Rapadura é doce, mas não é mole

Vinicius Moraes
Regra da Casa
Published in
3 min readMar 13, 2018

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Entre rolinhos de canela e longas sonecas, muita coisa se passa na cabeça de Catatau, que já viveu uma vida pacata com seu irmão Beran, buscando mel e caça nos bosques e os vendendo nas feiras dos condados vizinhos.

A vida era uma eterna brincadeira, aprendendo sobre a floresta e como flechar o ponto certo de cada colméia, sempre sob o olhar cuidadoso de seu irmão. Seus olhos azuis e amigáveis e sua energia jovial vendiam muito bem as favas suculentas de mel para senhorinhas, que sempre riam com as façanhas que contava e encenava (sempre exageradas, é claro). Enquanto Beran contava troco, e com uma voz grave e serena, agradecia a clientela.

-E ENTÃO EU ACERTEI MINHA ADAGA BEM NA CABEÇA DA COBRA! DURANTE O BOT…

-Era um lagarto, e nem se quer venenoso, mas realmente a mira foi impecável.

Anos se passavam num instante em sua cabeça, a mira cada vez mais certeira, o trabalho cada vez mais chato, o tempo mais devagar, Beran mais cansado.

Ele não diz muito sobre esse período, mas em determinado momento Beran não fazia mais parte da jornada diária, como se entre uma árvore e outra Catatau se sentisse completamente sozinho, alguém que anda ao seu lado na multidão, e se perde nela. Mas ali não havia nada que confundisse sua visão, nenhum som, nada de estranho, a ausência daquela silhueta aterrorizou Catatau, as árvores subitamente eram inescaláveis, os animais o assustavam como nunca antes.
Catatau procurou, e procura até hoje, seu irmão e sua força.

Longe das florestas que um dia conheceu como a palma da mão, encontrou sustento, descobriu que com sua aparência inocente e jovial, era fácil engambelar as mesmas velhinhas que já foram suas clientes, que seu tamanho e agilidade o escondiam nas sombras tão bem quanto já o esconderam nas copas de árvores. Foram anos se adaptando a pedra fria, das grandes construções das cidades, e fazendo sua vida na margem da lei.

Mas um único erro bastou para que ele se embrenhasse no mato novamente, com tanta confiança foi pego por sua maior fraqueza. Seus olhos brilharam ao ver um entregador com uma sexta na mão, e ela cheirava a canela. Foi o gatilho pra que Catatau se aproximasse, tentasse surrupiar o conteúdo da sexta e sumir na multidão. Era isso que sua mente via, mas seus olhos vidrados no lanchinho não viram a pedra em que enfiou seu dedinho do pé, e tropeçou com a mão já dentro da sexta. Em segundos já haviam guardas com lanças apontadas para seu traseiro, e Catatau correu, pra fora da cidade pois sabia que nas masmorras o pão não era doce.

Fora do alcance dos guardas, parou, suspirou e olhou pra frente.

Eram árvores, uma floresta densa, que trouxe de volta todo terror, solidão e silêncio que o fizeram mudar de vida, talvez fosse esse o sinal, de um Deus ou de sabe lá o que mais, de que agora sua vida continuaria, e que ele encontraria algo.

Mal sabe Catatau, ele encontrará algo que nunca perdeu.

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