Querelas do Brasil (Coletânea)

Um diário de viagem (poético) — uma coletânea de poemas (de minha autoria) para representar um pouco da diversidade cultural do Brasil e do Brazil

Bruno Oliveira
Reflexões
10 min readOct 5, 2021

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“O Brasil não conhece o Brazil / O Brazil nunca foi ao Brasil”

Estas são as minhas humildes impressões e registros sobre o nosso país:

(I) O BRASIL CONHECE O BRASIL:

Caipira

Esta noite tem pagode na Paulistânia
em São Paulo, em Minas e Goiânia
Colheita que ocorre em lua clara
tem caboclo, tropeiro e caiçara
Bate-pé indígena ao som da catira
tem xucro, roceiro e viola caipira
Cancioneiro com trapos de bonecas
tem os urupês, capiaus e jecas

Samba de Pirapora é o mió que há
AaaaAaaa,
Samba de bumbo é o mió que tem
EeemEeem
samba de preto veio é caipira também

Seu moço, sou diverso
sou o verso e o reverso
avesso ao terço imerso
assumo-me no inverso
às vezes prosa, às vezes preces
sento na praça, jamais pressa
conheço o preço do tempo
e a pressão do preço da carne
sou do interior, o interior
roceiro, matuto mato grande
graças a deus, nosso senhor
aceito tudo que ele mande
para vida de toda essa gente
labuta, pinga e repente

Durmo tranquilo por conta da fé
n’outro dia, acordo e passo o café
mesa completa, inté o fubá
com lambari e farofa de içá
pito e fumo na janela aberta
como não tenho recurso
nem curso completo
rezo pelo céu que há de sobrar
pelas serestas das corruíras
e as fanfarras nas guarabiras
esperando a flor da noite acurvar

Samba da Pauliceia
batida na zabumba e o boi que gemia
Samba de Cananeia
batizado em roda de bamba e boemia
samba de índio traz também a alegria

Por ser daqui
posso nascer, casar e morrer pobre
mas não há tristeza que todavia sobre

Paulicéia

Em meio a multidão
busco ver a cidade
mas sinto tristeza e solidão
não encontro, nas pessoas, a veracidade

Vou até a São João
e também na Ipiranga, Paulista
nada aconteceu no meu coração
além do amor escapista

Tento criar pontes
mas me perco nos viadutos
os rios daqui desaguam no Aqueronte
ou nas contas de políticos astutos

Sinto-me só entre garoas e enchentes
Sinto-me só entre prédios e barracos
Sinto-me só entre semáforos e ciclofaixas
Sinto-me só entre milhões
Sento-me, só.

Ver-o-Peso

Acendo vela para Iaiá
numa capela de jatobá
sem cela de sabiá
querela que me alumia
pororoca que traz pruá
saudade dela vai me mata

Vivo o corrupio do carimbó
traiçoeiro que só o cão
mesmo ardil no catimbó
panela que prepara o pão
morteiro depois do clarão
mazela que derruba no chão

Festa que entoa calada
banzeiro que se dá na madrugada
mesmo em canoa, jangada
madeira que não serve, furada

A praça de manhã
com esgoto em tom amarelo
na arruaça do carapanã
peixe que levou o farelo
traz o ponteio do urubu
no meio do pitiú

recôncavo

— baiana, e o abará?
— final da tarde, se quiser

todos os santos dançam em fevereiro
há os que comem água,
e os que a adoram, odoyá!

onde todos os búzios se cruzam:
jesus, marias e josés,
os descendentes dos pajés,
filhos de gandhi,
olorum ou zambi

roupa branca, pele preta
e um trio de afoxé
roma negra, mundo negro
caldas e um pouco de axé

— brother, o que é que há?
— batecum, lá na beira do mar

nada de apertar a mente
pega as ‘base’, no cocó
em um sorriso todo mundo se entende
por aqui eu não ando só

tem festa boa, com ijexá
num fim de tarde em itapuã
segurando meu patuá
comendo anduzada e puã

tem as meninas baianas
nas areias brancas do abaeté
nos becos do curuzu
tez morena, cor de café
lábios molhados, sabor de umbu

também tem breu e mata escura
na chapada, curió e a mucura
fazenda, caboclos e veadeiros
em sobradinho, forró e piseiros
linha verde, praias e cajueiros
sertão de carnaúbas e juazeiros

— minha pele retinta, meu ilê
— agridoce dendê, meu aiyê

quero dormir na forja de ogum
oferecer meu acaçá a oxalá,
pra que não haja mal algum
baianidade de preces no pelô
acender um incenso, valha!
ao som de dodô e velô,

