“NÃO VAMOS ESQUECER!” — A TORTURA ONTEM E HOJE

  • Entrevista com Vitória Grabois
  • Artigo: A justiça da transação e a não ruptura na luta pelo direito a verdade, a memória e a justiça
  • Racismo penal e banalização da prisão provisória
  • Principais denúncias do sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro
  • O sistema socioeducativo do Rio em 2014

Há cinquenta anos, no dia 1º de abril de 1964, consolidou-se no Brasil o golpe de Estado empresarial-militar que rompeu com a ordem democrática, derrubou o então presidente João Goulart e levou o país a vivenciar vinte e um anos de terror. Estima-se que o regime ditatorial tenha matado ao menos 357 militantes políticos, prendido em torno de 50.000 pessoas somente nos primeiros meses do regime, processado no âmbito da Justiça Militar outras 7.367, banido 130 cidadãos do país, forçado outros 10.000 ao exílio, punido 6.592 militares, expulsado 245 estudantes da universidade e cassado o mandato e os direitos políticos de 4.862 brasileiros[1].

Ato ‘Ditadura nunca mais!’ realizado em São Paulo. Foto: Mídia NINJA

Nota-se que esses números não incluem uma série de casos que, até hoje, não foram reconhecidos pelo Estado brasileiro, seja por não haver vontade política para tanto ou por não se ter acesso aos documentos do período que ajudariam a esclarecer as violações perpetradas à época.

A título de exemplo, em recente pesquisa, realizada no ano de 2013, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos identificou 1.196 casos de trabalhadores rurais assassinados ou desaparecidos por razões ideológicas e por disputa fundiária no campo, entre setembro de 1961 e outubro de 1988 (período indicado pela Lei nº 9.140/1995, a primeira a reconhecer que pessoas foram assassinadas pela ditadura militar). Destes, apenas 29 já foram reconhecidos pelo Estado ao terem seus nomes incluídos no relatório final da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Da mesma forma, tais números não incluem as prisões, desaparecimentos forçados e execuções perpetradas contra os povos indígenas, alvos de um projeto de desenvolvimento absolutamente excludente.

Mobilização Nacional Indígena, Brasília, 2014. Foto: Mídia NINJA

Em prol da construção de estradas e de megaprojetos de infraestrutura, tribos e comunidades indígenas, quando não eram dizimadas, acabavam expulsas de suas terras ancestrais. Apesar de se acreditar que o número de indígenas mortos possa chegar a milhares (alguns pesquisadores falam em mais de 2 mil), a Secretaria Nacional de Direitos Humanos conseguiu identificar ao menos 300 casos de indígenas mortos e desaparecidos pela ditadura. Contudo, os mesmos ainda não foram reconhecidos oficialmente pelo Estado brasileiro.

Inserida em um contexto histórico mais amplo, marcado pela Guerra Fria, pela expansão do imperialismo estadunidense e pela contenção dos movimentos sociais populares ao redor do mundo, a ditadura brasileira teve como base ideológica a “Doutrina da Segurança Nacional” (DSN). Elaborada pelos militares do Pentágono como um marco de diretrizes gerais para as ditaduras da região, tal doutrina sustentava que o cidadão só se realiza plenamente enquanto membro de uma comunidade nacional coesa. Rejeitava, portanto, a ideia da divisão da sociedade em classes. O objetivo principal era pôr fim a tudo aquilo que fosse tido como nocivo à “unidade nacional”. E o inimigo mais perigoso para a tradição política local era uma suposta ameaça comunista que, segundo os militares, pairava sobre a América Latina[2].

Através da edição de decretos-leis, da elaboração dos chamados Atos Institucionais, da adoção de maciça propaganda para forjar um falso nacionalismo e da estruturação de um aparelho punitivo contra os opositores ao regime empresarial-militar, a ditadura garantiu o aprofundamento de certo padrão de acumulação capitalista atrelado às necessidades do mercado transnacional, promoveu um processo de ocidentalização do país (baseado no “American Way of Life”) e produziu impérios econômicos. O regime empresarial-militar buscou, assim, derrotar os movimentos populares organizados, arruinar projetos de distribuição da riqueza social que ameaçavam mudar a relação capital-trabalho no país, e destruir as instituições democrático-representativas que promoviam o pluralismo político. A política econômica adotada pelos militares foi fundamental para a sustentação da nova institucionalidade autoritária, a construção do aparato repressivo e a viabilização dos serviços de censura, de vigilância e controle. Existe, portanto, uma ligação direta entre a sala de tortura, o pau-de-arara, a “geladeira” e as fontes de financiamento empresariais provindas daqueles que, em última instância, se beneficiavam do modelo de desenvolvimento do regime militar[3].

A ditadura deixou visíveis sequelas em nossa sociedade. Depois de trinta anos do fim do regime, suas consequências permanecem até os dias atuais como obstáculos para o desenvolvimento social e político de nosso país.

Nesse ponto, é preciso concordar com aqueles que afirmam que a ditadura brasileira foi a mais violenta do Cone-Sul, não em razão do número de mortos ou desaparecidos, mas em razão de tudo que ainda resta deste regime em nossa sociedade atual[4]. Fomos o último país da América Latina a instituir uma Comissão Nacional da Verdade, não responsabilizamos os autores das graves violações de direitos humanos ocorridas naquele período e distorcemos a história para justificar as barbáries do regime, persistindo em manter um projeto autoritário de conciliação cujo símbolo central é a lei de anistia de 1979, interpretada a partir da “reciprocidade” entre os crimes políticos e aqueles cometidos pelos agentes estatais. Assim, chegamos em 2014 sem que as Forças Armadas reconhecem os horrores dos anos de chumbo.

Passeata em São Paulo, 2014. Foto: Fernando Zamora / Futura Press

Pior, no aniversário de 50 anos do golpe, a cidade de São Paulo foi palco de uma passeata onde setores conservadores da elite brasileira pediram a volta dos militares. Apesar do pequeno numero de participantes, tal acontecimento não deixa de ser um triste sintoma de um passado que ainda nos assombra.

Fatos recentes explicitam os limites do processo de justiça de transição em curso no Brasil — processo esse que se intensificou a partir de 2012, com a instalação da Comissão Nacional da Verdade e das comissões estaduais, municipais e setoriais que se espalharam pelo país. No dia 14 de novembro de 2014, o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal (PF) realizaram uma operação de busca e apreensão no Hospital Central do Exército (HCE) em Benfica, Rio de Janeiro. Além de constatar que aquela unidade do Exército ocultou documentos que, meses antes, foram objeto de diligência conjunta da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão da Verdade do Rio, a operação descobriu que membros e integrantes da referida delegação foram, posteriormente, objeto de investigação preliminar daquela unidade militar: o MPF chegou a encontrar uma pasta do Exército com nomes, fotografias e informações de integrantes das duas comissões.

Foto: Midia NINJA

A progressiva militarização do Estado, as seguidas intervenções das Forças Armadas no espaço urbano (por exemplo, em 1992, 1994, 2008, 2010, 2014, para ficar só na cidade do Rio de Janeiro), o avanço de programas de segurança orientados pela lógica da guerra ao “inimigo”, os altos índices de letalidade das nossas polícias, a criminalização dos movimentos populares, o oligopólio das grandes empresas de comunicação e a conivência de nossas instituições contemporâneas com antigas figuras da ditadura que ainda ocupam cargos políticos, são indícios de arranjos de poder — reorganizados, intensificados e elaborados pela ditadura — que até hoje continuam a funcionar. A violência do presente não pode ser, portanto, desassociada do nosso passado repressor. Desconsiderar os limites de nossa transição democrática seria um erro, posto que eles confirmam a perseverança de uma tradição institucional e de uma cultura política ainda amarradas a formas de autoritarismo não plenamente superadas. O esforço de resgatar o passado ditatorial para decifrar o presente, contudo, não deve ser entendido como um fim em si mesmo, mas como um meio para a ação política. No lugar de naturalizar ou esquecer o passado em nome de um dito “progresso”, urge atualizá-lo a partir dos problemas que se colocam no presente. A luta pela memória, justiça e verdade é, assim, decisiva para a construção de um novo futuro.

Assim, nesse capítulo apresentamos além da entrevista com Vitória Grabois, integrante do Grupo Tortura Nunca Mais e artigo sobre a atuação da Comissão Estadual da Verdade do Rio os seguintes itens: 3.1 — Racismo penal e a banalização da prisão provisória; 3.2 — Principais denúncias do sistema prisional de 2014 e; 3.3 — As denúncias do sistema socioeducativo pelo Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura;

[1]Brasil. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007, pp.30–31.

[2] PADRÓS, Enrique Serra. “Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-americanas” In: Ditadura e Democracia na América Latina, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2008.

[3] DORNELLES, João Ricardo W. “50 anos depois ainda vivemos o horror” In: Especial 50 anos do Golpe, Carta Capital, 06/04/2014.

[4] SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson. “O que resta da ditadura-ApresentaçãoIn: O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pag. 10.

50 ANOS DO GOLPE MILITAR — VIDAS, LIBERDADES E IDENTIDADES SUBTRAÍDAS

ENTREVISTA

Vitória Lavínia Grabois Olímpio, nascida em 1º de novembro de 1943, é presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Filha do comunista Maurício Grabois, fundador do Partido Comunista do Brasil e guerrilheiro desaparecido do Araguaia, Vitória viveu sua juventude na clandestinidade. Sua militância começou ainda na Faculdade Nacional de Filosofia, atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Ao reivindicar com outros colegas, em 1963, eleições diretas para direção da faculdade, o então presidente João Goulart a suspendeu. Quando retornou do período de suspensão, ocorreu o golpe militar e todos os alunos suspensos foram expulsos da Faculdade, incluindo o jornalista Elio Gaspari. A ditadura militar levou seu pai, Maurício Grabois, seu irmão André Grabois, seu companheiro Gilberto Olímpio, sua liberdade e identidade.

