A NECESSIDADE DE AVANÇAR PARA UM ESTADO DESMILITARIZADO

  • Uma via de mão dupla: morte de e pela polícia
  • Artigo: desmilitarização e Segurança Pública
  • Entre Baixada e o Sumaré: banalização da morte da juventude negra
  • Caso Claudia Silva e a infeliz reafirmação dos autos de resistência
  • Caso Acari
  • Milícias e o Estado leiloado
  • Arbitrariedades no prédio da Caixa em Niterói
  • Maré: Pacificação e/ou domesticação militarizada?

Partindo da premissa que segurança pública é o resultado da articulação de diversas políticas sociais visando a defesa, garantia e promoção da liberdade, nos últimos anos o debate pouco avançou no sentido de superar a visão que a política de segurança restringe-se à questão policial e à matéria prisional. Um estado cheio de prisões e repleto de policiais não é um estado seguro, muito menos livre.

Hoje as estatísticas do país, e em especial do Estado do Rio de Janeiro, confirmam que somos governados por um olhar militar que desenha “corredores de segurança” para garantir a circulação das mercadorias, conservar os bairros nobres da metrópole e proteger os trechos escolhidos para investimentos. O resultado é de genocídio. Em 2013 foram registrados 50.806 homicídios, sendo 4.745 só no Estado do Rio de Janeiro, ficando atrás apenas da Bahia em números absolutos.

Decoração de ruas na Maré. Foto: Renata Souza

Vale destacar que a lógica do estado militarizado é justificada para garantir a “libertação” de comunidades/periferias pobres do jugo dos “traficantes” das selecionadas drogas tornadas ilícitas. Com efeito, é exatamente a proibição a determinadas drogas tornadas ilícitas o motor principal da militarização das atividades policiais, seja no Rio de Janeiro, no Brasil, ou em outras partes do mundo.

A “guerra às drogas” não é propriamente uma guerra contra as drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quaisquer outras guerras, é sim uma guerra contra pessoas. Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, os marginalizados, os negros, os desprovidos de poder, como os vendedores de drogas do varejo das favelas do Rio de Janeiro, demonizados como “traficantes”, ou aqueles que a eles se assemelham, pela cor da pele, pelas mesmas condições de pobreza e marginalização, pelo local de moradia que, conforme o paradigma bélico, não deve ser policiado como os demais locais de moradia, mas sim militarmente “conquistado” e ocupado[1].

Ressalta-se que a militarização das atividades policiais não é apenas uma questão de polícias. Não são apenas as polícias que precisam ser desmilitarizadas. Antes disso, é preciso afastar a “militarização ideológica da segurança pública” [2], amplamente tolerada e apoiada até mesmo por muitos dos que hoje falam em desmilitarização. A necessária desmilitarização pressupõe uma nova concepção das ideias de segurança e atuação policial que, afastando o dominante paradigma bélico, resgate a ideia do policial como agente da paz, cujas tarefas primordiais sejam a de proteger e prestar serviços aos cidadãos. A prevalência dessa nova concepção não depende apenas de transformações internas nas polícias e na formação dos policiais. Há de ser, antes de tudo, adotada pela própria sociedade e exigida dos governantes.

É necessário superar o estigma que se reproduz nos debates sobre a desmilitarização no Brasil. Concentrando-se na ação de policiais, especialmente policiais militares, deixa-se intocada a atuação incentivadora do Ministério Público e do Poder Judiciário, de governantes e legisladores, da mídia, da sociedade como um todo. Concentrando-se em propostas de mera reestruturação das polícias, silenciando quanto à proibição e sua política de “guerra às drogas”, deixa-se intocado o motor principal da militarização das atividades policiais.

Assim, de acordo com os dados da 8ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública[3], entre 2008 e final de 2012, os policiais brasileiros mataram, em serviço e fora, 11.197 pessoas, uma média de seis por dia. A pesquisa revela ainda que o número de policiais mortos chegou a 490 no ano passado, chegando ao marco de 1.170 policiais mortos desde 2009, uma média de 1,34 por dia, sendo que 75,3% desse total foram mortos fora de serviço. O estado onde mais policiais foram mortos, assim como em 2012, foi o Rio de Janeiro (104).

O documento ainda aponta que as custas para o Brasil é equivalente a 5,4% do Produto Interno Produto (PIB). No ano de 2013, o montante atingiu R$ 258 bilhões[4]. A maior parte deste valor, R$ 114 bilhões, é resultado justamente da perda de capital humano, além disso, entram na conta dos custos da violência R$ 39 milhões de gastos com contratação de serviços de segurança privada, R$ 36 bilhões com seguros contra roubos e furtos e R$ 3 bilhões com o sistema público de saúde. A soma destas despesas, que chegou a R$ 192 bilhões em 2013, ou 3,97% do PIB, é classificada no estudo como “custo social da violência”. Completam os custos da violência no país os R$ 4,9 bilhões para manter as prisões e unidades de cumprimento de medidas socioeducativas e os investimentos governamentais de R$ 61,1 bilhões em segurança pública.

Os dados e os gastos com a segurança pública que estamos traçando não correspondem a um Estado desmilitarizado, o qual devemos almejar. As propostas que tramitam no Congresso Nacional, detentores da responsabilidade de legislar sobre esse assunto, apontam para o aprofundamento desse quadro exposto. Nesse sentido, a aprovação da lei complementar (PLC nº 39/2014[5]) que cria o Estatuto Geral das Guardas Municipais que amplia os poderes das guardas civis, estendendo a elas o poder de polícia e também o porte de armas trata-se de um claro sinal do avanço do Estado policial. O Ministério Público Federal e os comandantes das Polícias Militares do país contestam a constitucionalidade desta lei.

Outro debate que pautou as candidaturas à presidência nesta última eleição refere-se ao equívoco da redução da maioridade penal. Na última década, o número de presos no Brasil dobrou. Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça, que levou em conta as pessoas que cumprem pena em prisão domiciliar, há 712 mil adultos encarcerados no país. Nossa população encarcerada só cresce mas isso não resultou na diminuição da violência, pelo contrário. Isso porque a causa da violência não está relacionada somente à “pena” que será aplicada a quem cometeu um crime, mas a todo o contexto socioeconômico do país. Além disso, todos nós sabemos que a prisão não melhora as pessoas nem a sociedade. Em resumo, o encarceramento é uma forma cara de tornar as pessoas piores.

Por isso, precisamos debater outras formas de responsabilização, como penas alternativas, mais baratas e mais eficazes — que já estão tendo sucesso em muitos países. Nossa juventude está morrendo. Anualmente são 30 mil jovens entre 15 e 24 anos no Brasil são vítimas de homicídio (85% são negros e 94% são homens). Somos o segundo país do mundo em número de mortes violentas de jovens. No Rio de Janeiro a cada 100 homicídios, 64 são de jovens negros.

Neste contexto, nossos esforços se concentram em manter nossa juventude viva e no banco da escola — não no banco dos réus. É muito importante sabermos que qualquer pessoa a partir de 12 anos que comete crimes já é responsabilizada, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê seis diferentes medidas socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; semiliberdade e internação. A responsabilização aplicada ao jovem e ao adulto que cometem crimes é diferenciada não porque o adolescente não sabe o que está fazendo — até mesmo uma criança de 10 anos sabe quando faz uma coisa errada — mas sim devido à condição de desenvolvimento em que ele se encontra e ao que a sociedade quer quando o responsabiliza: possibilitar a ele um recomeço de vida ou fazê-lo sofrer pelos erros cometidos. Devemos optar por um recomeço para nossos jovens.

