O Carteiro e o Poeta

Bruno Oliveira
Reflexões
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5 min readAug 6, 2014

Resenha do Filme: O Carteiro e o Poeta (1994) Direção: Michael Radford

SINOPSE: Um simples carteiro italiano aprende a amar poesia enquanto entrega cartas ao famoso poeta Pablo Neruda; ele usa suas metáforas para impressionar a bela Beatrice.

Massimo Troisi, que interpreta impecavelmente o carteiro Mario, deixou de fazer uma cirurgia do coração para terminar as filmagens e morreu alguns dias após o término. O ator francês Philippe Noiret, que interpreta Neruda, foi dublado o filme inteiro por não saber falar italiano ou espanhol, como já havia acontecido em Cinema Paradiso (outra boa recomendação de filme). O filme conta, ainda, com a espetacular trilha sonora de Luis Bacalov:

A história é muito bem contada, o enredo é rico e bem aninhado, não há pontas soltas na história e tudo é precisamente colocado. Como era de se esperar, a narrativa é envolta em metáforas, ao melhor estilo Pablo Neruda. Mesmo para quem nunca leu a obra deste poeta, deve se apaixonar com o filme. Mas do que metáforas, o filme abusa de paisagens belíssimas da Itália, impondo um pouco do rústico (habitantes locais da pequena ilha italiana) e o bucólico (como o local onde passa a viver Pablo). O jeito italiano de ser das personagens (com direito a gestos e tudo) é um show à parte. O filme é classificado como comédia dramática, mas poderia levar a simples alcunha de poema!

A história começa com a relação entre Mário e seu pai, um pescador local, que pede a seu filho que vá procurar urgentemente um emprego. Como tinha uma bicicleta, aceitou o emprego de carteiro para entregar cartas exclusivamente a um morador, que estava afastado de todo o restante da população — um certo poeta chileno exilado. Mário já havia ouvido falar de Neruda, principalmente em relação à sua fama com as mulheres. Ao entregar as cartas, percebe a predominância de cartas femininas e começa a ler poemas de Pablo, e o chama de ‘o poeta do amor’. Seu chefe repreende Mário e chama Neruda de poeta do povo, pela sua vocação comunista, que em segundo plano, é um dos temas que aflige o enredo.

Ao ler um pouco de seus poemas, Mário se interessa ainda mais pelas metáforas de Neruda, e aos poucos vai trocando cada vez mais palavras entre uma entrega de carta e outra, e assim formando uma sólida amizade. Nesse meio tempo de entregas, Mário acaba conhecendo Beatrice e ficando perdidamente apaixonada pela jovem moça, filha da viúva dona do bar da cidade. Mário passa a se unir a Neruda para conquistar o coração da bela, cujo nome já foi retratado por Dante Alighieri (como diz Neruda).

Para notar um pouco da presença das metáforas dentro da história, pegarei o trecho em que a mãe de Beatrice, aborrecida de que sua filha esteja sendo cantada por Mário, decide tirar satisfações com Neruda (imagine ela como uma típica italianona, cheia de trejeitos e sotaque típico):

“– O que eu tenho para dizer é muito sério para falar sentada.

– Do que se trata, minha senhora?

– Já faz alguns meses que esse Mário rodeia minha estalagem. Este senhor anda de gracinhas com minha filha.

– Que foi que disse a ela?

<<A viúva cuspiu entre os dentes:>>

– Metáforas.”

Continuando a conversa, dispara:

“- A minha pobre Beatriz está se consumindo toda por esse carteiro. Um homem cujo único capital são os fungos entre os dedos dos pés cansados. Mas se os pés fervem de micróbios, sua boca tem o frescor de uma alface e se enreda como uma alga. E o mais grave, dom Pablo, é que as metáforas para seduzir minha menininha ele copiou descaradamente de seus livros.”

Em uma das cenas mais marcantes do filme, Pablo vai repreender Mário por ter pego um de seus poemas e posto como seu:

“– Não senhor! Uma coisa é eu ter dado de presente a você um par de meus livros, e outra bem distinta é que eu tenha autorizado você a plagiá-los. Além do mais, você deu a ela o poema que eu escrevi para Matilde.

– A poesia não pertence a quem a escreve, mas àqueles que precisam dela!

– Alegra-me muito essa frase tão democrática, mas não levemos a democracia ao extremo de submeter a uma votação dentro da família para saber quem é o pai.”

As diferenças entre o livro e o filme são muitas, e não se resumem apenas ao cenário. A principal mudança foi que no livro os detalhes políticos, principalmente em relação ao turbulento momento político do Chile, eram mais presentes. Além das metáforas, os nossos carteiro e poeta conversavam também sobre política, sobre o comunismo. No filme, esses detalhes são postos mais de lado, embora em alguns momentos apareça com significativo destaque, sendo importantíssimo para o desfecho da narrativa, que por sinal é um dos mais bonitos que eu já assisti. O lirismo mostra-se presente do início ao fim da trama. Recomendo assistir e ler a história, ainda que possuam os mesmos elementos e alguns diálogos idênticos, acredito que os dois sejam complementares.

No começo do filme, Neruda diz que o ser humano não tem compromisso com a simplicidade e a complexidade. O diretor, entretanto trabalha muito com esses conceitos, a simplicidade do carteiro (e do povo daquela ilha) é posto em contraste com a complexidade de Neruda, um homem tão compromissado mas que ao mesmo tempo se sente atraído por aquele povo. Na discussão entre o poeta do povo e o poeta do amor, o filme retrata Neruda com o poeta do amor ao povo. A amizade entre duas personagens socialmente diferentes, até em termos de formação, é um dos motores da narrativa, e torna os diálogos riquíssimos. É muito fácil se identificar com Mário, é como se nós estívessemos ao lado do grande mestre Pablo, e por vezes, Mário faz de suas palavras as nossas. Assistir ao filme, é como passar um pouco mais de uma hora e meia ao lado de Neruda.

Confesso a vocês que nunca fui muito fã de poesia, mas ao assistir a este filme, passei a ler alguns livros do Pablo Neruda e hoje ele é um dos meus autores preferidos. Entre o povo e o amor, digo que para mim, Pablo foi mais do que um poeta, foi o cronista do mundo.

Originally published at www.escrevarte.com.br on August 6, 2014.

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Bruno Oliveira
Reflexões

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.