Todos os governos civis que sucederam a ditadura militar têm uma dívida com o povo brasileiro e, em especial, com os familiares dos mortos e desaparecidos políticos. Nada foi feito. Apenas agora, passados quase 50 anos do golpe, que foram instituir as Comissões da Verdade. — Vitoria Grabois

A JUSTIÇA DA TRANSAÇÃO E A (NÃO) RUPTURA NA LUTA PELO DIREITO A MEMÓRIA, A VERDADE E A JUSTIÇA

Por Nadine Borges[1]

Estamos em 2014 e faz exatamente 50 anos que houve um golpe militar em nosso país. A maioria de nós leu, viu ou ouviu alguma coisa em março e abril deste ano sobre o cinquentenário de um passado que insiste em não passar e se perpetua no presente com diversas violações de direitos humanos. Eu particularmente nunca tinha visto se falar tanto em ditadura, lei de anistia, mortos e desaparecidos políticos, crimes contra a humanidade, tortura e morte de pessoas que ousaram lutar pela democracia.

Discutir sobre esse tema nos permite entender que hoje, os “subversivos” de ontem, transformaram-se em “vândalos” e são em sua maioria jovens negros e pobres. Esse extermínio da juventude negra e pobre no Estado do Rio de Janeiro não deixa registros, similar ao que ocorria na época da ditadura. É sobre essa ausência que escreveremos. Não se trata de uma tarefa simples, pois até hoje os arquivos das Forças Armadas não foram abertos e ninguém sabe de fato quem, como e onde estão os corpos das centenas de pessoas que desapareceram durante a ditadura que durou 21 anos (1964–1985). Da mesma forma, ninguém sabe até hoje onde está o corpo de Amarildo e de tantas outras pessoas que morrem diariamente e são vítimas da violência do Estado.

O último 31 de março ou o 1º de abril despertaram interesse por um tema forçosamente silenciado pelo próprio Estado durante décadas. Não foram poucos os debates em escolas e universidades com intuito de elucidar o período do regime militar ditatorial no Brasil. Nos últimos dois anos centenas de livros, filmes, documentários, peças teatrais, mostras fotográficas, audiências públicas na ALERJ em parceria com a Comissão de Direitos Humanos, exposições, debates, o Movimento Ocupa Dops, seminários e palestras deram conta de mostrar o caráter pedagógico do que escolhemos chamar de “descomemoração do golpe militar”.

E o que foi o golpe militar? Por qual razão foi criada uma Comissão da Verdade? Para que serve essa Comissão? Alguém será punido?

Antes de responder essas perguntas é bom recordar que a Comissão Nacional da Verdade iniciou seus trabalhos em 16 de maio de 2012 e teve como principal objetivo examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período. O relatório final apresentado em 10 de dezembro de 2014 reconstituiu parte da história dessas violações e é mais um passo para promover o direito à memória e à verdade em nosso país.

Para entendermos do que se trata exatamente o trabalho de uma comissão da verdade é preciso saber o que são as graves violações de direitos humanos. Essa resposta nos conduz ao questionamento de alguns alicerces do que se denomina “direitos humanos”, tais como a restrição da gênese da noção contemporânea de “direitos humanos” ao advento da Revolução Francesa ou, mais recentemente, da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.

Antes de pensarmos nas violações que ocorrem todos os dias ao nosso redor é preciso lembrar que não foram poucas as resistências, os massacres e as invasões que dizimaram populações inteiras em todos os continentes ao longo de séculos. Muitos grupos, mesmo alguns que não tiveram direitos violados, ofereceram resistência e conseguiram gradativamente criar as primeiras normas de direitos humanos. Algumas delas, datadas do intervalo entre os séculos XVII e XIX, consolidaram os eixos considerados ainda hoje fundamentais na definição do que entendemos por direitos humanos. Mesmo que sigamos vivendo em um mundo desigual, é importante reconhecer o movimento que alastrou para um grande contingente da população humana instrumentos jurídicos forjados há mais de dois séculos para proteger grupos específicos.

Justamente por não se aterem a esta dimensão mais orgânica da constituição dos direitos humanos como um bem social amplo, seus detratores reduzem sua existência e sua garantia ao Estado. Seja quando garantidos, seja quando violados, é apenas ao Estado que é atribuída agência e responsabilidade. Embora seja fácil constatar que as declarações de direitos registradas em leis não correspondem à sua execução, é de suma importância atentar para os riscos de desconsiderarmos os avanços. A despeito de suas debilidades, precisamos entender de maneira concomitante tanto a formação dos direitos humanos como um tesouro universal — que pertence a todos — quanto sua feição particular em contextos marcados por processos históricos específicos. Com um olhar atento a tal caráter sui generis, que incorpora avanços e retrocessos, somos capazes de nos aproximar de enigmas de diversas ordens, como o foi o Golpe Militar de 64 e tantos outros que lhe foram contemporâneos. Tal compreensão mais acurada nos permite ir além da pura estupefação que nos domina ao pensarmos que aquele regime totalitário se estabelecia depois, por exemplo, da queda do regime nazista. A barbárie e a atrocidade se repetem vezes sem fim, entretanto, o que não nos é permitido é deixar que a repetição aconteça como farsa. Se houve punição para os crimes do nazismo, por que razão, até hoje não temos um registro exaustivo das vítimas do regime militar no Brasil? Não somente daquelas que à época foram identificadas, presas, julgadas, levadas a se exilarem ou mortas após longas torturas, mas também de pessoas anônimas que foram torturadas, demitidas, perseguidas e prejudicadas em função do golpe militar, incluindo quase 10 mil militares. Entre o regime nazista e o regime militar no Brasil não há apenas um abismo no tempo, mas uma chaga no brio de todos nós pois no primeiro caso — a despeito do inominável sofrimento — a histórias veio à tona em uma infinidade de matizes, ao passo que no Brasil a atuação dos agentes do Estado nessas graves violações continua sendo um enigma sem solução. Levando em consideração que muitos personagens dessa história de violações silenciada ainda estão vivos, por algum tempo ainda teremos testemunhas às quais desejamos coragem para enfrentar os fantasmas e a violência que nos rondam até hoje, impedindo-nos de construir uma outra história do nosso país, inspiradora de ações estratégicas para que os crimes da ditadura nunca mais se repitam.

O caso brasileiro suscita debates a respeito da urgência de se tratar de tais sofrimentos com novas lentes. Não mais com o foco exclusivamente na verdade dos fatos, mas com o objetivo maior de, a partir do conhecimento e dos esclarecimentos dos fatos, nos tornarmos capazes de delimitar e qualificar as responsabilidades institucionais, sociais e políticas daquele período a fim de transformar radicalmente um paradigma de governo que nos acompanha até hoje, segundo o qual o Estado tem a prerrogativa de promover matanças — impunemente.

As experiências de outras comissões da verdade no mundo ajudaram a cicatrizar/curar feridas, ao revelarem publicamente as atrocidades cometidas pelo próprio Estado. O que a Comissão da Verdade do Rio tem em mãos hoje é a possibilidade de mostrar as causas e as consequências dessas violações e, posteriormente, impulsionar reformas políticas e institucionais necessárias para evitar a repetição dessas violações. A Comissão não tem caráter persecutório, não pode e nem deve, portanto, ser uma alternativa para substituir qualquer autoridade com poder de julgamento. Ao mesmo tempo, a Comissão não pode se guiar somente pelo passado, porque a análise do ontem deve servir para subsidiar um novo começo, uma nova ordem política, ou seja, deve reunir elementos para que a sociedade possa atuar de forma preventiva, evitando a repetição de violações contra nossa humanidade.

Apesar deste desejo e inspiração, as recomendações que a Comissão do Rio fará ao Estado em seu relatório final só serão possíveis se soubermos o que ocorreu e como ocorreu, sob pena de não sabermos o que não deve se repetir. Em alguma medida, revelar esses fatos e essas circunstâncias pode ser um gesto capaz de gerar uma censura social sobre as pessoas e as instituições que cometeram essas graves violações de direitos humanos. A verdade sozinha não fará justiça e não é esse o papel de uma comissão da verdade. O legado que podemos deixar por meio de nosso relatório é a revelação de injustiças silenciadas e muitas delas até hoje cometidas. Isso possibilitará às futuras gerações melhores condições para conhecer e reconhecer os limites do Estado, garantidor dos direitos humanos que, apesar desta prerrogativa, foi, é, e sempre será capaz de atuar como violador desses mesmos direitos.

No caso fluminense, a Comissão foi constituída pela Lei Estadual 6335/2012 aprovada pela Alerj após um grande movimento de pressão de familiares dos mortos e desaparecidos políticos, de ex-presos políticos e de uma militância jovem que tomou para si a luta pelo direito à memória, à verdade e à justiça. A Comissão da Verdade do Rio é composta por sete membros que possuem notória história de comprometimento com a defesa dos direitos humanos, a saber: Alvaro Caldas, Eny Moreira, Geraldo Cândido, João Ricardo Dornelles, Marcelo Cerqueira, Wadih Damous (presidente) e eu, Nadine Borges, que compartilho um pouco dessa experiência com vocês.

Nosso trabalho se dividiu desde o início em algumas frentes para investigar os casos de mortos e desaparecidos políticos, os planos e atentados terroristas praticados por agentes do Estado, o financiamento, as estruturas e a institucionalidade da repressão, os centros clandestinos e oficiais da repressão e lugares de resistência e um observatório de não-repetição dessas violações.

Todo esse trabalho recebeu desde o início um apoio importante de uma estrutura que criamos chamada de Fórum de Participação da Sociedade Civil. Trata-se do principal eixo formulador das nossas ações, pois mensalmente realizamos um encontro de portas abertas para escutar as demandas das organizações da sociedade civil, de militantes e dos familiares e ex-presos políticos afetados pela ditadura.

Há diversos relatos sobre o nosso trabalho, mas escolho um exemplo que revela o papel pedagógico do que fazemos, vejamos: lançamos em parceria com a FAPERJ- Fundaçao de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro, um edital no valor de R$ 2 milhões, distribuídos entre 07 projetos de diferentes universidades do Estado do Rio para “Apoio ao estudo de temas relacionados ao direito à memória, à verdade e à justiça relativas a violações de direitos humanos no período de 1946 a 1988”. Já adianto, os dados parciais causam perplexidade até para os especialistas e esperamos sistematizar a riqueza desse conhecimento acadêmico de tal forma que contribua para a elaboração de políticas públicas voltadas para a não repetição dessas violações.

Mexer com essa estrutura é um desafio que parece não ter fim, mas como não caminhamos sozinhos sentimos durante todo o ano de 2014 o quão importante foi o cinquentenário do golpe militar para reinterpretarmos o significado de uma ditadura militar que foi chamada de revolução democrática pelos golpistas.