Nesse capítulo apresentamos alguns casos emblemáticos que passaram pela CDDHC ao longo de 2014 e reafirmam o necessário debate sobre a desmilitarização do Estado; 1—Morte de policiais no Estado do Rio de Janeiro; 2 — Chacina da Baixada Fluminense; 3 — Assassinato da Cláudia Silva; 4 — Operações no Complexo de Acari; 5 — Milícias; 6 — Caso do prédio da Caixa e 7- Ocupação da Maré;

Uma via de mão dupla: morte da e pela polícia

Os dados disponibilizados pela 8ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública ajudam a esclarecer uma informação importante; a polícia que mais mata é também a que mais morre. Para cada quatro cidadãos mortos pela polícia em 2013, um policial é assassinado no Brasil. A matemática mostra que nesse ciclo da violência não há vencedores.

De acordo com especialistas, esses altos números preocupam por configurar “um presságio” de maiores níveis de violência num futuro imediato. Os dados apontam tanto para uma alta letalidade das ações da polícia como para o grande nível de risco ao qual os agentes da lei estão expostos no país. Em 2013, ocorreram ao menos 1.259 homicídios cometidos por policiais e 490 baixas nos quadros das polícias civil e militar em 22 Estados que forneceram dados a pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O pesquisador Ignácio Cano do Laboratório de Análise da Violência da Uerj atenta para o fato de que os policiais morrem mais quando estão de folga, em situação mais vulnerável. “Quanto mais mortes causadas pela polícia, mais policiais vão ser mortos quando estão trabalhando na segurança privada ou quando são surpreendidos nas áreas onde moram. Isso, por consequência, significa que a polícia vai matar mais depois, entrando num círculo vicioso. Uma lógica de guerra que nunca desapareceu no Brasil, mas algo que temos que combater e tentar manter sob controle”.

Gráfico — Vitimização de Policiais (2009–2013)

Os policiais brasileiros morrem 3 vezes mais fora do serviço do que em serviço. As causas dessa estatística podem ser várias, mas fundamentalmente a questão dos “bicos” é a maior causadora de mortes. É fundamental melhorar as condições salariais para que eles tenham menos necessidades de expor suas vidas ao risco de um trabalho sem condições efetivas de segurança.

É preciso considerar que a morte do policial em serviço é mais grave do que a vitimização fora dela; não pode haver aceitação natural à perda da vida de um policial. Nesse sentido, a CDDHC além de se solidarizar com os familiares tem posto sua equipe técnica a disposição dos familiares de policiais militares mortos em serviço.

A CDDHC concorda que um Estado no qual se aceita naturalmente que um policial perca sua vida em razão da sua profissão está muito próximo da barbárie. É preciso acabar com o estigma que a bandeira dos direitos humanos não está a serviço também do corpo policial. Defender a desmilitarização é defender a melhoria das condições de formação e trabalho dos policiais e seus familiares.

A CDDHC atuou nos seguintes casos, em ordem cronológica:

1) Morte da Policial Militar Alda Rafael Castilho

Em fevereiro de 2014, a policial militar Alda Rafael Castilho, lotada na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), morreu e outras três pessoas ficaram feridas após troca de tiros na comunidade Parque Proletário, na Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Município do Rio de Janeiro. Alda tina 27 anos e cursava faculdade psicologia, Morava na Baixada Fluminense, em Duque de Caxias, com sua mãe, irmã e sobrinha.

A CDDHC adotou os seguintes encaminhamentos referentes ao caso:

  • Garantiu atendimento psicológico para os familiares no posto de saúde mais próximo de sua residência;
  • Articulou o atendimento dos familiares no Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro;
  • Acompanhou os familiares no atendimento jurídico junto ao escritório de advocacia particular que assumiu o caso;

2) Morte do Policial Militar Rodrigo Paes Leme

Em março de 2014, o policial militar Rodrigo Paes Leme, 33 anos, foi morto em uma operação na comunidade Nova Brasília, no Conjunto de Favelas do Alemão, após ser surpreendido por suspeitos armados. Em 30 dias foram mortos três policiais no Complexo do Alemão em confrontos armados.

Rodrigo de Souza Paes Leme era Policial Militar há três anos. Ele trabalhou na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Providência e estava na UPP Nova Brasília havia quatro meses. Rodrigo tinha 9 filhos.

A CDDHC adotou os seguintes encaminhamentos referentes ao caso:

  • Atendimento presencial com a última companheira de Rodrigo. Foi oferecido assistência psicossocial, mas a mesma estava sendo acompanhada pela corporação, o que não ocorre com as demais 8 mães de seus filhos;
  • Foi feito contato com as mães dos filhos do soldado. Algumas mães aceitaram a intermediação da CDDHC para garantir atendimento psicológico próximo a suas residências;
  • Uma mãe de um dos filhos pediu revisão do seguro de vida de Rodrigo e foi encaminhada para o Núcleo de Família da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

3) Morte do Policial Militar José Ricardo Valença Moniz

O sargento da PM José Ricardo Valença Moniz foi encontrado morto em casa, em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por volta das 10h do dia 11 de julho de 2014. Segundo informações dos policiais do 14º BPM (Bangu), ele foi surpreendido por criminosos que efetuaram os disparos e fugiram do local. O policial era lotado no 2º Comando de Policiamento de Área, casado e tinha uma filha de 2 anos e 7 meses.

A CDDHC adotou os seguintes encaminhamentos referentes ao caso:

  • Atendimento presencial aos irmão de José Ricardo;
  • Solicitação da cópia e acompanhamento do inquérito.

DESMILITARIZAÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA

Por João Trajano Sento-Sé[6]

Em pesquisa realizada entre os anos de 2009 e 2010 com policiais militares do Rio de Janeiro, 77,9% dos praças, num universo de 2267 entrevistados, afirmaram ser favoráveis à desmilitarização da Polícia Militar. A mesma pergunta teve entre oficiais a resposta negativa de 66% entre 109 respondentes. Nesse mesmo universo de praças que são maciçamente favoráveis à desmilitarização, 59,6% consideraram que o mais importante para atuar em favelas é dominar técnicas de confronto armado. A mesma posição teve a adesão de menos da metade dos oficiais, vale dizer, 46% dos respondentes desse segmento. Num bloco qualitativo da mesma pesquisa, ambos os segmentos, praças e oficiais, julgaram muito importante a utilização de armas pesadas na rotina do trabalho policial. Embora restrita à corporação fluminense, é difícil imaginar que os resultados seriam muito diferentes em outros centros.

As duas primeiras impressões frente à apresentação desses dados, escolhidos um tanto aleatoriamente entre tantos são: 1) existem na Polícia Militar do Rio de Janeiro ao menos duas corporações e a clivagem que as divide é o marco de entrada institucional; 2) há uma grande confusão quando o assunto é desmilitarização da polícia e o mesmo ator pode defender posturas contraditórias entre si. Ambas as impressões são corretas e ilustram bem uma das razões para termos avançado tão pouco na matéria.

A despeito dos anos em que o imperativo da desmilitarização da segurança pública está no debate público, os avanços são quase nulos. Os desdobramentos desse fracasso se traduzem de diferentes formas, encontrando sua expressão mais dramática nas taxas de letalidade dolosa que se perpetuam, ao longo dos anos, em patamares altíssimos. Pior ainda, se perpetuam com uma colaboração expressiva de óbitos perpetrados pelas agências de segurança cujo trabalho deveria ter por principal foco reduzi-las. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2014), as polícias brasileiras foram responsáveis, entre 2009 e 2013, por nada menos do que 11197 mortes. Somente em 2013, as forças policiais provocaram em média no Brasil 6 mortes por dia. Por outro lado, nesse mesmo ano 490 policiais foram mortos, o que representa um número altíssimo. É preciso reconhecer que todos, policiais e população, estão perdendo com a perpetuação de modelos arcaicos e ineficazes, além de indefensáveis política e moralmente.