Do pé rachado

trago na memória
um monte de estória
cerrado de vento árido
estepes de brisa quente
réstias de sol colorido
estrume, areia e gente

taipa de lenha
piqui na gororoba
leite de vaca prenha
refogado de guariroba
caroço de angu
galinhada caipira
brigadeiro de cumaru
fumo do curupira

bão de mais da conta
mas dô conta não

fi de quem?
da sorte e da viola
da morte e da pistola

alembro quando era liso
na pindaíba, andrajoso
coisado, com pouco juízo
sem bota, pé argiloso
dinheiro nem pro buzú
de volta para Porangatu

— vai reto toda a vida
— quando chegar no queijim, dá o sinal

mas espia aqui
ó o que aconteceu comigo
achei um bilhete no monturo
tem base? eu juro!
acabou todo meu castigo
fui para Ouro Fino
levei todo dinheiro
passei em Divino
encontrei Chico Mineiro

(II) O BRAZIL NÃO CONHECE O BRASIL:

Hino

Ouviram os tiros
eles em situação de rua
o povo heróico

primeira fake news:
destes filhos, mãe gentil
pátria amada Brasil

florão da América
riqueza que dá em árvore
genealógica

pele pobre preta
postura parda pronta
persona presa

teu seio gigante
porta-retratos da fome
pornô delirante

paz lá na frente
café passado
Marielle presente

terra adorada
teme até a própria morte
a sete salmos

ergues a justiça
filho teu não foge a luta
mas cansa

História Brasileira

Leio as memórias do meu país
Dói-me a dor alheia
Em meio ao cheiro de mata molhada,
Do café, madeira e açúcar
Vejo também os pés descalços, as picadas, os mergulhos no riacho
Todos tiveram suas vidas roubadas

Carregamos nossa herança
a marca do torturador impressa na alma
não éramos os negros e índios, que excluímos
não éramos os europeus, que nos excluíram
passamos a ser ninguém
também conhecido como brasileiro

Mas essa “ninguendade”, bem assimilada,
ninguém tira de nós
Nada mais belo que a incursão
à Nova Roma de pele morena

Povo Cordial

Somos cordiais,
já diziam os bardos portugueses
o novo reino, sublime
o novo reino, além do ultramar

Somos miscigenados,
somos nossos únicos escravos, diversos
A nossa casa já não é mais grande
Mas ainda temos senzalas

Somos um povo social,
a matéria de nossa história, somos nós
os moleques do Brasil
que pedimos e damos esmolas

Somos o armorial, o manguebeat
Vivemos nossas vidas secas e severinas
Escrevemo-as em curvas
E nos devoramos, antropofágicos

Esquentamos nossos pandeiros,
Somos recôncavos, sob o sol de Ipanema
Sangue latino, como nossos pais
Estamos em construção

Cotidiano

Acordemos,
ao café moído, que bebemos
ao pão amanhecido, que comemos
ao dia cinza, que sofremos

Tomamos os pingados,
ainda recém acordados
ainda recém isolados
ainda reféns despertados

Todo dia, sempre via
meus vizinhos, na academia
meu carteiro, na coxia
meu ânimo escasso, que ruía

Chego ao escritório, o terror
nas planilhas não encontro o amor
nos cafés só encontro a dor
no relógio, encontro o tédio sem pudor

Ouço Geraldo, queria estar na praça
dando milhos aos pombos, bebendo cachaça
dando corda a esta grande trapaça
dando chances a esta vida — sem graça

A noite é dura, insossa
vivemos as emoções em uma fossa
vivemos as estrofes de Espinoza
vivemos uma vida que não é a nossa

contraindicado

trago novidades
nove em noventa e nove homens concordam comigo

posso engravidar nove mulheres
NOVE
todos os dias
durante nove meses
mais de novecentas e noventa e nove gravidezes

a novinha
engravida uma vez
UMA
em nove meses
mesmo noiva
de noventa e nove homens
em nove meses
todos os dias

desde de noventa e nove
ou do século nove
nove mulheres controlam a natalidade
sem que novamente
noventa e nove homens
tragam novidades

pare de tomar a pílula
ela não deixa nosso filho nascer

ciência adverte
em nove meses
nove são contraindicados
ˢᵉ ᵛᵒᶜᵉ ᶠᵒʳ ʰᵒᵐᵉᵐ
leia a bula

Dona Maria

Ah, Maria
tens o mar em teu nome,
mas não em tua memória
tomada por todo o sertão