Se hoje convivemos com um legado legislativo que remonta à época da ditadura é porque não conseguimos, apesar dos avanços da Constituição Federal de 1988, mexer com o viés ideológico autoritário que até hoje norteia os atos da administração pública tanto no legislativo, quanto no executivo e, principalmente, no judiciário.

Em épocas de democracia ficamos com a falsa impressão de que o uso desmedido e irregular da força, como algo à margem das previsões legais, é algo peculiar dos regimes de exceção quando a Constituição perde seu significado com rompimentos. Se essa assertiva for correta por quais razões o direito à livre manifesstação foi reprimido com armas “não letais” durante as manifestações de junho, quando na verdade o que todos aqueles que tiveram nas ruas exerceram ao saber que a polícia militar usaria a força para reprimir, nada mais foi que o direito à legítima defesa. Ou alguém acha que dá para sair de casa e ir para um ato público sabendo que a polícia usará gás, bombas de “efeito moral” e spray de pimenta sem uma máscara para se proteger?

Essas constatações, por vezes óbvias, nos permitem ler que o poder exercido no Brasil no século XX desde a República Velha, passando pela ditadura Vargas, pela deposição do Presidente João Goulart, pelo covarde golpe militar de 1964, pela transação para aprovar a Lei da Anistia em 1979, pelo movimento das diretas negociado pela elite e até mesmo os governos com faces de esquerda que começaram com algumas políticas sociais nos governos do Fernando Henrique, do Presidente Lula e que seguem uma linha ascendente no atual governo da Presidenta Dilma apresentam similaridades incapazes de enfrentar a luta ideológica enraizada daqueles que como nos ensinou Vitor Nunes Leal são os coronéis donos das enxadas e dos votos. Não fosse assim os defensores da ditadura não teriam sido eleitos com milhares de votos na última eleição.

13 de março de 1964, presidente João Goulart discursa na Central do Brasil

Se atentarmos para as reformas de base propostas pelo Presidente João Goulart no Comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964, as quais mexeriam com a estrutura fundiária e econômica em nosso país, algo até hoje não realizado, entenderemos que o modelo administrativo e político do nosso país se orienta, ainda atualmente, pelo interesse da classe dominante, independente de quem seja essa classe. É por isso que, apesar das eleições livres e regulares, milhares de pessoas foram às ruas em 2013 para reivindicar direitos e enfrentar uma crise de representatividade. Ou alguém acha normal que mais de 50% da população seja formada por mulheres e elas ocupem apenas 8% das cadeiras no Congresso Nacional?

Nenhum governo, desde o fim da ditadura, poupou o uso da violência para reprimir lutas sociais, embora a intensidade tenha sido diferenciada, conforme os interesses econômicos.

Não há dúvidas de que a democracia é sempre melhor que qualquer ditadura e como disse a Presidenta Dilma durante a última campanha eleitoral não podemos esquecer que para quem viveu a ditadura ela está ali na esquina. Não temos o direito de tapar o sol com peneira e deixar de enfrentar esse modelo que permite até hoje o controle dos ricos sobre a economia e a política, submetendo os pobres a políticas compensatórias, quando todas as políticas devem ser reparatórias. Devemos comemorar as políticas dos governos Lula e Dilma que retiraram quase 40 milhões da pobreza, mas o que fazer com os 16 milhões que ainda vivem na extrema pobreza?

Tudo o que nos toca e move diante dos problemas estruturais de moradia, acesso à saúde, transporte público, distribuição de renda, acesso à educação está intimamente ligado com esse passado que não passou porque a ditadura, assim como a escravidão foi um negócio: deu lucro. O que não podemos é permitir que a democracia também seja um negócio e cabe a cada um de nós lutar todos os dias contra isso. É óbvio que esses 30 anos de democracia trouxeram conquistas na área da educação, da saúde, do emprego, da qualidade e expectativa de vida, mas infelizmente os que têm mais continuam com mais, independente daqueles que tinham menos e hoje possuem um pouco mais. Não sejamos ingênuos, continuamos sujeitos a um conjunto de medidas políticas e econômicas gestadas na ditadura que permanecem intocadas quando se trata da real distribuição do poder econômico que nada mais faz além de fomentar a injustiça social.

Estudar o período da ditadura e investigar as atrocidades cometidas nos ajuda a compreender o motivo dos pobres e excluídos de hoje serem torturados nos moldes do que fizeram com os “terroristas” ou “subversivos” que simplesmente desapareceram não apenas para seus familiares, mas para a história do país.

É contra esse esquecimento e essas ausências que pautamos nosso trabalho na Comissão da Verdade do Rio. Isso nos conduz à certeza de que o golpe militar de 1964 foi antidemocrático, mas a ruptura com o modelo de encarcerar pobres e excluídos ainda não ocorreu. Não fosse assim a população carcerária em nosso país não seria a maior de todos os tempos.

Será que há diferença entre matar, torturar, desaparecer, condenar pela mídia antes de julgar na ditadura e na democracia? Enquanto não rompermos com as estruturas que concentram o poder econômico e político nas mãos dos mesmos de sempre estaremos apenas reproduzindo o mesmo modelo das capitanias hereditárias.

Infelizmente a atual composição do Congresso Nacional, somada a decisão equivocada do STF de não revisar a Lei da Anistia, fato que permitiu aos próprios torturadores se anistiarem, são bons exemplos de que a essência não mudou. Se por um acaso alguém defender que mudou, nos resta perguntar o motivo de não ter mudado para quem vive em áreas dominadas pela milícia ou pela polícia que arrasta corpos pelas ruas, ou àqueles que moram nas ruas, em sua maioria negros.

Nosso trabalho na Comissão da Verdade tem vários objetivos previstos em lei, mas somos movidos pela convicção que enquanto o inimigo de hoje for o “subversivo” de ontem precisaremos enfrentar o alicerce do modelo de representação política que sustenta o capitalismo, não importando os rótulos da democracia quando as desigualdades são alarmantes.

Se eu pudesse apostar em uma fórmula para enfrentar essa desigualdade, começaria pela revisão da Lei da Anistia, pois a lógica do perdão é o que permite a continuidade de práticas incapazes de promover qualquer mudança.

O que aconteceu em nosso país no ano de 1979 quando a Lei da Anistia foi aprovada é uma aberração. Ninguém pode discordar da anistia dada aos que enfrentaram e conseguiram sobreviver a ditadura, mas como concordar com anistia para torturadores, estupradores, facínoras que não cometeram crimes políticos, ou alguém acha que arrancar mamilos e estuprar mulheres ou colocar baratas e jacarés para obter confissões é crime político?

É por essas e outras que acredito em um movimento na sociedade brasileira capaz de enfrentar essa barbaridade.

Defendo as políticas adotadas desde 1995 que admitem a responsabilização do Estado por essas violações de direitos humanos. A lei nº 9.140/95 (com as alterações da lei nº 10.875/2004) que reconheceu como mortas e com direito à reparação as pessoas ali nomeadas e a lei nº 10.559/2002 que criou a Comissão de Anistia são bons exemplos. Contudo são exemplos políticos com desdobramentos administrativos através de reparações pecuniárias e simbólicas e continuam afastando qualquer possibilidade de ações judiciais. Não adianta reparar com a expectativa de promover uma reconciliação nacional forçada. Se há de fato vontade mudar, e aqui cabe um reconhecimento a Presidenta Dilma que criou a Comissão Nacional da Verdade, os resultados para que possamos falar em ruptura só virão no dia em que a justiça bater à porta dos autores das violações, sejam esses agentes militares, empresários nacionais e internacionais, permitindo o direito ao contraditório e a ampla defesa, algo que eles negaram àqueles que foram, e continuam sendo, mortos e torturados. Ou isso, ou a justiça de transição sem ruptura continuará sendo a justiça da transação.

[1] Membro da Comissão da Verdade do Rio

Racismo penal e a banalização da prisão provisória

“Ele sacou a arma, apontou pra mim e disse: ‘sou policial civil, cadê a bolsa, cadê a bolsa?’ Os carros passavam e falavam ‘vagabundo, vagabundo’. Eu falei que eles estavam enganados, que eles tinham pego o cara errado” — Vinicius Romão

No dia 10 de fevereiro de 2014, Vinícius Romão foi parado pela polícia, logo depois de subir uma escada que dava acesso a um viaduto no Méier, bairro na Zona Norte do Município do Rio de Janeiro. Ele tinha acabado de sair do trabalho, em um shopping da nessa região e estava quase chegando em sua casa quando a polícia o abordou. Nesse mesmo instante, “Dona Dalva falou: ‘foi ele, foi ele’”.

Vinicius Romão em audiência da CDDHC, março, 2014. Foto: Iara Pinheiro

A partir daí o policial o rendeu e mandou ele botar a mão pra trás e deitar no chão. “Ele sacou a arma, apontou pra mim e disse: ‘sou policial civil, cadê a bolsa, cadê a bolsa?’ Os carros passavam e falavam ‘vagabundo, vagabundo’. Eu falei que eles estavam enganados, que eles tinham pego o cara errado. ‘Eu sou inocente, não vai ter arma comigo, não vai ter bolsa, não vai ter nada’”, disse Vinícius.

Nesse momento a abordagem truculenta é seguida por erros sucessivos que iriam deixar Vinicius por mais de 16 dias preso no Complexo Penitenciário de Gericinó. O primeiro erro: flagrante sem embasamento legal, uma vez que ele não estava sendo perseguido, ao o abordar o policial já partiu da premissa que ele era o autor do crime com base no testemunho de uma vítima que ainda estava nervosa sob efeito do ato violento que acabara de sofrer e nenhum pertence foi encontrado no local.

Segundo erro: reconhecimento às pressas, considerando que o código de processo penal recomenda que o reconhecimento seja feito em uma sala com pessoas com características semelhantes àquelas da pessoa descrita, com a mesma roupa. Terceiro erro: cerceamento de defesa, pois após ser detido, Vinícius foi levado à delegacia e só deixaram ele fazer uma ligação no dia seguinte, além disso, o mesmo foi interrogado pelo delegado, quando já estava na cela, sem a presença de um advogado. Quarto erro: a prisão foi mantida sem elementos suficientes, uma vez que o Ministério Público Estadual manteve a privação da liberdade mesmo não havendo absolutamente nada que a justificasse.