Partir de um lugar comum talvez ajude na definição de um rumo a ser adotado. Suponhamos que todos os atores interessados aceitassem como ponto de partida de discussão o conteúdo da PEC 51, proposta de emenda constitucional encaminhada ao Senado e sujeita à apreciação do Legislativo Federal, que introduz um conjunto de mudanças e qualificações no tratamento do campo da segurança pública. Sabemos que há nessa proposta várias iniciativas e que todas, sem exceção, são sujeitas a polêmicas. Será que isso representa a impossibilidade de se estabelecer consensos em torno dela? O que há nessa proposta que poderia gerar alguns pontos de convergência que, ainda que precários, nos tire da inércia à que nos autocondenamos?

Não é o caso de discutir aqui ponto a ponto. O documento é público e está disponível para quem quiser dele tomar ciência. A proposta aqui é divisar princípios orientadores que, para além da contenda militarização/desmilitarização, possam forjar consensos. Em outras palavras, sugerimos que se olharmos algumas de suas formulações à luz dos princípios que as orientam, talvez possamos produzir um consenso básico focado na produção de mudanças urgentes. Há, no mínimo, três princípios com tal rendimento.

O primeiro deles é de natureza técnica e incide sobre propostas como a instauração do ciclo completo de polícia que, ao menos em tese, tornaria o trabalho policial mais eficaz. É evidente que tal suposição pode não se concretizar na prática, sobretudo se tivermos em mente que, em se tratando de um sistema, qualquer ação isolada depende da combinação de uma série de outras iniciativas para ter o efeito esperado. A mesma razão que nos levaria a suspeitar da eficácia dessa iniciativa pode e deve ser aventada para seu oposto: por que o ciclo completo não impactaria positivamente o trabalho policial? Afinal, ele implica necessariamente em redefinição de mandatos, responsabilidades e comprometimentos. Dado que lidamos com sérios problemas em rigorosamente todas as esferas do sistema de justiça criminal, por que não tentar medidas para redefini-lo como um todo?

As resistências observadas nas corporações policiais são mais do que compreensíveis. Todas as corporações são refratárias a mudanças. Essa não é uma exclusividade policial. Assumir que um princípio de natureza técnica, que tenha como condição a maior qualificação, responsabilidade e envolvimento dos profissionais de polícia não beneficia apenas os cidadãos que desejam legitimamente fruir da segurança como um bem próprio ao pacote de direitos civis que lhes cabem. As mudanças daí decorrentes tendem a ser benéficas também para o profissional de polícia a quem sistematicamente são negados reconhecimento e prestígio social. Esse último é um ponto pouco explorado.

Se o trabalho policial deve ser abordado como atividade altamente especializada, que implica elevado grau de responsabilização, não podemos negligenciar sua dimensão política. Esquecê-la equivale a, em certo sentido, amesquinhá-la. Embora observável em vários pontos da proposta, a dimensão política pode ser surpreendida de forma mais acentuada na proposta de criação de ouvidorias externas e independentes. Por sua criação, pretende-se não somente amparar o exercício do controle da sociedade sobre um campo de atuação do Estado, mas proteger, simultaneamente, os profissionais desse campo dos abusos institucionais de que são recorrentemente objeto.

O controle externo evidentemente se volta para o profissional e seu desempenho, mas seu principal foco são as instituições. Embora a maior parte das atividades no sistema de justiça criminal (polícias, sobretudo) implique alguma dose de risco, é evidente que nas escolhas políticas que têm sido feitas sistematicamente no interior dos palácios de governo, a vida e a saúde desses profissionais são recorrentemente negligenciadas. Não à toa, em geral, o aumento de mortes perpetradas por agentes policiais está acompanhado pelo aumento da vitimização desses mesmos agentes, dentro ou fora do serviço. Não é de surpreender, como ensina Michael Walzer (2003), num contexto de guerra a vida do opositor não vale muito menos do que a vida do seu próprio soldado. A omissão desse dado tem preservado intacta uma parte das trincheiras dos defensores da lógica da guerra e da militarização da segurança pública: a negligência para com a vida humana em geral, a dos policiais, inclusive.

Temos, então, dois termos sob os quais pretendemos fundar um consenso mínimo sobre a importância de avançar em propostas de desmilitarização da segurança pública, nas condições sugeridas pela PEC 51. Os dois princípios, apenas para recapitular, são a admissão da natureza técnica do trabalho policial, que lhe é específica e, consequentemente, diferenciada de uma outra especialização, relativa à guerra, e a afirmação de seu componente político, que traz em si o reconhecimento de que se trata de um campo chave para afirmação de direitos e deveres cidadãos, incluídos aí os próprios profissionais de polícia. Temos, ainda, uma terceira dimensão, a saber, as implicações administrativas peculiares das instâncias de provimento de tão complexo serviço.

A importância de redimensionamento administrativo do sistema está explicitada na PEC 51, quando ela estabelece prerrogativas dos entes federados e as relaciona com prerrogativas igualmente inalienáveis da União. Quem conhece um pouco da história política brasileira sabe bem que a distribuição de poderes e responsabilidades políticas e administrativas entre os três níveis de institucionalidades estatais (Municípios, Estados e União) é um dos pontos mais polêmicos de nossa trajetória, desde os tempos imperiais.

A volúpia descentralizadora combinada com a timidez política e com a inexperiência em lidar com a segurança pública de uma perspectiva democrática levou os legisladores de 1988 a produzirem, com o artigo 144, uma peça que é, a um só mesmo tempo, omissa, permissiva e conservadora. Ao prever a definição de diretrizes, doutrina e parâmetros de formação como prerrogativa da União, preservando a autonomia administrativa dos Estados para que estruturem suas forças segundo conveniências e singularidades regionais, a PEC 51, concedamos, atenua, ainda que não necessariamente erradique, os males decorrentes das limitações do poder constituinte. Encontra, para o caso específico da segurança pública, o ponto de equilíbrio, sempre e necessariamente precário, entre controle político e autonomia administrativa de que tanto tratam juristas, historiadores e cientistas políticos brasileiros. Se estamos fundamentados teórica, normativa e historicamente para o reconhecimento da relevância de buscar tal ponto no que diz respeito às questões jurídicas e políticas atinentes ao Estado brasileiro, encaremos no que se encontra na PEC 51 uma alternativa plausível.

Temos, então, três eixos estruturantes para iniciar um diálogo realmente propositivo que, simultaneamente, ampara a plausibilidade das propostas contidas na PEC 51. Um último ponto, enfim, deve ser destacado. Um leitor atento há de ter percebido que após o parágrafo inicial não foi feita nesse texto qualquer alusão direta à Polícia Militar. O mesmo ocorre com o projeto de emenda. Isso é relevante porque explicita o princípio que atravessa uma orientação para mudanças efetivas: a desmilitarização se refere à segurança pública como um todo, não sendo um problema exclusivo das polícias militares. É verdade que as polícias militares são as maiores “vítimas” da colonização operada pelas Forças Armadas no campo da segurança pública, mas o “estrago” as extrapola. Desse modo, e tendo em vista que em lugar de temê-la profissionais de polícia e cidadãos comprometidos com a universalização do acesso a benefícios básicos do direito devem encarar a desmilitarização como uma rota para a melhoria dos padrões de coexistência coletiva na sociedade brasileira, poderíamos assumir os três eixos indicados como princípios básicos para esse fim.