Ah, Maria
seu andar é tão incerto quanto a chuva
a aridez está em seu rosto
seca também é sua ambição

Ah, Maria
somos só nós por nós neste mundo
onde foram parar todas as nossas coisas?
essa é a nossa pobreza

Ah, Maria
que estranha potência a vossa
era tão bom, que hoje ainda é bom
a felicidade reside em nossas origens

Pseudologia Amazônica

Prometi livrar o mundo dos monstros selvagens
mas estou aqui nesta floresta de árvores falantes
com o sol lancinante em lâminas de raios
dos rios sem margens a jusante ao mar de desejos

As pessoas ali contam suas histórias
do silêncio em flecha que ouve suas preces
da Iara da tez morena, nova Iracema
do tucupi e murupi em cuia de cumatê

Das árvores que falam sobre suas dores,
de suas cicatrizes cobertas de látex
de suas lágrimas que compõe as chuvas da nação

Do rio caudaloso como um mar de tinta negra
das águas escuras que acobertam os mitos e criaturas
de fluxo agitado, como o tempo — exceto aos Pirarrãs

Mas da guerra entre abelhas e pássaros,
ganharam apenas as máquinas cinzas
com sangue de inocentes em suas engrenagens
desta crônica de homens e monstros

Da pólvora que queima o sangue e as folhas na relva
da fumaça que sufoca as plantas e os prantos
Mas da tela de nossos televisores
vemos apenas a pseudologia fantástica

Rich Friends

It’s high time para ter um Rolex
diz o aviso, c’est la vie
débito ou crédito? — Amex
of sure, I must agree

vou levar meu single malt
terno e gravata sem nó
mas don’t miss out
baking soda
e carreira de pó

eau du bain a base de formol
skin care holístico quântico
signo de solstício semântico
good vibes após um Adderall

o Brazil não conhece,
o Brasil…

It’s a brazilian dream, modafoka
— Café com sucrilhos, sem tapioca
o comercial te oferece um credit card
o mercado te devolve um clash hard

para um Brazilian
comer farofa com galinha é grosseria
— se ainda fosse cordon bleu ou coq au vin

estão nos rótulos de mayonnaise
eles subvertem as equações
acreditam ter a mais alta finesse
odeiam aldeias, mangues e sertões

do Faria Limer
ao empreendedor
do milico sonegador
ao gado com Alzheimer

gosto da nossa gente, I really want rich friends
por meritocracia ou herança dos pais
amigos just like europeus meridionais
nada contra amefricanos e outros blends
— (tenho até amigos que são)

o Brazil não suporta,
o Brasil…

“O Brasil não conhece o Brazil / O Brazil nunca foi ao Brasil” — A música Querelas do Brasil, famosa na voz de Elis Regina, e composta pelo grande Aldir Blanc, é a visão dos brasileiros que querem ser estrangeiros, que desdenham de tudo que existe por aqui, como se o que viesse de fora fosse sempre melhor do aquilo que fosse produzido aqui — exceto eles mesmos. Esse Brasil que não quer ser Brasil, é então o Brazil.

Tapir, jabuti
Liana, alamanda, ali, alaúde
Piau, ururau, aki, ataúde
Piá carioca, porecramecrã
Jobim, akarore, Jobim, açu
Uô, uô, uô
Pererê, camará, tororó, olerê
Piriri, ratatá, karatê, olará

Querelas são reclamações, queixas que se fazem quando há uma acusação, uma petição sobre males feitos. Querelas são aquelas coisas que os brazileiros fazem em relação aos brasileiros.

O Brazil não merece o Brasil / O Brazil tá matando o Brasil

Alta e baixa antropofagia — O. Andrade (não é ser um europeu de 2° categoria, mas ser um brasileiro de 1° categoria)

Jereba, saci, caandrades, cunhãs, ariranha, aranha
Sertões, guimarães, bachianas, águas
Imarionaíma, ariraribóia
Na aura das mãos de jobim-açu
Uô, uô, uô
Jererê, sarará, cururu, olerê
Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará

Do Brasil, SOS ao Brasil / Do Brasil, SOS ao Brasil

Elis Regina — Querelas do Brasil

Tinhorão, urutu, sucuri
Ujobim, sabiá, bem-te-vi
Cabuçu, cordovil, cachambi
Madureira, Olaria e Bangu
Cascadura, água santa, acari, olerê
Ipanema e Nova Iguaçu, olará

Do Brasil, SOS ao Brasil / O Brasil tão matando o Brasil
O Brasil, bye bye bye, bye Brasil

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Bruno Oliveira
Reflexões

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.