Há uma característica de Vinícius Romão que até então não foi exposta, trata-se de um jovem de 27 anos e negro, semelhante a outros diversos jovens e negros presos no Estado do Rio de Janeiro sem qualquer garantia do devido processo legal. Contudo, graças a mobilização de amigos e parentes de Vinícius, os erros do sistema penal puderam ser corrigidos, o que não acontece com muitos presos no Estado. A ação penal contra Vinícius Romão foi arquivada e a Corregedoria Interna da Polícia Civil abriu procedimento para apurar as irregularidades da prisão. A investigação vai avaliar a conduta do policial civil Waldemiro Antunes de Freitas Junior, da 11ª DP (Rocinha), que abordou Vinícius e apresentou a ocorrência à 25ª DP (Engenho Novo), e a do delegado de plantão William Lourenço Bezerra, responsável pelo equivocado flagrante.

Em audiência pública realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, no dia 13 de março de 2014, outros casos semelhantes foram apresentados, evidenciando uma questão estrutural no sistema de justiça criminal do Estado. Douglas de Oliveira Moreira presente na audiência, foi acusado de participar de roubo de automóvel em julho de 2013, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Segundo as informações colhidas por seus familiares na Delegacia, a polícia chegou até Douglas através das redes sociais, investigando um de seus “amigos”, denunciado como receptador de peças de automóveis roubados.

Douglas de Oliveira em audiência da CDDHC, março, 2014. Foto: Iara Pinheiro

Douglas foi preso em sua residência por volta de cinco da manhã do dia 09 de janeiro de 2014, tendo inclusive seus pertences quebrados pela polícia no momento de sua prisão. A ocorrência foi registra da 58ª DP, em Comendador Soares, e após prestar depoimento negando as acusações, Douglas foi encaminhado para o sistema penitenciário. Procurada por seus familiares, a CDDHC solicitou a Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (FETRANSPOR) informações sobre a utilização do Bilhete Único na data do crime em questão, dado que indicou a localização e horário de Douglas no horário do fato; o mesmo estava dentro de um ônibus, a mais de quinze quilômetros de distância do roubo do carro. Apesar dessa informação, Douglas depois de preso por um mês, está em liberdade provisória e ainda responde pela ação penal.

Enquanto Hércules Menezes Santos ainda está preso pelo mesmo crime imputado a Douglas, mesmo depois da identificação e prisão da quadrilha que roubava carros na região e constatada a semelhança com um dos integrantes da quadrilha. Cabe destacar que o receptador preso afirmou não conhecer Hércules e seus familiares depuseram informando que estavam com o mesmo em casa da hora do crime, o que não foi levado em consideração. Apesar dos esforços da Comissão de Igualdade Racial da OAB/RJ, de seu advogado e da CDDHC, Hércules ainda aguarda julgamento preso desde janeiro de 2014 por roubo de carro, mesmo não sabendo dirigir.

Ao olhar os casos aqui narrados fica patente que há uma inversão do ônus da prova. A prisão aparentemente elimina a necessidade de investigação, passando a ser a prisão a resposta à sociedade daquilo que tememos. Ela culturalmente elimina a necessidade de investigação. Essa constatação fica mais evidente ao analisar os casos de prisão provisória no Estado do Rio de Janeiro.

Também presente na audiência, o pesquisador Ignácio Cano apresentou o resultado de uma pesquisa realizada ao longo de 2013 sobre avaliação da Lei nº 12.403, de 2011, na prisão provisória no Rio de Janeiro, realizada pelo CESeC, Centro de Estudo de Segurança e Cidadania, da Cândido Mendes.

A Lei nº 12.403, de 2011, chamada lei das medidas cautelares, abre para o Judiciário um grande leque de alternativas. Entre essas medidas alternativas à prisão provisória estão: o comparecimento em juízo, a proibição de acesso aos lugares, a proibição de manter contato com uma pessoa determinada, a proibição de se ausentar da comarca, o recolhimento domiciliar, a suspensão do exercício da função pública, a internação provisória nos casos de imputabilidade, fiança e monitoração eletrônica.

A pesquisa contou com duas partes: análise quantitativa sobre os casos de prisão provisória flagrantes no ano de 2011 no Rio de Janeiro; e uma pesquisa qualitativa com entrevistas a defensores, juízes, promotores, advogados e observação de audiências. Na pesquisa quantitativa, foram analisados um total de 6.084 réus envolvidos em 5.400 processos de janeiro a dezembro de 2011. Foram obtidas a listagem da distribuição dos flagrantes do Judiciário. No final, foi possível comparar — porque a informação não está completa em todos os casos — 3.339 detidos, antes da entrada em vigor da lei, com 2.745, detidos depois da entrada em vigor da lei. A pesquisa qualitativa entrevistou 36 juízes, promotores, defensores e advogado e observou 10 audiências de julgamento.

A primeira constatação é que na primeira medida tomada pelo juiz após a prisão em flagrantes 79% dos réus foram mantidos em prisão provisória e apenas 21% tiveram acesso a uma outra medida cautelar diferente da prisão provisória, ou seja, a prisão provisória é a medida cautelar imposta, via de regra, no Rio de Janeiro.

Ao verificar o tipo de crime, como podemos esperar, alguns deles não têm nenhuma outra medida cautelar como o caso de roubo, tráfico, homicídio e outros crimes. Outros crimes, então, recebem outras medidas cautelares diferentes da prisão em maior proporção. Note-se, por exemplo, que o tráfico e o roubo têm uma proporção de prisão provisória superior a de homicídio. Homicídio tem 5% dos casos em que há uma outra medida, mas no caso de roubo e tráfico não há, absolutamente, nenhuma outra medida provisória que não seja a prisão cautelar.

Antes da entrada em vigor da nova lei, 84% dos réus presos em flagrante tiveram a prisão cautelar mantida pelo juiz; depois da entrada em vigor da lei o número caiu para 72%. Ou seja, a lei reduziu em 11% a aplicação da prisão provisória, mas ela continua a ser a majoritária.

De acordo ainda com o levantamento, há uma alteração no número de casos classificados a configurar maior gravidade do fato típico quando se trata de furto e roubo. As ocorrências de crimes furto qualificado e roubo circunstanciado ultrapassam o furto e roubo depois que a lei entra em vigor, em julho de 2011. A evidência é muito clara no sentido de que alguns delegados estão mudando a tipificação penal para conseguir manter a prisão provisória e para poder evitar o impacto benéfico da lei.

Ao analisar o resultado dos processos iniciados em 2011 com prisão em flagrante é possível verificar que apenas 31% desses casos resultam na prisão em regime fechado; 18% em regime semiaberto; 4% em regime aberto; 15% outras penas; 7% absolvição e outras questões processuais e apenas 1% de réu revel. Isso quer dizer que as pessoas são mantidas em prisão provisória sendo que menos de 1/3 delas serão, depois, condenadas a prisão em regime fechado. Em 70% dos casos, as pessoas estão sendo mantidas numa condição mais grave do que a pena a qual será condenada. Esse dado é claro no sentido do abuso da prisão provisória no Rio de Janeiro.

Os pesquisadores ainda tentaram entender o por quê essa situação de abuso sistemático da prisão provisória. De acordo com um dos juízes entrevistados as medidas cautelares não são implementáveis e não podem ser fiscalizadas, e como não funcionam, então, a opção adotada é manter a prisão provisória, ou seja, na dúvida, aplica-se a prisão provisória.

Algumas sentenças analisadas são muito ilustrativas, por exemplo, em uma delas o juiz declara que “o tráfico de drogas é o grande responsável pela guerra civil não declarada, sendo a conduta atribuída ao indiciado de natureza hedionda, em tese, relevante para a disseminação das substâncias entorpecentes, gera insegurança e fragilidade, demandando restrição ambulatorial do denunciado para o resguardo da ordem pública”. Ou seja, quem é acusado de tráfico é responsável pela guerra civil que acontece no Estado e, segundo o juiz, deve ficar preso. Para Ignácio Cano, responsável pelo levantamento, a estigmatização e demonização do tráfico acontecem de muitas formas, uma delas pelo uso e o abuso da prisão provisória.

Outra sentença muito interessante, que também vem à tona quando mencionamos o caso de Douglas e de Vinícius, que são pessoas negras, jovens e de origem relativamente humilde, ilustra a percepção dos juízes. Em uma sentença o juiz declara: “Diante da situação fática, não se encontram presentes requisitos que justificavam a prisão cautelar. Ressalto que a ré — uma mulher — possui o terceiro grau completo e profissão definida — é arquiteta — e ainda tem um Fiat Palio Flex 2007". Fica muito claro o critério de seletividade com o qual a prisão provisória é aplicada no Rio de Janeiro.

Vale ressaltar que na Constituição, a presunção da inocência é o princípio básico, e a prisão provisória é excepcional, aplicável apenas em algumas circunstâncias. Entretanto, os próprios juízes estão afirmando que no Estado do Rio de Janeiro os denunciados ficam presos até que se descubra o que aconteceu, que traguem as provas; os réus são obrigados a produzir evidências para provar a sua inocência, em vez de o Estado produzir provas para confirmar a culpabilidade.

A CDDHC tomou as seguintes medidas sobre o caso em questão:

  • Realização de audiência pública em março de 2014;
  • Caso Douglas — solicitação para FETRANSPOR das informações do bilhete único do usuário;
  • Atendimento aos familiares e amigos de Vinicius Romão;
  • Acompanhamento dos casos juntos a Polícia Civil

ENTREVISTA

“Eu fui vítima de racismo”

A pele negra, o penteado black power e o racismo fizeram com que o psicólogo Vinícius Romão, 27 anos, fosse confundido com o ladrão que havia roubado a bolsa de uma mulher na Rua Amaro Cavalcanti, no Méier, em 10 de fevereiro deste ano. Ele voltava do Norte Shopping, em Del Castilho, onde trabalhava, quando foi detido. Além da falta de provas, o procedimento em que a vítima o reconheceu foi realizado sem obedecer as determinações da legislação penal. Vinícius ficou 16 dias preso na Casa de Detenção Patrícia Acioli, em São Gonçalo.

O fato de o psicólogo ter trabalhado como figurante na novela “Lado a Lado”, da TV Globo, em 2012, foi crucial para que fosse libertado. A mobilização de seus amigos e familiares nas redes sociais e a atenção dada pela imprensa permitiram que as arbitrariedades cometidas pela Polícia Civil fossem denunciadas.