Dado o passo necessário da desmilitarização, nos termos anteriormente propostos, entraremos numa outra escala de discussão: a interpelação dos poderes legislativos e, sobretudo, judiciário acerca de suas responsabilidades e obrigações nesse campo. Omissas, essas instâncias têm estado aquém de seus deveres enquanto poderes constitucionais instituídos para prover proteção aos direitos civis dos cidadãos brasileiros. Essa será outra longa e árdua tarefa para a qual uma nova gramática deverá ser construída.

REFERÊNCIAS:

8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública www.forumseguranca.org.br, 2014.

SENTO-SÉ, João Trajano. Condições de trabalho e formação das polícias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FAPERJ/LAV-UERJ, 2010.

WALZER, Michael. Guerras justas e injustas. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2003.

ENTRE A BAIXADA E O SUMARÉ: BANALIZAÇÃO DA MORTE DA JUVENTUDE NEGRA

Sete jovens foram baleados em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, na noite do dia 13 de outubro de 2014, no Rio de Janeiro. A chacina deixou cinco mortos: três morreram no local enquanto outros dois morreram durante atendimento médico, dos dois sobreviventes, um adolescente de 12 anos foi internado e outro de 14 anos conseguiu fugir do local do crime.

O jovem socorrido foi encaminhado para o Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, em Saracuruna. Segundo a unidade, ele foi submetido imediatamente a uma cirurgia e foi internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Ainda segundo o hospital, a vítima apresentava estado de saúde estável, estando lúcido e orientado.

A chacina ocorreu no Bairro Parque Paulista, por volta de 21h. O caso está sendo investigado pela Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense. A Polícia Civil não tem informações sobre o caso. Mas relatos nas redes sociais dizem que os jovens foram atacados por homens encapuzados e fuzilados em um muro.

Outro episódio que marcou junho de 2014: a perseguição a dois adolescentes teve início por volta de 9h30 do dia 11 do mesmo mês, na esquina da Avenida Marechal Floriano. Os cabos Vinícius Lima Vieira e Fábio Magalhães Ferreira, do 5º BPM (Praça da Harmonia), teriam visto um dos rapazes passando correndo atrás de um ônibus. Um dos PMs desceu do carro e, cinco minutos depois, um dos jovens foi capturado, a 50 metros da DPCA. Após alguns minutos, o segundo adolescente também foi detido.

Depois de colocar dois adolescentes que supostamente tinham praticado um roubo dentro da viatura 52–1651, as imagens do veículo mostram um dos cabos da Polícia Militar rindo e gesticula em direção à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), no Centro, para onde os menores deveriam ter sido levados. As imagens das câmeras e do GPS instalados na viatura mostram ainda que o motorista e outro PM, no entanto, levaram os garotos para o Morro do Sumaré.

Imagem retirada das câmeras da viatura da Polícia Militar

Já no Sumaré, os menores foram colocados deitados no chão e, segundo o depoimento do sobrevivente na Delegacia de Homicídios, um dos cabos disse: “Você não vai mais andar” e disparou contra seu joelho. O adolescente foi ainda baleado nas costas e, fingindo-se de morto, conseguiu escapar. Já Mateus Alves dos Santos, de 14, levou tiros na cabeça, peito e perna e morreu[7].

Os episódios ocorridos confirmam que a cada nova divulgação dos dados sobre homicídios no Brasil a mesma informação é dada: morrem por homicídio, proporcionalmente, mais jovens entre 15 e 29, negros e pardos no país. Além disso, vem se confirmando que a tendência é um crescimento desta desigualdade nas mortes por homicídios. Segundo dados expostos pelo 8º edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 84% das mortes por agressão em 2013 estão concentrada na faixa etária entre 15 a 29 anos no Estado do Rio de Janeiro.

TABELA · Mortes por agressão, por raça/cor em 2013

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE; Ministério da Saúde/DATASUS; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Tabela — Mortes por agressão, por sexo em 2013

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE; Ministério da Saúde/DATASUS; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Tabela — Mortes por agressão, por faixa etária em 2013

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE, Ministério da Saúde/DATASUS; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O problema a ser enfrentado é bem complexo. Até hoje as iniciativas que dialogam com este público de juventude negra estão em dissonância com elementos fundamentais para o êxito de uma ação que vise combater os homicídios. Para estas políticas, quando há orçamento, não há reconhecimento de diferenças; quando o projeto aborda a juventude negra, não há recursos. E quando há reconhecimento com recursos, não existe foco nos jovens mais vulneráveis.

Assim, esta agenda deve ser trabalhada pelo poder público a partir de duas concepções distintas de políticas públicas e de uma noção convergente de direitos, como o direito à vida de certa juventude (a juventude negra). Além disso, deve ser elaborada a partir do reconhecimento de diferenças, contudo o Estado Brasileiro através de seus quadros burocráticos, muitas vezes reluta em fazê-lo.

A CDDHC adotou os seguintes encaminhamentos referentes aos casos apresentados:

Caso Sumaré

  • Acompanhamento dos procedimentos da Delegacia de Homicídios;
  • Atendimento presencial aos familiares pela CDDHC;
  • Orientações jurídicas e psicossociais para os membros da família;
  • Mobilização com Meu Rio, parceiro da sociedade civil, para cobrar o cumprimento da Lei que exige a instalação de câmeras em todas as viaturas do Estado;

Caso Chacina da Baixada Fluminense

  • Atendimento aos familiares de vítimas;
  • Encaminhamento dos adolescentes sobreviventes para programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçadas de morte;
  • Acompanhamento dos procedimentos da Delegacia de Homicídios;

CASO CLÁUDIA SILVA E A INFELIZ REAFIRMAÇÃO DOS AUTOS DE RESISTÊNCIA

Eram cerca de 9h de um domingo, dia 16 de março, quando uma viatura do 9º BPM (Rocha Miranda) descia a Estrada Intendente Magalhães, no sentido Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio, com o porta-malas aberto. Depois de rolar lá de dentro e ficar pendurado no para-choque do veículo apenas por um pedaço de roupa, o corpo de uma mulher foi arrastado por cerca de 250 metros, batendo contra o asfalto conforme o veículo fazia ultrapassagens. Apesar de alertados por pedestres e motoristas, os PMs não pararam. Um cinegrafista amador que passava pelo local registrou a cena num vídeo.

A mulher arrastada era Claudia Silva Ferreira, de 38 anos, baleada durante uma troca de tiros entre policiais do 9º BPM e traficantes do Morro da Congonha, em Madureira, enquanto ia comprar pão. Em depoimento à Polícia Civil, os PMs disseram que a mulher foi socorrida por eles ainda com vida, e levada para o Hospital Carlos Chagas, em Marechal Hermes, mas não resistiu. Já a secretaria Estadual de Saúde informou que a paciente já chegou à unidade morta. Ela levou um tiro no pescoço e outro nas costas. Dias depois a Polícia Civil informou que Cláudia foi morta em função dos disparos pelos quais foi atingida.

Esses são apenas alguns dos inúmeros casos de “mortes em confronto” na lista do batalhão. Outras 57 pessoas morreram em condições semelhantes nos últimos dois anos (2012 e 2013) na área do 9º BPM, que é a 4ª com maior número de autos de resistência. De acordo com dados do ISP, o batalhão fica à frente de outras 36 unidades do Estado. Vale ressaltar que a bordo do veículo haviam três policiais do batalhão que historicamente é apontado como um dos mais violentos do Estado e cujos integrantes chegaram a ser conhecidos como “Cavalos Corredores” na década de 90 — época da Chacina de Vigário Geral.

Três semanas antes da morte de Claudia, no dia 23 de fevereiro, outros agentes da unidade já haviam se tornado centro de um outro caso de violência policial: um jovem inocente foi morto a coronhada em Campinho, na Zona Norte do Rio. Na ocasião, quatro PMs foram afastados e presos internamente pela morte do adolescente, de acordo com a corporação.

