainda que se apresentem de maneiras confusas.

Confusão entre liberdade e consciência. A ideia geral de liberdade seria a de fazer o que se quer: “se eu quero beijar uma pessoa, eu estarei livre se eu conseguir beijá-la”. Mas beijar quando se quer não é ser livre, isso seria um impulso em que você está obedecendo uma determinada vontade. O que Espinosa vai dizer é que você está consciente de sua ação. Liberdade seria estar sobre o domínio da sua potência de existir, o esforço de se preservar, a vontade de viver mais (conatus). Tudo o que há na natureza, existe para perseverar. Estar livre é estar potencialmente capaz de existir por completo, de perseverar da melhor e mais extensa forma. Quem persevera e existe melhor, seria um modo de Deus mais perfeito. E mais livre.

“Agir absolutamente movido pela virtude nada mais é, em nós, que agir, viver e preservar o nosso ser por meio da orientação da razão.”

Em termos de liberdade, os afetos são partes essenciais na vida humana. A alegria seria a passagem de uma perfeição menor para uma perfeição maior. A tristeza seria o contrário — a passagem de uma perfeição maior a uma menor. O ser humano é falho e por isso tem em sua vida essas passagens. Deus, por ser perfeito, não possui essas passagens, por isso ele não se zanga, ele não ama, ele não entristece e nem fica chateado com qualquer outra coisa.

“A criação de Adão”: algo criado por Adão ou Adão sendo criado?

Referências (e recomendações de leitura):

Alexandre Flores Alkimim. O conceito de Deus em Baruch Spinoza. 2021.

Daniel Gomes. Baruch Spinoza | Deus, Natureza, Liberdade, Bíblia e Conatus. 2020.

Fernando Dias Andrade. A causa de si e de todas as coisas. 2019.

Marilena Chauí. O desafio filosófico de Espinosa. 1994.

Vanderlei Soela; Antonio Carvalho Neto. Liderança Espiritual ou Espiritualidade da Liderança? Um Contraponto à Teoria da
Spiritual Leadership
. 2018.

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Bruno Oliveira
Reflexões

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.