“Os meus direitos não foram vistos e uma sucessão de erros me levaram à prisão. Vocês não sabem como é estar preso e não poder provar a inocência. Nem uma ligação pude fazer.” — Vinicius Romão

CDDHC: Qual foi a importância da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania no seu caso?

Vinícius: Foi muito importante a comissão ter feito a audiência pública porque os casos não são raros, não são isolados. Eles acontecem com muita frequência. Por isso, é importante que seja mostrado, exposto e que sirva para pressionar as instituições.

“Me trataram como animal”

Douglas de Oliveira Moreira, 19 anos, tinha acabado de acordar quando, por volta das 5h30m, cerca de 15 policiais civis invadiram sua casa, na Rua Mina Ribeiro, na Pavuna, e, após insultos e agressões, o levaram preso. Douglas foi acusado de participar do roubo de um carro em Jardim Esplanada, Nova Iguaçu, em 27 de julho de 2013. Apesar de a investigação ter se desenrolado por quase seis meses, ele nunca foi chamado pela polícia para depor. Sua prisão foi decretada unicamente porque a vítima o teria reconhecido através de uma foto no Facebook. Ele permaneceu preso por um mês.

O jovem recebeu o direito de responder em liberdade porque, no dia do crime, ele estava trabalhando na Casa de Saúde Santa Terezinha, na Tijuca, como comprova o ponto biométrico do hospital e o registro de seu Bilhete Único. Menos de 30 minutos antes de o crime ocorrer em Nova Iguaçu, ele estava saindo da Praça Saens Peña num ônibus.

“Fui preso injustamente, reconhecido pelo Facebook. A descrição dizia que a pessoa era negra, alta, magra e de cabeça raspada. O que podemos concluir é que a polícia, a partir destas características, poderia prender o Rio de Janeiro inteiro. Me intitularam ladrão de carros de alta periculosidade.” — Douglas de Oliveira

CDDHC: Qual foi a importância da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania no caso?

Douglas: Se não fosse a comissão eu estaria preso até hoje. A juíza mandou um ofício para conseguir o registro do meu Bilhete Único no ônibus que peguei na Tijuca, mas até hoje ele não foi respondido. Se a comissão não tivesse mandado o ofício e pressionado, até hoje estaria preso. Além disso, minha família recebeu todo apoio.

RACISMO INSTITUCIONAL, JUSTIÇA CRIMINAÇ E GENOCÍDIO DA JUVENTUDE NEGRA

Por Bruno Cândido[1]

“Quando a ordem significa escravidão e opressão, a desordem é o começo da Justiça e da liberdade.” (Thomas Carlyle)

O racismo no Brasil

Um dos maiores desafios do Brasil é discutir os seus problemas internos, sendo até apelidado por grandes entidades de Direitos Humanos como “especialista em desconversar”[2]. O vulgo, para a infelicidade dos brasileiros, em especial os vulneráveis, tem grande carga de razão. Sem compromisso com soluções humanas para problemas sociais, caminhamos com enorme e assustadora carga de violações a direitos fundamentais. Dos tabus, em termos de dialogo, nenhum assunto supera a realidade racial do país. A rediscussão da escravidão do povo negro no Brasil com sua efetiva reparação e o debate sobre racismo enfrentam diversas dificuldades em nosso país, chegando ao nível da invenção de mitos e falácias para desarticular e desestimular qualquer reflexão e/ou indenização pelo o que foi considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como maior crime contra a humanidade. O Brasil foi descoberto há quinhentos e quatorze anos. Durante trezentos e cinquenta e oito anos vigorou o sistema de trabalho escravo, sendo o Brasil o país que mais recebeu africanos que foram escravizados, e o último país a abolir formalmente a escravidão. Ou seja, 69,64% da existência do país foi dedicado à escravidão de seres humanos, com base no mito de superioridades de raças. A lei Aurea, de 13 de maio de 1888, não pretendia incluir o negro socialmente, sendo sua abolição meramente formal, sem conferir igualdade material, posto que, livre, porém coisa. Neste sentido, afirma Lopes:

É preciso afirmar que o processo de libertação dos escravos não se deu por uma mentalidade humanística da elite brasileira, mas da emergência da reestruturação produtiva cujo fim do regime servil de trabalho era pré-condição. (1995)

A vigente Constituição da República Federativa do Brasil, além de repudiar o racismo tornando-o imprescritível, inafiançável e inalienável, prevê a erradicação das desigualdades como objetivo da República, ou seja, como um fim a ser alcançado. Após vinte e cinco anos de constituição cidadã e cento e vinte e seis anos da lei áurea, última lei do processo abolicionista, qual é a atual condição da população negra no Estado Brasileiro? Na visão romancista, seria imaginar que todos os brasileiros gozam de cidadania e plenos direitos e garantias fundamentais, que não há uma “questão negra” brasileira, posto que segundo o artigo 5° da carta magna, apenas pela sua existência, o Brasil é uma democracia racial. Há dois elementos desarticuladores da realidade racial no país: o primeiro é a criação ou defesa de um mito, o da democracia racial, com base na simples positivação de uma norma, como se a lei tivesse o poder mágico de fazer sumir a história e seus efeitos, ou ainda de inclusão social imediata. Embora o “mito da democracia racial” se constitua como marco na história do racismo brasileiro autores apontam que uma outra tese, a do “branqueamento” também fez parte de nossa agenda política e social. Pode-se dizer que essa tese se constituiu como pensamento dominante na elite que comandava o Brasil e assim permaneceu até a construção do “mito da democracia racial”. A tese do branqueamento era a crença na qual a partir da mistura entre brancos e negros, a raça branca (como sendo uma raça superior) predominaria sobre a negra (inferior) e haveria um melhoramento genético. O segundo é a técnica brasileira de invisibilizar e desconversar problemas, negando a existência de um desequilíbrio étnico-racial na sociedade brasileira. Para a classe dominante não existe uma questão negra no Brasil, desde 1988. Sobre este pensamento aduz o jurista Jorge da Silva:[3]

É uma posição cômoda, pois não são seus filhos que não terão acesso à educação; não são eles que terão as suas famílias desestruturadas; que serão obrigadas a ocupar as posições mais baixas na escala social, e que se constituirão em horas de despossuídos. (DA SILVA, 2008, p. 24).

Racismo é relação de poder de uma “raça” sobre outra, um simples olhar no campo de manifestação do poder desconstrói de plano a negação do problema ou a afirmação de igualdade, demostrando que embora abolida a escravidão, sofremos na sociedade brasileira a extensão dos efeitos dela, onde o racismo se manifesta de diversas formas, principalmente o racismo institucional.

O racismo institucional

O maior desafio da efetividade constitucional no que tange os Direitos Humanos no Brasil é discutir a hegemonia racial brasileira e sua dinâmica de poder, principalmente quando a questão envolve a justiça criminal e seus agentes. A internalização do racismo nas instituições não é algo novo na sociedade brasileira, para determinação de privilégios era fundamental a utilização de instrumentos públicos, conforme assevera o jurista Jorge da Silva:

Já no Segundo Império e início da República havia a crença de que o Brasil estava livre do problema relacionando ao preconceito racial e a solução encontrada para enfrentar essa situação voltou-se para o branqueamento da população através da miscigenação seletiva e política de povoamento e migração europeia. Assim, quanto mais branca fosse a pele da pessoa mais privilégios e poder de ascensão ela teria, em contrapartida qualquer cor que não fosse branca passaria a ser desvalorizada e os que as possuíam passaram a ser considerado os outros.

Desta forma, a garantia de ascensão e privilégios está intimamente ligada ao poder instituído, que comanda conforme a subjetividade do grupo representado. Assim, “Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder.” (Aamer Rahman, 2013). Em recente visita ao Brasil o Grupo de Trabalho das Nações Unidas (ONU) sobre Afrodescendentes apontou um grande contraste entre a precariedade da situação dos negros e o elevado crescimento econômico do país. Destacou-se que, entre negros e brancos, existem desigualdades de acesso à educação, à justiça, à segurança e a serviços públicos, identificando racismo “nas estruturas de poder, nos meios de comunicação e no setor privado”. Segundo os representantes da ONU, apesar de serem metade da população brasileira, os negros estão “sub-representados e invisíveis”. Desta forma, é evidente que para os oprimidos, resta o controle exercido pelo poder dominante, servindo o sistema de justiça, na ótica do racismo institucional, como o instrumento garantidor de interesses racistas: privilégios.

No cenário de militarização da segurança pública para controle social de um grupo determinado, o negro é destinado à frente de guerra. Segundo o relatório anual de desigualdades raciais houve queda de 28% no número de jovens brancos assassinados. Já o número de homicídios contra os jovens pretos e pardos se elevou em 13,5%. O peso relativo aos negros até 24 anos assassinados se elevou de 57,8%, em 2001, para 67,8% em 2007. Através das manchetes de jornais são nítidos os diversos e frequentes confrontos entre policiais e “traficantes”. A política criminal de guerra às drogas expõe jovens negros a constante enfrentamento. A guerra às drogas gera perda dos dois lados. De um lado o recrutamento da juventude negra pobre através da rentabilidade do mercado com ganhos “fáceis”, do outro, processo seletivo facilitado a policiais negros e pobres, gerando, nos frequentes conflitos motivados pelo proibicionismo, o extermínio em massa do povo negro: etnocídio.

Justiça Criminal e o Genocídio da População Negra

O sistema de justiça criminal é resultado do trabalho conjunto dos poderes da União. Conforme já analisamos, a estrutura de poder do Brasil está eivada de racismo nos três poderes. Há uma clara dicotomia no tratamento do branco e do negro, quando o assunto é justiça criminal. Analisando as esferas conjuntamente, o resultado é o assustador genocídio da Juventude Negra, denotando uma cultura de extermínio, especializado pela Política Criminal de Drogas.

O Legislativo

Na primeira análise observaremos o poder legislativo. Em relação ao racismo, o histórico legislativo de criminalização da população negra demostra que o poder de criar leis funciona como tática de controle social, ou seja, como instrumento de adequação social: “O movimento abolicionista funcionou como um grande estandarte dos cidadãos brancos que pretendiam, de maneira racional e planejada, adequar o negro a um lugar que não gerasse incomodo à ordem emergente. (SANTOS, 2006, PP. 120).”