Antes disso, a morte de dois rapazes na comunidade Bateau Mouche já tinha causado revolta em moradores. No início de fevereiro, os jovens, que não tinham passagem pela polícia, foram baleados por PMs do 9º BPM. Os assassinatos foram registrados como homicídio em intervenção policial — antes chamado de auto de resistência (morte em confronto com a polícia). Familiares garantem que a dupla não tinha envolvimento com o tráfico e que as armas encontradas ao lado das vítimas foram “plantadas”.

Dezessete bairros e cerca de 30 mil registros de ocorrências por ano (desde furtos até homicídios), segundo dados oficiais. Essa é a realidade da região atendida pelo 9º BPM (Rocha Miranda), onde a guerra do tráfico de drogas faz moradores reféns. Apenas em 2013, a região registrou média de 82 ocorrências por dia de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP).

Conforme mencionado em relatórios e posicionamentos anteriores desta CDDHC, o auto de resistência é uma prática naturalizada; quem mora na favela e os próprios policiais sabem disso. O que deu errado no caso da Claudia é que se filmou e que era uma mulher, mãe de família. Se fosse jovem e negro não teria o mesmo impacto.

A CDDHC adotou os seguintes encaminhamentos referentes ao caso:

  • Atendimento aos familiares;
  • Encaminhamento para assistência jurídica;
  • Acompanhamento dos procedimentos adotados pela Polícia Civil;

ACARI

Nove homens foram mortos entre 15 de julho e 04 de agosto de 2014 na comunidade de Acari, no Rio de Janeiro, em consequência de operações da Polícia Militar. A última morte aconteceu no dia 04 de agosto, entre 16h e 17h, quando um homem com cerca de 30 anos, que era organizador de um evento local de forró, saiu para comprar gelo e foi baleado e morto. Moradores de Acari afirmam que após o término da Copa do Mundo, as operações da Polícia Militar aconteceram quase diariamente e chegaram a durar até 12 horas. As operações foram realizadas por diferentes unidades da Polícia Militar, tal como o 41º Batalhão da PM, a Tropa de Choque e o Batalhão de Operações Especiais (BOPE). Em geral, as operações aconteceram sem aviso e em diferentes horários (de manhã cedo, à noite ou de madrugada), e às vezes foram lideradas por veículo blindado, o chamado “caveirão”.

Mais de 80 moradores relataram diversos abusos por parte da polícia. Eles alegam que a polícia usa “chaves-mestras” para entrar nas casas sem qualquer aviso e sem mandados de busca, destroem pertences dos moradores e até furtam objetos e dinheiro. Os moradores também alegam que os policiais usam linguagem ofensiva, especialmente com as mulheres, às vezes agridem fisicamente os moradores, em diversas ocasiões com “tapas na cara”.

O uso de armas de fogo desnecessariamente ou de forma indiscriminada durante as operações policiais está colocando a vida de todos os moradores em risco e tem amplo impacto sobre a comunidade. Escolas e creches ficam fechadas durante os dias de operação. Em diversas ocasiões, mães com seus filhos nos braços ficaram em risco enquanto procuravam local para se abrigar, mas sem ter lugar para ir.”

A CDDHC adotou os seguintes encaminhamentos referentes ao caso:

  • Reunião junto com entidades da sociedade civil com moradores na localidade;
  • Encaminhamento das denúncias para Secretaria de Segurança;

MILÍCIAS E O ESTADO LEILOADO

“Além dos 48 reais mensais que tem de pagar para ter gás em seu barraco, I.S, 50 anos, paga 5 reais para poder resgatar a correspondência que chega endereçada a ela ou ao marido. O controle do fornecimento de gás, do correio, do sinal de TV a cabo, do transporte feito por vans e até mesmo sobre qual candidato ela deve votar é feito há dez anos por um mesmo grupo de milicianos”

Matéria publicada no site da Carta Capital, em 30 de agosto de 2014.[8]

Seis anos após a divulgação do relatório final da CPI das Milícias, realizada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, nenhuma política pública foi criada para enfrentar efetivamente o crescimento das quadrilhas. Além de indiciar 226 pessoas e pôr na cadeia os principais chefes dos bandos — entre eles deputados e vereadores -, a comissão propôs 58 iniciativas de caráter econômico e político para acabar com o poder dos milicianos, mas nada foi feito.

Não é à toa que o crime organizado expandiu seus negócios e manteve sua influência eleitoral, como mostrou um relatório divulgado pela Secretaria de Segurança Pública encaminhado ao Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE) em agosto deste ano. Em pelo menos 41 comunidades, somente candidatos autorizados por milicianos ou traficantes puderam fazer campanha.

No dia 12 de agosto de 2014, o TRE do Rio encontrou cestas básicas com uma relação de beneficiários e propaganda de candidatos do PMDB e do PSDB na associação de moradores das comunidades Águia de Ouro e Guarda, em Del Castilho, Zona Norte. De acordo com as informações divulgadas, a operação averiguou denúncias de formação de curral eleitoral por milícias. Dois meses atrás uma deputada estadual candidata à reeleição denunciou ter recebido ameaças de um homem armado quando colocava placas na comunidade Águia de Ouro. Ela chegou a afirmar que milícias cobrariam 100 mil reais de pedágio aos interessados em fazer campanha no local.

É preciso entender que milícia é máfia. Ao contrário do tráfico, ela tem projeto de poder político, controla de forma violenta currais eleitorais e ajuda a eleger parlamentares para ampliar sua influência. Os paramilitares em sua maioria são agentes do Estado que adotam o discurso da ordem e usam seu domínio territorial e econômico para barganhar politicamente e atuar dentro das estruturas de poder. Milícia não é o Estado paralelo, é o Estado leiloado.

Neste sentido, não é só uma ameaça à Segurança Pública, mas à própria democracia. Por isso, não basta prender.

É fundamental cortar os braços político e econômico das quadrilhas, que exploram o transporte alternativo, a agiotagem, a venda ilegal de gás, a instalação irregular de TV a cabo, a cobrança de taxas de segurança. Denunciado pela CDDHC já em 2012 e com grande exposição nos jornais deste ano, ficou comprovado que milicianos passaram a expulsar famílias beneficiadas pelo programa Minha Casa, Minha Vida para alugar os imóveis.

Neste ano, a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas (Draco) descobriu que alguns bandos se aliaram ao tráfico de drogas. Esse comportamento nunca ocorrera — os milicianos reprimiam violentamente o consumo de entorpecentes nas áreas que controlam. Em Rio das Pedras, na Zona Oeste, há um ponto de vendas na localidade de Pinheiros. Em Campinho e Itanhangá, na mesma região, os grupos arrendaram favelas para traficantes, segundo investigações da Draco.

As prisões são importantes devido ao perigo que os criminosos representam. O assassinato de cinco das seis testemunhas das investigações contra a milícia conhecida como Família É Nóis, de Duque de Caxias, é um exemplo disso e da fragilidade dos programas de proteção a testemunhas do Estado. Parte do grupo foi preso em 2010 e, após receber o direito de responder em liberdade, cometeu os homicídios. A única testemunha viva é o delegado Alexandre Capote, titular da Draco, responsável pelas investigações. A “Família É Nóis” foi descoberta e denunciada pela primeira vez pela CPI.

Mas é preciso ir além das detenções e adotar iniciativas que envolvam os governos municipal, estadual e federal. Por exemplo, o controle territorial é fundamental para o funcionamento dos negócios das quadrilhas. Neste sentido, é revelador que apenas uma favela comandada por milicianos tenha recebido UPP: o Batan, na Zona Oeste.

