Mais arminiana que o próprio Armínio?

Cléber Zavadniak
Reformados
Published in
4 min readApr 4, 2015

No dia 15 de março um leitor do Reformados comentou, via Facebook, sobre o ponto 9 de um artigo que publicamos, que era uma lista escrita por Aiden Wilson Tozer, chamada “verdades cristãs”. O ponto em questão diz:

9. Se o barro não se entregar totalmente, o oleiro nada pode fazer.

E o comentário do jovem leitor foi:

E essa frase 9 aí? Mais arminiana que o próprio Armínio.

Eu estava escrevendo a resposta direto no Facebook, mas (1) ela estava bem grande e (2) achei que outras pessoas poderiam tomar algum proveito lendo-a, então achei melhor publicar no próprio site. Ei-la:

Lucas, é verdade que, à primeira vista, esse ponto parece algo bem “arminiano”. Mas é de se levar algumas coisas em consideração:

1- É natural dos pregadores instar as pessoas a fazerem algo, mesmo que elas não o possam fazer. Vide sermões de Spurgeon ou Lloyd-Jones em que o apelo principal é para que as pessoas creiam. “Creia em Cristo”, o pregador diz, mas daí nada se infere que o mesmo acredite que o descrente possa fazê-lo por suas próprias forças. Pode-se ir mais a fundo citando o próprio Jesus Cristo, que, “depois que João foi entregue à prisão, veio para a Galiléia, pregando o evangelho do reino de Deus e dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho.” (Marcos 1:14–15). Se Jesus clamando aos quatro ventos “arrependei-vos” não é “arminiano”, então Tozer clamando aos crentes “entreguem-se totalmente” (ecoando até o rogo de Paulo em Romanos 12) não me parece sê-lo também.

2- É interessante notar a palavra “totalmente”, e daí eu sugiro fortemente a leitura da excelentíssima série de sermões de autoria de Andrew Murray, compilada sob o título “Absolute Surrender”. Eu mesmo traduzi para o português uma parte dessa obra (“Rendição Absoluta), e você pode baixá-la clicando aqui: Andrew Murray: Rendição Absoluta. Ao mesmo tempo, já foi postado um artigo no Reformados citando outro excelentíssimo autor, o querido J. C. Ryle, chamado “todos os seus ídolos quebrados exceto um”, com um trecho do livro “Santidade”. Leia. Acredito que tanto Tozer quanto Murray e Ryle tinham algo semelhante em mente quando escreveram, cada um, a sua obra. A questão em si é o combate à “rendição condicional” ou à “rendição incompleta”. Ou, citando a Palavra de Deus mais diretamente, é um apelo contra a situação do “homem de coração dobre”, do que quer “servir a dois senhores”, do homem de “duplo ânimo” (ou, numa tradução mais literal, de “alma dividida”).

3- O apelo à rendição absoluta (ou “entregar-se totalmente”) é, na sua forma mais básica, um apelo à santificação. E aí entramos em um terreno repleto de debates mas no qual, de acordo com o entendimento tradicional da Igreja de Cristo, há participação do homem. Nós, que aceitamos as doutrinas da graça como verdadeiras, temos, muitas vezes, a tendência de sermos demasiadamente radicais com relação à soberania de Deus, não que tal soberania não seja absoluta e verdadeira, mas mostra-se, para alguns, algo muito difícil de compreender, que no meio de “tanta soberania” (que faz com que Paul Washer, dizendo, em figura, que Jesus Cristo mete o pé na porta do coração do descrente e entra quando quiser, nos coloque um sorriso no rosto (“My friend, Jesus is Lord of your heart and if He wants to come in, He will kick the door down.”)), possamos crer que alguma coisa dependa do homem em sua vida com Deus. Assim, se o ponto 1 não for suficiente para convencê-lo de que os pregadores instam seus ouvintes, sim, a fazerem algo que não lhes é possível por si próprios (tendo como exemplo o próprio Salvador), há ainda muita discussão a ser feita antes de carimbar o item 9 da lista do Tozer como “arminiano”.

4- De qualquer forma, Tozer não era um pregador reformado! E isso não é maravilhoso? Oh, que Deus nos ensine a cada dia a reconhecer nossas próprias limitações! Que nos atenhamos à verdade, que a busquemos e que, nessa batalha, não ataquemos quem NÃO É nosso inimigo! Aiden Wilson Tozer tinha uma visão soteriológica um tanto singular, tendendo muito mais para um ponto de vista arminiano, de fato. Entretanto:

a) Dadas as explicações dos pontos 1 e 2, é evidente que, ao dizer o que disse no ponto 9 do artigo que postamos, trata-se do tema “santificação”, não “salvação”.

b) Tozer não parece ter posicionado-se positivamente ao lado de “arminianos ferrenhos”. A impressão que temos ao analisar suas obras e seus pontos de vista é que ele era temeroso de entrar em tais assuntos com muita convicção (como se soubesse tudo a respeito). Sinceramente, parece-me o caso de que, simplesmente, não aprouve ao Espírito Santo revelar-lhe mais profundamente a “mecânica” soteriológica, e é admirável que Tozer tenha, pelo que parece, respeitado esses limites. Quem dera outros pregadores também se abstivessem de assuntos sobre os quais nada ou pouco lhes foi revelado. É fácil nos deixarmos levar pelo “efeito manada”. Mas os crentes verdadeiros são caracterizados, entre outras coisas, pelo “domínio próprio” (Gálatas 5:22 / “temperança”).

Se alguém ficar imaginando quais seriam os motivos de tal decisão de Deus o Espírito Santo, eu digo que uma possibilidade interessante é justamente a de que foi para ensinar a todos nós que o Espírito Santo age como quer e quando quer, da sua maneira e conforme lhe aprouver. Nossa regra para provarmos os espíritos não é “essa pessoa crê nos 5 pontos do calvinismo?”, mas “isso está de acordo com a Palavra de Deus?”. Os dez itens da lista que publicamos, escritos por Aiden Wilson Tozer, estão de acordo com a Palavra de Deus? Estão! Então que Deus seja glorificado. Amém.

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