A articulação para exclusão funcionava ou com criminalização ou com proibição da população negra, atuando em todas as esferas da vida. O Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890), nos artigos 402 e 403, criminalizava a capoeira, já a lei 601, de 18 de setembro de 1850, com receio de que a abolição da escravatura permitisse que os escravos adquirissem terras, organizava a propriedade privada, proibindo o acesso de negros a terra, bem como os homens negros após a abolição eram proibidos de trabalhar, somente mulheres negras trabalhando como quituteiras ou babás de leite. Hoje, o cenário não é diferente, a criminalização opera com a mesma força de antes, o que antes era a capoeira, nos termos de cultura negra, é agora o baile funk proibido de ser ouvido nas ruas de São Paulo ou nas comunidades militarizadas do Rio de Janeiro. O culto aos orixás da religião africana que não podia ser prestado na senzala se traduz hoje na decisão do juiz do Tribunal Regional Federal de que Candomblé e Umbanda não são religiões e sim seitas, portanto poderiam sofre situações vexatória de intolerância religiosa em redes sociais. Adriana Fascina diz em seu artigo “Quem tem medo do proibidão?”: “Toda proibição tem uma história. Não existem condutas naturalmente proibidas, pois a proibição depende de regras e convenções sociais que não são atemporais e nem mesmo universais. Assim, coisas que não são proibidas em numa época ou numa sociedade específicas, não o são em outras. O que é considerado transgressão, ou mesmo crime, muda de acordo com o tempo e com os valores culturais que predominam no momento.”

O Executivo

O executivo, como o próprio nome sugere, é o braço executor da vontade do Estado. No cenário do racismo institucional, a força policial, sempre foi usada para imposição da “ordem”, do controle social, através do encarceramento, genocídio indireto ou da execução sumária, extermínio direto. Na atuação do executivo, vale lembrar a famosa lei da vadiagem, prevista no capítulo IV art. 295 da lei de contravenções penais, que autorizava a prisão e legitimava a execução sumária dos negros encontrados em situação de vadiagem e mendigagem, posto que a lei e os costumes proibiam a contratação de homens negros e o acesso a terras.

Interessante é o nascimento do termo “atividade suspeita”, o apelido da seletividade na abordagem policial em critérios racistas e classistas. Sidney Chalhoub[4] chamou de “estratégia generalizada”, utilizada para controle das populações negras recém-libertas no final do século XIX. Hoje essa estratégia continua entranhada na cultura e nos procedimentos policiais como forma de manter sob controle os deslocamentos e a circulação pela cidade de segmentos sociais bem delimitados.

O olhar seletivo gera um peso racista na ações dos agentes da lei. A criminóloga Gizlene Neder[5] diz: “O dilema na formatação da família brasileira “criava um constrangimento”: como incluir ex-escravos? Toda estrutura agregadora da mãe negra era ignorada”. Conjugando Chalhoub e Gizlene entendemos que o “medo branco” cumulado a constrangimento da inclusão, tornava os agentes inclinados a um racismo institucional, cujo resultado se estende até hoje em forma de extermínio. O olhar seletivo preenche os cárceres, dispara revolves, nega emprego, saúde e educação. O olhar seletivo nega cidadania!

O Judiciário

No âmbito judicial ocorre o “Direito Penal do Negro”, quando o julgador, aperando conforme o imaginário social do racismo estruturado, tem ou reproduz uma subjetividade racista, ou seja, condena o agente com base na cor da sua pele. A política criminal de drogas trouxe grandes prejuízos para a sociedade brasileira, criou o caos no sistema carcerário e especializou o racismo, criando a imagem do inimigo “número um” do estado, que deve ser exterminado a todo custo.

Com grande influência do pensamento de Cesare Lombroso, o sistema penal atual, no que tange a política de drogas, é regido pela discricionariedade do artigo 28 da 11.343/06, onde o juiz julga com parcialidade, aplicando a subjetividade racista, legitimado por um sistema criminal racista. Sobre essa questão, destaca-se o pensamento do juiz de execuções penais Luiz Carlos Valois:

Os promotores gaúchos têm um costume estranho de anexar as fotos dos acusados em todas as suas denúncias. Digo estranho porque o que se deveria julgar é apenas o fato e não a pessoa, sendo que a figura daquele cidadão a ser julgado pode exercer influência desnecessária no processo. E a história do Direito Penal tem sido a da tentativa de se afastar qualquer julgamento sobre a pessoa do criminoso, qualquer julgamento que vá além do fato cometido. Ninguém deveria poder ser julgado por sua história de vida e muito menos pelas cicatrizes, defeitos, manchas ou sinais que essa vida nos deixa. O Rio Grande do Sul é conhecido pela predominância de pessoas brancas, algumas louras de olhos claros, seja pela imagem exposta pela mídia, seja por uma simples busca no Google, e é esta a impressão também quando chegamos no Fórum ao prestar atenção no entra e sai de advogados. Até aí tudo bem, pois a nossa colonização se deu de forma realmente diferenciada, mas ao olhar as fotos juntadas nos processos pelos promotores tive um susto:

a maioria esmagadora dos acusados é negra. O racismo no Brasil sempre foi de intrincada definição, encoberto por muitos e dissimulado por grande parte da população, e eu não precisaria ir à Porto Alegre para constatar que a guerra às drogas e o Direito Penal como um todo tem servido como forma de Apartheid.

Basta que se entre em qualquer penitenciária brasileira para se perceber o contraste entre a cor da pele dos encarcerados e a cor da pele dos que estão nos shoppings. Contudo, nunca é fácil comprovar isso com estatísticas. Muitos são fichados, catalogados como brancos, mas são morenos, mulatos. Nos processos que pesquisei isso acontecia também, pois alguns eram visivelmente negros e constavam da denúncia como brancos. (VALOIS; LUIS CARLOS, 2013, http://www.pco.org.br/nacional/denunciados-por-trafico-de-drogas/azoz,o.html).

No âmbito do judiciário, o art. 28 da Lei 11.343 de 2006 evidencia o direito penal do autor, pune-se pelo o que se é, e não pelo fato cometido. O negro é punido porque é negro. A discricionariedade do juiz em discernir se a substância apreendida é de usuário ou de traficante, torna-se um instrumento de racismo.

O sistema assemelha-se ao escravocrata pois o traficante é coisificado. É um ser desprovido de personalidade, para estes não incidem os direitos do cidadão. Responsável pelo caso do pedreiro Amarildo, — negro, morador de comunidade carente, vitima da militarização das favelas, as UPPs, onde se tornou um dos desaparecidos da democracia — Orlando Zaccone registra a seguinte informação na busca pela verdade real, na qual o rótulo de “traficante” tornava legítima o desaparecimento do pedreiro:

No Brasil, o criminoso identificado como inimigo perde o estatuto da cidadania. Se o Amarildo fosse identificado como traficante, a forma como morreu passaria a não ter mais importância. (2013, Folha de São Paulo)

Nilo Batista[6], em seu discurso proferido na abertura do XV Congresso Internacional de Direito Penal, ao referir-se à escravatura negra no Brasil, ressalta a articulação do direito penal público a um direito penal privado-doméstico, implementação de um sistema penal genocida, cúmplice das agências do Estado imperial-burocrata no processo de homicídio, mutilações e tortura de negros. Ele afirma: “Essas matrizes do extermínio, da desqualificação jurídica presente no ‘ser escravo’; da indistinção entre o público e o privado no exercício do poder penal, se enraizaram na equação hegemônica brasileira[7].” São essas raízes que frutificam na implementação da ordem burguesa no final do século XIX, na recepção da doutrina da segurança nacional, a mesma que, instituída pela Lei 5726, introduzia a obrigação dos diretores de escola a denunciar os alunos envolvidos com drogas.

O jurista Salo de Carvalho chama de ideologia da diferenciação o fato de a norma penal produzir tratamento distinto para usuários e traficantes, sendo o primeiro, doente e o segundo, delinquente:

Neste incipiente momento de criação de instrumentos totalizantes de repressão, o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos envolvidos com drogas, fundado duplo discurso que estabelecerá a ideologia da diferenciação. A principal característica deste discurso é traçar nítida distinção entre consumidor e traficante, ou seja, entre doente e delinquente, respectivamente. Assim, sobre os culpados (traficantes) recairia o discurso jurídico penal do qual se extrai o estereótipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o discurso médico-psiquiátrico. (2013, v.6, p. 65)

No entendimento da política criminal de drogas a segregação da detenção para negros era mais reeducadora do que a permanência na escola. Para o branco, o atestado médico, assegurava a reeducação com a família. Sob a égide do confinamento e do extermínio, o sistema penitenciário brasileiro transforma a prisão de castigo em remédio. A ilusão ressocializadora mascara a crueldade dos processos de “regeneração[8]”. Assim, compreende-se que no contexto no qual se inserem as ocorrências no Estado do Rio de Janeiro em relação à juventude negra, não se adequam a vontade da carta magna, não estando de acordo com o previsto no texto da Constituição.

PRINCIPAIS DENÚNCIAS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

A opção pelo crescente encarceramento, com ênfase em jovens negros e por crimes associados s drogas ilícitas, o crescimento do déficit de vagas nas unidades do Estado do Rio de Janeiro, a banalização das prisões provisórias, como analisado, apontam para as razões do permanente número de denúncias do sistema de privação de liberdade do Estado. O amadurecimento da atuação do Comitê e Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura no Estado deve servir para aprofundar o debate e avançar as práticas da política prisional.

Para tal, iniciado um novo ciclo governamental a partir de 2015, além do esforço de repensar a política prisional e política de segurança, torna-se criterioso que as iniciativas propostas perpassem os órgãos do executivo e tragam junto o Judiciário e o Ministério Público, já que as soluções até aqui propostas, como a lei de cautelares, vêm fracassando em seu potencial justamente quanto à sua aplicação, já que as mudanças não foram incorporadas na rotina dos promotores de justiça e Varas Criminais.

Vale observar também que os crescentes encarceramentos que apontamos nesse relatório, junto com os índices de segurança, ajudam a definir uma sensação de insegurança da população em geral o que também gera uma consequência direta na composição da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e do Congresso Nacional. Pelo menos 5 candidatos eleitos a Deputado Estadual são profissionais da área de segurança, como policiais militares da reserva e delegados de polícia, além daqueles que defendem a bandeira do endurecimento penal, o que se repete nos representantes do Congresso.