Da mesma forma, é urgente regulamentar a revenda de gás e ampliar a fiscalização através de convênio com a Agência Nacional de Petróleo; aplicar uma nova política de controle e incentivo fiscal ao transporte alternativo, com permissões de caráter exclusivamente individual, já que muitas cooperativas são controladas por milícias; criar uma comissão, integrada pela Secretaria de Segurança Pública e pela Polícia Federal, para fiscalizar as empresas que prestam serviços de segurança; e viabilizar através de incentivos a venda de pacotes populares de TV a cabo nas favelas.

Hoje, a Draco, principal responsável por enfrentar o crime organizado, tem uma estrutura reduzida e atua de forma heroica. A articulação entre as policiais Civil, Militar e Federal, o Ministério Público e o Poder Judiciário é urgente.

As milícias surgiram no governo Rosinha Garotinho (2003–2006), na Zona Oeste, e cresceram de forma assustadora na gestão de Sérgio Cabral. Elas extrapolaram a região e já atuam na Zona Norte, Baixada Fluminense e em municípios do interior. Cerca de 620 mil moradores de 370 comunidades são subjugados pela máfia.

Em 2014 a CDDHC recebeu 28 denúncias que envolvem a atuação de diversos grupos milicianos em diferentes partes do Estado; Recreio dos Bandeirantes, Piedade, Bairro Jardim Maravilha em Guaratiba, Nova Sepetiba, Paciência, Complexo do Alemão, Rio das Pedras, Praça Seca, Campo Grande, Itaguaí, Camorim/Jacarepaguá, Ilha do Governador, Parque Capivari em Duque de Caxias, São João de Meriti, Angra dos Reis e Itaguaí. As denúncias envolviam casos de assassinatos, expulsão de imóveis, ameaças e ocupação de terrenos.

CASO NITERÓI

No dia 23 de maio de 2014 várias delegacias e o Ministério Público realizaram uma operação no local conhecido como prédio da “Caixa Econômica”, no Centro de Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo informações oficiais, a operação foi em decorrência de uma investigação que corria sobre o suposto envolvimento de milícia no local, exploração sexual infantil e tráfico de drogas.

Foto: Giorgio Palmera

Segundo relatos dos presentes no prédio, no decorrer da entrada dos policiais nenhum deles apresentou mandado de busca e apreensão, estavam sem identificação e inúmeras prostitutas foram agredidas, com furto de seus pertences e violência sexual. De acordo com o relato das vítimas, todas as prostitutas foram postas no corredor do andar em que trabalhavam e ainda obrigadas a fazer sexo oral em um dos policiais presentes na operação.

Após serem levadas a 76º DP, aquelas mulheres que não quiseram prestar depoimentos, eram presas por desacato. Ainda segundo as mesmas, nenhuma das mulheres prostitutas foi levada por livre e espontânea vontade para a delegacia. Para aprofundar o drama das mulheres, há relatos de algumas delas tentaram dar queixa na Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher (DEAM) pela agressão por parte dos policiais, e lá foram informadas de que não poderiam registrar a queixa contra os policiais.

A CDDHC adotou os seguintes encaminhamentos referentes ao caso:

  • Visita ao prédio onde ocorreu a operação policial para buscar relatos mais precisos das denúncias apresentadas a CDDHC Alerj;
  • Acompanhamento dos inquéritos envolvendo as denúncias apontadas pelas prostitutas;
  • Realização de audiência pública em conjunto com a Comissão da Mulher no dia 04 de junho de 2014;
  • Encaminhamento do caso ao Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Arbitrariedades no Prédio da Caixa em Niterói

Foto: Leon Diniz

No dia 23 de maio, a Polícia Civil realizou uma grande operação no edifício número 327, na Avenida Amaral Peixoto, no Centro de Niterói. Os policiais interditaram os apartamentos dos quatro primeiros andares do imóvel, conhecido como Prédio da Caixa Econômica, onde prostitutas trabalhavam. A juíza Rose Marly, da 1ª Vara Criminal de Niterói, que autorizou a operação, argumentou no mandado de busca e apreensão que no local funcionaria um esquema de exploração sexual e que haveria risco de desabamento devido a problemas estruturais do edifício, apesar de a Defesa Civil municipal não ter sido acionada para confirmar a informação. As mulheres disseram que os policiais as agrediram e não apresentaram o mandado judicial. Algumas afirmaram que sofreram violência sexual. As prostituas também reclamaram que o delegado da 76ª DP (Centro) e a delegada da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) não quiseram registrar as queixas de agressão. Apesar do suposto risco de desabamento, somente os quatro primeiros andares, onde as prostitutas trabalhavam, foram interditados. Os outros sete pavimentos continuaram abertos. Com o fechamento dos apartamentos, centenas de mulheres ficaram sem ter onde morar, como a prostituta Joice Oliveira, 25 anos.

ENTREVISTA

Cerca de 300 policiais tomaram o prédio, fecharam a Avenida Amaral Peixoto, entraram no prédio sem mandado e sem se identificarem. Arrombaram as portas dos privês (apartamentos onde as prostitutas trabalham) que estavam em funcionamento e levaram cerca de 300 a 400 meninas num ônibus. Fizeram sexo oral nas meninas e bagunça nos apartamentos, reviraram tudo. Eram todos policiais homens, não tinha uma policial mulher. Passaram a mão na gente. — Joice Oliveira

MARÉ: PACIFICAÇÃO E/OU DOMESTICAÇÃO MILITARIZADA?

Por Marielle Franco[9] e Renata Souza[10]

Introdução

O conjunto de favelas da Maré, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi ocupado em abril de 2014 por forças militares de pacificação como estratégia da Segurança Pública para a realização da Copa do Mundo. Uma engenhosa operação envolveu mais de dois mil homens do Exército, da Marinha, da Força Aérea, além das polícias Civil e Militar. O local, que tem uma população de cerca de 130 mil habitantes de acordo com o Censo do IBGE de 2010, entrelaça as principais vias da cidade como a Avenida Brasil e as linhas Amarela e Vermelha, esta última leva ao aeroporto internacional. É inegável que há um imaginário social, articulado principalmente pelos meios de comunicação tradicionais, que o identifica como um lugar de extrema violência, miséria e banditismo. Tais estereótipos são enfatizados pelo Estado, que ao invés de estar ausente da Maré, como advoga o senso comum, se mantém na favela com forte aparato militar de repressão ao varejo do tráfico de drogas e, no tocante aos serviços públicos, se destaca por sua precariedade.

Há uma militarização da vida na favela que remonta o autoritarismo no Brasil. Não por acaso, no ano em que o golpe militar completa 50 anos, mais de 80 civis, até a publicação deste artigo, foram autuados em flagrante ou receberam mandados de prisão sob a acusação de crimes militares na Maré. O número representa 20% do total de presos desde abril, muitos foram detidos por desacato, desobediência e lesão corporal, crimes praticados contra militares em serviço. Além disso, serão julgados pela Justiça Militar. A Maré está sob o regime de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), medida constitucional que permite aos militares atuarem como força de Segurança Pública. Cabe ressaltar, que a prisão de civil por crime militar na Maré é prevista no artigo 9º (que trata de crimes militares em tempo de paz) do decreto-lei 1.001 de 21 de outubro de 1969, assinado pelo general Artur Costa e Silva, considerado o presidente da fase mais dura do regime militar, sucedido pelo general Emílio Garrastazu Médici.

É neste contexto que os moradores das favelas que compõem a Maré convivem rotineiramente com as arbitrariedades de um Estado militarizado e as imposições dos grupos civis armados que disputam o território para a expansão do varejo do tráfico de drogas. Tal realidade impõem-se como um futuro de incertezas, já que no presente os moradores são reféns cativos tanto do Estado militarizado quanto dos grupos criminosos armados.