A presença de parlamentares com vivência na área da segurança pública deveria contribuir na produção de políticas capazes de promover mudanças políticas e multiplicar as formas de encarar o sistema penal, contudo, quando há contribuição, ainda é reduzida.

A seguir apresentamos os principais denúncias que envolvem o sistema penitenciário do Estado e de maneira complementar, o artigo do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro apresenta a problemática envolvendo o sistema socioeducativo ao longo de 2014.

  • Abusos e violência no transporte dos presos: atuação do SOE-SEAP

Diante de inúmeras denúncias ao longo dos últimos anos, a CDDHC realizou no dia 13 de maio de 2014, audiência pública com “A gestão do Serviço de Operações Especiais (SOE) da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (SEAP)”. Com a presença de representantes do Ministério Público, Defensoria Pública, SEAP, sociedade civil e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ) foram apresentados inúmeros casos e problemáticas ocorridas durante o transporte dos presos no Estado, seja no encaminhamento para atendimento médico-hospitalar, seja para o comparecimento em audiências nas Varas Penais.

O MEPCT/RJ ressaltou que desde julho de 2011, em sua primeira visita ao sistema prisional, até o dia 9 de maio de 2014, o órgão ouviu em todas as unidades prisionais e em todas as galerias denúncias a respeito de agressões praticadas pelo SOE, o que configura uma prática comum. Quando a reclamação é feita na primeira galeria até a última, há que se levar em consideração o que foi ouvido. A reclamação sobre o transporte realizado pelo Soe, podemos dizer, que é a primeira queixa feita pelos presos, sejam homens ou mulheres.

Os presos relatam que são algemados de forma muito penosa e brusca durante o transporte. Eles são amontoados em viaturas com capacidade para oito ou dez pessoas, mas que, por vezes, comportam 12, 15, 20 internos a serem transferidos. Muito acima, portanto, de sua capacidade. Cabe evidenciar que as viaturas não possuem cinto de segurança e são em formato de camburão, assim, como os presos viajam soltos, balançando dentro caminhão, vão se machucando, machucando uns aos outros, até que possam chegar ao destino.

Nos relatos referentes à transferência para o tratamento médico, para a UPA ou para o Hospital Hamilton Agostinho, usualmente escuta-se dos inspetores a seguinte frase “a gente quebra e o médico conserta”. Há que se fazer uma ressalva pois muitos presos afirmam ao MEPCT/RJ que preferem não ser atendidos no hospital, porque a ida até o hospital vai ser pior para eles do que ficar sem receber o atendimento médico

Em 2012, o MEPCT/RJ realizou uma visita ao complexo de Japeri, unidade Cotrim Neto. Na unidade o órgão escutou de todos os internos, em todas as celas, que havia graves problemas com o transporte do SOE, mas que, além, disso, havia, pelo menos naquele momento, uma unidade, uma base do SOE em frente à unidade do Cotrim Neto e que ali também, dentro daquela base, as agressões eram realizadas.

Alguns presos se apresentaram e relataram que já haviam sido agredidos e torturados dentro daquela base. Infelizmente, nem todos se colocam à disposição, para o registro oficial da agressão, para que se possa pensar na responsabilização dos agentes. De qualquer forma, foi um fato relatado, não só, obviamente, para a SEAP, como para o Comitê de Prevenção à Tortura e para as demais autoridades, porque, mais do que pensar na responsabilização criminal desse agente, há que se pensar em desconstruir a cultura do “esculacho”.

Em 2013 o caso que chamou mais atenção, pelo menos que chegou a nós, foi o caso dos manifestantes que foram agredidos no transporte da cadeia pública Patrícia Acioli para a cadeia pública Bandeira Stampa, Bangu 9, no complexo de Gericinó. Além de serem transportados em um veículo que não tinha a capacidade para o número de pessoas presas, eles foram agredidos na entrada da unidade.

Em março de 2014 o MEPCT/RJ teve acesso a um boletim de ocorrência sobre lesões corporais efetuadas pelo SOE em um interno, que relatou ser agredido dentro da UPA em companhia de mais ou menos seis ou sete outros internos. Ele conta que eles receberam tapas na cara, tapas nas nádegas e chineladas, além disso apanhavam sem roupa e na chuva. Esse interno disse ainda que estava desidratado, que por isso foi levado à unidade de pronto atendimento. Mesmo tendo feito registro de ocorrência, foi possível perceber que o interno não pôde identificar os agentes, porque esses não utilizavam identificação. Apesar do interno não ter conseguido realizar a identificação, é possível saber os autores do fato apenas levantando os nomes dos agentes que estavam de plantão na data indicada.

Devido às más condições das viaturas que realizam o transporte dos presos, a Defensoria Pública, através do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDH) propôs, no final de 2012, uma Ação Civil Pública que foi distribuída para a 6ª Vara de Fazenda Pública questionando a falta de investimentos. O fato de serem viaturas que se encontram sem a manutenção adequada coloca em risco, não só a vida dos internos, mas também dos agentes que os acompanham.

Ainda nesse sentido, o NUDH enviou ofícios para o CONATRAn e para o DETRAN com alguns questionamentos. Ao DETRAN foi perguntando se as viaturas da SEAP realizavam vistoria, o que indicou pela negativa da realização. Para o CONATRAN foi perguntado se as viaturas da SEAP ou da polícia, enfim, estariam sujeitas às mesmas normas, deveriam fazer a vistoria anual e se adequar a todas as normas de trânsito, indicando o órgão que sim. Por ser uma viatura de transporte de presos, ela não tem um regramento especial, elas devem se submeter a todas as regras a que são submetidos os veículos automotores, de modo geral.

  • Saúde no sistema penitenciário:

Os últimos anos foram marcados, no Rio de Janeiro, por embates no que diz respeito ao tema da saúde nas prisões. Se é fato que o sistema de saúde prisional deste Estado tenha sido sempre uma referência no âmbito nacional e um exemplo de boas práticas — tendo sido o primeiro a ter convênio com o SUS ainda na década de 1990 — um desmonte das condições de trabalho e atendimento vem assolando, aceleradamente, as condições de prestação deste serviço. Em 2014 a CDDHC recebeu inúmeras denúncias e pedidos sistemáticos por parte de parentes de presos de dialogo com a SEAP para garantir assistência médica aos apenados, comprovando a precariedade do serviço já descrita nos relatórios anuais anteriores da CDDHC.

De acordo com o levantamento feito pela equipe técnica da CDDHC Alerj, responsável pelo atendimento ao público, foram registrado no sistema mais de 20 casos graves envolvendo a dificuldade de atendimento médico aos presos, além de pedidos para viabilizar a continuidade dos tratamentos quando iniciados em outras unidades. Dentre os casos de destaque, o número de portadores do vírus HIV que contraíram tuberculose no sistema chama atenção. Mesmo não havendo informações consolidadas sobre o número de casos, é importante considerar que a falta de profissionais nas unidades e o desmonte do programa de controle de tuberculose aponta para um crescimento vertiginoso de casos.

Nesse sentido, presentes da audiência pública realizada no dia 13 de maio de 2014, o Ministério Público Estadual através da 3ª Promotoria de Tutela Coletiva da Saúde da Capital, propôs uma ação civil pública objetivando garantir o atendimento do transporte sanitário dos presos tanto para as unidades de saúde prisional, ou seja, das unidades prisionais, para o Hospital UPA Hamilton Agostinho, como também transporte para as unidades de saúde do SUS, que, por regulação, recebem então as demandas que não podem ser atendidas no âmbito da saúde prisional. Essa ação foi proposta pela 3ª Promotoria após dois anos de investigação no âmbito de um inquérito civil em 27 de janeiro, junto à 8ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital e houve indeferimento da liminar com a seguinte decisão:

Trata-se de ação civil pública com pedido de antecipação da tutela na qual o Ministério Público pretende a adoção, pelo Estado do Rio de Janeiro, de uma série de medidas visando minimizar os problemas de transporte e atendimento pré-hospitalar à população carcerária em todo o território do Município do Rio de Janeiro, preservando-se o direito à saúde e à integridade física dos presos. Analisando a petição inicial e os documentos que a acompanham, verifico que o eventual deferimento da liminar à antecipação de tutela pretendida pelo Ministério Público implicaria na realização de gastos públicos consideráveis. Assim, diante do óbice erigido pelo artigo 2º da Lei 8.437, foi feita uma interpretação desse artigo no sentido de que não poderia ser concedida a liminar sem a oitiva do poder público. Indefiro, por hora, a medida.

O Tribunal de Justiça mais uma vez afasta sua responsabilidade de garantir a fiscalização sob o executivo, uma vez que, se tratando de presos, interpreta a necessidade como gasto público considerável.

Nesse sentido, há também uma segunda ação civil pública proposta em 11 de abril de 2014, acerca das condições de funcionamento do Hospital Penal e UPA Hamilton Agostinho, que se situam dentro do complexo de Bangu, após realização de diversas inspeções pela 3ª Promotoria de Saúde no complexo prisional. Como na outra iniciativa, a segunda ação civil obteve deferimento da liminar também contra o Estado, sem a oitiva do Estado, como o mesmo argumento de geração de gastos, motivo pelo qual o juiz entendeu impossível deferir. O objetivo da tutela antecipada, dessa liminar, foi estabelecer uma restrição ao período de contratação da organização social, o Ministério Público não está impedindo a contratação, nem pedindo que a Justiça impeça a contratação da OS. O Ministério Público está questionando judicialmente a utilização da Organização Social em detrimento de administração direta ou indireta; e está pedindo judicialmente — e teve o deferimento da decisão — que o contrato que está sendo realizado agora seja limitado a doze meses de vigência.

O que o Ministério Público verificou nas unidades prisionais é que de fato há um total sucateamento e uma necessidade de alocação de recursos humanos grave e urgente, e, portanto, apesar de entendermos e verificarmos a presença de inconstitucionalidades e ilegalidades, nós requeremos que esse contrato tenha duração de apenas doze meses, com o objetivo, primeiro, que nesse período haja algum atendimento para os presos, muitas vezes agonizantes e sem nenhuma possibilidade e perspectiva de transferência para lugar nenhum.