Ato ecumênico pelos mortos da Maré, julho de 2013. Foto: Mídia NINJA

Pacificação militarizada

O processo de militarização é galgado pela política pública de Segurança estadual, em nome da “guerra às drogas”, e também pela apropriação de armas de fogo por parte de grupos civis que controlam inúmeras favelas. Isso significa que qualquer elucidação deve apostar em uma dupla avaliação. A militarização na favela é uma questão central, que se agudiza com a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) ou de forças militares. Tendo em vista que a ocupação territorial, além de inserir mais armas no cotidiano comunitário, não visa necessariamente o combate ao tráfico de armas. Mesmo pressupondo uma diminuição da força armada desses grupos criminosos, já que o poderio bélico antes ostentado é reprimido pela presença de policiais nas comunidades, observa-se que as armas estão principalmente, mas não só, nas mãos dos policiais. Uma política de segurança, que almeja alterar a realidade de moradores de favelas, não deveria disputar o imaginário social através da ostentação de seu poder bélico.

Foto: Mídia NINJA

Este cenário pôde ser melhor observado pela sociedade no ano de 2013, quando eclodiram nas principais cidades brasileiras inúmeras manifestações populares. As ruas foram ocupadas por milhões de pessoas que reivindicavam mudanças políticas e estruturais. Em resposta às demandas sociais, um enorme esquema de repressão e truculência policial foi posto em prática, mesmo em atos considerados pacíficos, como as manifestações dos professores. Essa postura voltaria a se repetir no ano de 2014, quando professores foram reprimidos e autuados devido a uma caminhada em apoio à greve unificada entre os professores do Município e do Estado. As consequências foram violência, agressões e prisão. Naquele momento, infelizmente democratizou-se no Brasil a violência policial, antes experimentada apenas pelos favelados. Fato estampado e verificado como na frase: “No centro da cidade, a bala é de borracha, nas favelas a bala é de verdade”.

Mesmo considerando as inúmeras violações e arbitrariedades cometidas durante as manifestações democráticas, com uso descontrolado de munição não letal e altos índices de lesões, a favela ainda é o principal espaço de expressão de uma atuação violenta e repressiva. No ano de 2014, o passado “bate à nossa porta”, pois se rememora os 50 anos da ditadura imposta ao Brasil com o Golpe Militar de 1964. O passado ainda se faz presente na maior comenda militar do Brasil, a “Medalha de Bronze do Pacificador”, que fora entregue a oficiais que se destacavam no combate aos subversivos que questionavam o regime. Nas favelas cariocas, a presença é assustadora, um tanque blindado chamado de “Pacificador”, popularmente conhecido como “Caveirão”, é utilizado nas incursões da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (CORE). Músicos da banda de rock Passarela10, da Maré, no ano de 2006, já o qualificou em um dos seus refrões como: “Não Pacifica a dor”/ “Passa, e fica a dor”.

Assim, de maneira lúdica, algumas iniciativas culturais e comunicacionais, como o bloco de carnaval “Se Benze Que Dá” e o jornal O Cidadão, se utilizam de sua arte e comunicação comunitária para questionar as políticas públicas destinadas de maneira unilateral na Maré. Vale destacar, neste momento, algumas iniciativas coletivas e/ou institucionais que buscam impulsionar a organização popular e as resistências às arbitrariedades do Estado.

Maré de direitos

Bloco Se Benze que Dá. Foto: Deise Pimenta

O Bloco “Se Benze Que Dá” (SBQD) é fruto de algumas ações políticas realizadas por jovens da Maré. Lançado em 2005, o bloco sempre abordou a relação desigual entre a favela e a cidade, além de interferir em sua realidade social ao reivindicar o direito de ir e vir dos moradores. Ao ultrapassar as barreiras físicas, simbólicas e sociais impostas tanto pelas facções armadas quanto pelas operações policiais, o SBQD consolidou-se como um bloco de luta política, cultural e educacional na Maré. Um dos motores de seus questionamentos se deu na ocasião do assassinato da moradora e estudante da Faculdade de Economia da UERJ, Jaqueline, durante uma operação policial na Baixa do Sapateiro. No carnaval de 2005, o SBQD fez o primeiro desfile já tematizando a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, e arregimentou pessoas de vários cantos da cidade. O seu principal grito, já naquele instante, entoava: “Vem pra rua, morador”. Uma alusão crítica à recomendação dada através dos autofalantes do veículo blindado ao adentrar na favela: “Sai da rua, Morador”.

É sabido que a tentativa de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais sempre foi uma estratégia dos agentes estatais para calar as críticas sobre a gestão das políticas públicas. Esse processo se torna recorrente, principalmente, em entidades que atuam dentro de favelas como as Organizações da Sociedade Civil (OSCIP) e as associações de moradores, que são acusadas de se associarem ao tráfico de drogas. Para Silva e Rocha (2008), esse ostracismo político encontrado na maioria das associações de moradores estaria atrelado a uma mudança de demanda desses espaços. Se outrora as demandas eram por serviços de água, saneamento e luz, no contexto atual, as associações de moradores têm muito a contribuir no debate sobre Segurança Pública Cidadã e Direitos Humanos. Sendo assim, nos últimos três anos, uma conferência livre sobre segurança pública e o projeto “Maré que queremos em funcionamento na Maré” reuniu uma rede de instituições com participação ativa das 16 associações de moradores da localidade.

A partir do acúmulo desses encontros, as organizações Redes de Desenvolvimento da Maré, Observatório de Favelas e Anistia Internacional lançaram a campanha “Somos Maré e temos Direitos”:

Material informativo da campanha “Somos da Maré e Temos Direito”. Fonte: Anistia Internacional, Observatório de Favelas e Redes da Maré.

A campanha caiu nas mãos dos moradores e adentrou becos, ruas e vielas da Maré, em 2013, com orientações sobre como agir em caso de abordagem policial. O objetivo era garantir os direitos dos moradores à segurança, prevenir contra abusos e ações desrespeitosas por parte das forças policiais, uma vez que estes são funcionários públicos e devem estar a serviço da população. Por fim, também orientava os moradores, nos casos de violações, a acionarem a Corregedoria da Polícia Militar e a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Tudo foi feito com a participação dos moradores e das Associações, que inclusive se reuniram com o Conselho de Segurança, Comando Operações Especiais (COE) e em audiências com a Secretaria Estadual de Segurança, para reivindicar uma atuação diferenciada das forças de segurança na Maré.

No entanto, essa iniciativa não previa a ocupação das forças militares de pacificação. No ano de “descomemoração” dos 50 anos do Golpe Militar, soldados e tanques se apropriaram da Maré em um espetáculo midiático digno de um desfile militar de 7 de setembro. Para dar segurança aos jogos da Copa do Mundo, mais de 130 mil habitantes foram colocados sob regime de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). O inimigo do Estado de ontem era o subversivo comunista, hoje são os favelados. Isso é sinal da perpetuação da criminalização da pobreza e da supressão do direito de ter direito.

Domesticação comunitária

“Soldado da Força de Pacificação da Maré afirma a jornal sueco que proibição de bailes funk é ‘castigo’”, anuncia a manchete do jornal Extra no dia 19 de junho de 2014. Ao cercear uma das principais expressões culturais da favela, a política de pacificação do Rio de Janeiro demonstra o quanto ignora a dinâmica comunitária, mesmo antes da implantação definitiva de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Maré. Essa política se baseia na gestão autoritária do espaço favelado, dada à imposição do “Nada opor”, documento redigido pela Coordenadoria de Polícia Pacificadora que busca “criar uma norma para organizar e envolver o maior número de órgãos governamentais na elaboração dos atestados de ‘Nada opor’ para eventos culturais em locais públicos ou privados dentro dos limites da comunidade” (2013, p.3).

Foto: Mídia NINJA

Desse modo, as forças de pacificação militarizada, além de vigiar e punir como prevê Michel Foucault, se qualificam como agentes culturais. São as corporações militares que se encarregam de gerenciar a cultura, como outrora o fez a ditadura militar, ao deslegitimar e achacar a autonomia comunitária. Percebe-se empiricamente que as ruas da Maré se revelam como o espaço privilegiado do ser comunitário e cultural. João do Rio foi enfático ao caracterizar a alma das ruas cariocas, porque reconhecia sua configuração como o espaço das trocas reais e simbólicas.

Nas ruas da comunidade há uma linguagem muito específica, manifestada pela reprodução insistente das composições de funk, que muitos qualificam como gíria, mas os Racionais Mc’s insistem em lembrar: “Gíria, não, dialeto”. Assim, nota-se que a rua e o funk se consolidam como referência na rotina cultural da favela. Tanto que, aos fins de semana, a rua torna-se local de lazer, é nela que os espaços público e privado se confundem. Daí a dificuldade de um Estado ordenador e impositor de regras rígidas dialogar com as múltiplas linguagens. Na Maré, assim como em outras favelas do Rio, as festas particulares tomam as ruas, que geralmente são fechadas com enormes caixas de som, e o repertório é dominado quase que exclusivamente pelo funk. Entretanto, sua ocupação pelas Forças Armadas recrimina essa prática dos bailes funks e das festas particulares. A realização de bailes funks foi expressamente proibida, e as festas particulares devem ser precedidas de autorização das forças de pacificação, que estavam previstas para se retirarem após as eleições, mas o prazo estendeu-se para o final de dezembro de 2014. Enquanto isso, a rotina de arbitrariedades cometidas pelo Exército cresce incessantemente. Morador que faz da rua a extensão de sua casa para festas particulares é abordado de maneira violenta e autoritária, o que gera conflito direto, com agressões corporais entre moradores e militares.

Sessão de aprovação da lei Funk é Cultura, em 2009. Foto: Alerj

Por mais que o funk tenha sido reconhecido por força de lei, em 2009 por conta de um projeto de Marcelo Freixo, como uma expressão cultural, a abordagem truculenta revela a velha prática de criminalização do funk e dos funkeiros que residem em favelas. Trata-se de um discurso articulado historicamente pelos órgãos de Segurança Pública e endossado pela mídia tradicional. As inúmeras manchetes de jornais da década de 90 são reveladoras: “Funkeiros apedrejam ônibus e ferem 3” (O Globo, 10/08/1993), “Funk Carioca: de James Brown ao Comando Vermelho” (O Dia, 23/03/1994), “Juiz manda apurar apologia ao tráfico nos bailes funk” (O Globo, 11/06/1995), “Rap é a nova arma do Comando Vermelho” (O Globo, 11/06/1995), “Febre Funk já matou 80” (O Dia, 12/09/1996). Essas narrativas discursivas impuseram o funk como bode expiatório das mazelas da sociedade, por isso, a solução imediata dos órgãos públicos sempre apelou para sua proibição.

Não há como negar que o funk é uma experiência extremamente comunitária, já que muitas de suas composições revelam o cotidiano de alegrias, frustrações, privações, opressões vivenciadas em comum por moradores de favelas. A nossa aposta é a de que, neste universo complexo, a rua pode se configurar como o espaço em que este vínculo comunitário se realiza em seu maior grau de organicidade. A rua, que na favela torna-se extensão das casas das pessoas, se configura como o desordenamento físico do espaço que o Estado quer ordenar. Por isso, uma das primeiras ações da política de pacificação nestes locais é a alteração da vida cotidiana. Ao estabelecer toques de recolher e/ou impondo regras para a realização de festas, se reduz o espaço de socialização. Mas, mesmo diante das adversidades, as pessoas continuam ocupando as ruas das favelas da Maré com encontros festivos. E, assim como Stuart Hall, somos otimistas ao acreditarmos que é na cultura popular que se encontra um ambiente fértil para se constituir o ser social orgânico. Uma vez que a cultura popular se potencializa, passa também a disputar novas narrativas e discursos.

É sabido, entretanto, que a fabricação do discurso, de acordo com Michel Foucault (2012), obedece uma série de procedimentos com o objetivo de limitar seus poderes e perigos, essa produção é controlada, selecionada, organizada e redistribuída. Desse modo, em nossa sociedade, há mecanismos de exclusão que se revelam na interdição do direito de dizer tudo. É descabido falar sobre tudo, mas esse direito é facultado a alguns privilegiados, os sujeitos de fala. Na contramão daqueles que detém o monopólio dos meios de fala e/ou comunicação de massa, identificamos o funk como uma linguagem autônoma, com base em uma leitura ritmada, independe dos meios tradicionais de produção, divulgação e comunicação. Mas, para além de reconhecê-lo com cultura e linguagem, concordamos com Adriana Lopes que o qualifica como uma prática social historicamente situada. “Uma forma de cantar, de expressar, de construir, de vivenciar e de sentir o mundo”, a partir do seu lugar de fala (LOPES, 2011, p. 19). O funk é cultura e reafirmamos que a militarização da vida comunitária tende a domesticar a autonomia cultural das favelas. O constante estado de exceção nas favelas não pode ser naturalizado. Maré vive, pois nós Somos da Maré e temos Direitos.

[1] O paradigma bélico, explicitamente retratado na expressão “guerra às drogas”, lida com “inimigos”. Em uma guerra, quem deve “combater” o “inimigo”, deve eliminá-lo. Policiais — militares ou civis — são, assim, formal ou informalmente autorizados e mesmo estimulados, por governantes e por grande parte do conjunto da sociedade, a praticar a violência, a tortura, o extermínio. In. Karam, Maria Lucia; Relatório CDDHC Alerj 2013.

[2] A expressão é utilizada pelo Coronel PM (reformado) e Professor Jorge da Silva em artigo que, publicado em 1996, mantém sua atualidade: “Militarização da segurança pública e a reforma da polícia”. In BUSTAMANTE, R. et al (coord.). Ensaios jurídicos: o direito em revista. Rio de Janeiro: IBAJ, 1996, pp. 497/519.

[3] Disponível em <http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/8o_anuario_brasileiro_de_seguranca_publica.pdf>

[4] Disponível em <http://oglobo.globo.com/brasil/estudo-mostra-que-custo-da-violencia-no-brasil-ja-chega-54-do-pib-14517004#ixzz3IhIFvrgr>

[5] Essa nova atribuição é uma aberração jurídica na medida em que a Constituição Federal, em seu artigo 144, enumera cada um dos órgãos que podem exercer atividades inerentes à segurança pública (incisos I a V), e não inclui neste meio as Guardas Municipais. Estas, por sua vez, só são mencionadas no parágrafo 8º do mesmo artigo, que autoriza os Municípios a constituírem guardas municipais, mas delimita bem as atribuições que elas podem ter: a proteção de bens, serviços e instalações municipais e outras atribuições inerentes ao poder de polícia administrativa.

[6] Cientista político professor do Instituto de Ciências Sociais da UERJ e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência.

[7] Ver em <http://apublica.org/2014/07/dois-meninos-e-uma-sentenca-de-morte/>

[8] Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/politica/o-poder-da-milicia-nas-eleicoes-do-rio-de-janeiro-1597.html>

[9] Marielle Franco é ex-moradora do morro do Timbau (Maré) e mestre em Administração Pública pela UFF

[10] Renata Souza é morada da favela Nova Holanda (Maré) e doutoranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ

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