Assim, o pedido do Ministério Público é que o contrato tenha uma limitação para apenas doze meses, pedido este deferido, e que haja uma definição clara por parte da Secretaria Estadual de Saúde e da Secretaria de Administração Penitenciária de quem e quando colocará quais recursos na UPA e no Hospital Hamilton Agostinho. O deferimento foi no sentido de que fosse estabelecida multa diária de dez mil reais para o Estado em caso de descumprimento das seguintes obrigações: limitação do prazo do contrato com a organização social para doze meses, tendo em vista a situação precária de atendimento aos presos e a urgente necessidade de alocação de recursos humanos; determina ao estado a imediata definição de responsabilidades administrativas e financeiras entre a SEAP e a SES quanto à gestão, implantação, alocação de recursos e operação do Hospital UPA Hamilton Agostinho. Determinou-se ainda que o Estado, no prazo de quarenta e cinco dias, apresente cronograma para recomposição e expansão do atendimento do hospital e efetivo funcionamento da UPA, contemplando recursos humanos com detalhamento das ações administrativas necessárias para dotação de novos profissionais de saúde, médicos e não médicos e profissionais administrativos em número suficiente para a adequada prestação do serviço de saúde no hospital e UPA com clara definição das obrigações e responsabilidade da SEAP e da SES na gestão do hospital e UPA.

Além disso, o Ministério Público ainda pede que a estrutura física com substituição das camas de alvenaria e instalação de adequado sistema de ventilação na UPA, refrigeração; reparo de infiltrações ou integral atendimento às exigências para garantia de adequadas condições de segurança para os internos e para os profissionais em atuação na unidade de saúde prisional e insumos hospitalares; estrutura gerencial e regulatória de acesso aos serviços do hospital de tecnologia da informação; cronogramas para transferência dos serviços que forem operados pela OS durante o ano de vigência do contrato para estruturas de administração direta ou indireta do Estado com vedação de retrocesso e sem descontinuidade dos serviços prestados quando do encerramento do contrato de doze meses com a OS e o cronograma para expansão dos serviços do hospital para pleno funcionamento da unidade e com capacidade de atendimento proporcional a população prisional ou integral garantia de acesso aos presos à assistência hospitalar.

- Acesso à família: carteirinhas de visitação e o fim da revista vexatória

Cabe ainda mencionar que a situação de degradação humana não atinge apenas ao preso. Apesar de haver o princípio da personalidade da pena que em linhas gerais se resume a dizer que a pena não passará da pessoa do condenado, na prática percebemos que os familiares dos presos acabam recebendo igual tratamento degradante nas visitas. Há uma efetiva criminalização do familiar através de revistas que consiste na retirada de toda a roupa do cidadão visitante e no pedido de que o mesmo se agache por três vezes na frente de um agente do mesmo sexo, o que é extremamente humilhante e desnecessário, haja vista que, com o advento de novas tecnologias como o scanner, similar ao usado em aeroportos e por serviços de segurança em geral, já é possível realizar a revista sem se socorrer de tais métodos nefastos, que afrontam os direitos e garantias individuais.

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade no dia 5 de novembro de 2014 o Projeto de Lei (PL) 7764/2014 que sugere acabar com as revistas vexatórias realizadas em presídios brasileiros. A proposta estabelece o uso de equipamentos eletrônicos, como detectores de metais e de raio-x, para a revista íntima obrigatória, feita em pessoas que queiram visitar presos. O texto agora seguirá para as comissões de Segurança e depois para a de Constituição e Justiça antes de passar por sanção presidencial.

Alvo de uma campanha nacional, a revista vexatória é uma prática recorrente, porém ilegal. Não há nenhuma permissão na lei para ela. O número de 0,03 de apreensões revela que ela é insignificante e deixa claro que o objetivo principal não é alcançado como aponta o levantamento da Campanha Fim da Revista Vexatória no Brasil[9], no fim de abril. O que se consegue são outros objetivos não declarados, como o fim do contato do preso com a família.

Nesse sentido, existem dois projetos de lei (PLs)[10] que visam proibir a prática da revista vexatória no Estado do Rio de Janeiro, tanto no sistema penitenciário, como no sistema socioeducativo. Os PLs ainda não foram votados no plenário da Assembleia em função da constante falta de quórum para sua aprovação.

Vale mencionar que em setembro deste ano os adolescentes internados na unidade de Volta Redonda, promoveram rebelião após um episódio em que os internos acusam os agentes do DEGASE de abuso com as mães de um grupo de jovens.

No mesmo sentido é o calvário que centenas de familiares passam para conseguir ter acesso à carteira de visitação aos presos no sistema penitenciário do Estado. A CDDHC recebeu ao longo de 2014 inúmeros pedidos/denúncias a respeito da morosidade para emissão das carteiras de visitação, além do risco apontado por alguns familiares quanto à localidade do setor de credenciamento dos familiares, em função de disputas entre facções.

A CDDHC tomou as seguintes medidas sobre os casos em questão:

  • Realização de audiência pública no dia 13 de maio de 2014;
  • Visita a Unidade do Degase de Volta Redonda em outubro de 2014;
  • Encaminhados dos casos individuais referente as carteiras de visitação para Coordenação da Secretaria de Administração Penitenciária;
  • Encaminhamento para a Coordenação de Saúde da Secretaria de Administração Penitenciária dos casos denunciados na CDDHC Alerj;

O SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO RIO EM 2014

Por Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro[11]

O ano de 2014 tem sido um ano de grandes desafios na efetivação dos direitos humanos dos adolescentes privados de liberdade no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. Inúmeros foram os fatos e denúncias que chegaram ao conhecimento do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura que elevam o Departamento Geral de Ações Socioeducativas — DEGASE ao órgão que, em 2014, mais foi vistoriado por nós. A seguir trataremos de algumas situações encontradas durante o trabalho desenvolvido ao longo do ano, como elementos de exemplificação da dura realidade à qual os adolescentes autores de atos infracionais fluminenses estão submetidos.

Destarte, é importante destacarmos que no final de 2013 foram inauguradas duas unidades de internação e internação provisória no interior do Estado, uma em Campos, região norte do Estado, outra em Volta Redonda, região sul. A inauguração destas novas unidades representaram um movimento do DEGASE de efetivação dos direitos à convivência familiar e comunitária, uma vez que até então, todas as seis unidades de internação existentes no Estado do Rio de Janeiro estavam localizadas na região metropolitana, sendo cinco destas na cidade do Rio de Janeiro. Desta forma, o ano de 2014 tem início com uma perspectiva de mudança para melhor, na medida em que com a inauguração de novas vagas, a lógica apontaria para a redução da superlotação e, consequentemente, a melhoria das condições de privação de liberdade.

Infelizmente, essas expectativas foram frustradas por alguns acontecimentos. Os mais significativos, e preocupantes, foram as mortes de dois adolescentes ocorridas na unidade CENSE Don Bosco, antigo Instituto Padre Severino. Ambas as mortes possuem aspectos comuns que evidenciam fragilidades em procedimentos de segurança adotados pelas equipes do DEGASE. Ambos os meninos que vieram a óbito, um em março e outro em julho, não possuíam antecedentes infracionais e foram apreendidos pela prática de ato infracional análogo ao tráfico de entorpecentes, situação esta que não poderia ensejar a internação do jovem, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça consolidado na súmula 492 deste tribunal superior. Neste sentido, insta a observação da responsabilidade do Ministério Público e do Poder Judiciário nestes casos ao determinarem o cumprimento de medidas privativas de liberdade em casos em que estas medidas são flagrantemente ilegais. Quanto aos procedimentos de segurança, no momento em que os jovens foram recepcionados na unidade CENSE Don Bosco, foram submetidos a breve triagem, na qual os mesmos teriam declarado não ter pertencimento a nenhuma facção criminosa, embora residissem em comunidades comandadas pelo Comando Vermelho. Diante desta informação, foram alocados em alojamentos/celas com outros adolescentes desta facção, onde acabaram mortos por, supostamente, comprarem drogas em comunidades dominadas por outro grupo. Estas duas mortes foram amplamente noticiadas por veículos de comunicação e geraram vistorias ad hoc do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura à unidade. Após algum tempo, a gestão do DEGASE optou por alterar os procedimentos de segurança e evitar misturar adolescentes que se encontrassem em sua primeira passagem pelo sistema socioeducativo. Para isso, criou uma nova unidade de internação provisória apenas para jovens nestas circunstâncias (primeira passagem), o CENSE Ilha. Esta unidade se encontra localizada no espaço em que antes funcionava o CRIAD Ilha, unidade de semiliberdade.

Outro ponto que merece uma atenção especial de todos é o funcionamento de todo o sistema durante a Copa do Mundo 2014. Como é comum durante estes megaeventos, houve sistemática ação de recrudescimento da política criminal seletiva contra aqueles contingentes de pessoas considerados indesejáveis pelas autoridades públicas. Prova disso é o aumento da população de adolescentes internados no DEGASE neste período. Para exemplificar esta afirmação, o gráfico a seguir apresenta o quantitativo de adolescentes privados de liberdade no Estado do Rio de Janeiro no dia 04 de julho dos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014.

Fonte: Degase

Nos chama muito a atenção o crescimento desproporcional do número de adolescentes privados de liberdade no dia 04 de julho de 2014, se comparado aos anos anteriores. Um aumento de mais de 40% (de 1005 em 2013 passou para 1487 em 2014) no número de jovens encarcerados. Diante deste quadro, é impossível não apontar a evidente relação entre este fenômeno e a realização da Copa do Mundo de Futebol, entre o dia 12 de junho e 13 de julho de 2014. Esta constatação nos impõe a leitura de que se instalou no Estado do Rio de Janeiro, quiçá no Brasil, um verdadeiro Estado de exceção, em que adolescentes eram apreendidos pelas forças de segurança e mantidos privados de sua liberdade pelo Poder Judiciário com vistas à higienização da cidade sede da partida final da Copa do Mundo de Futebol.

Importante aqui destacar que os profissionais do DEGASE entrevistados pelo MEPCT-RJ confirmaram esta impressão da equipe, afirmando que as audiências de apresentação e continuação dos processos de conhecimento[12] na Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital do Rio de Janeiro foram todas adiadas para o período posterior à Copa do Mundo, evidenciando que o Poder Judiciário, neste caso, consentiu com a política criminal de excepcionalidade adotada pelo Estado do Rio de Janeiro, mantendo os adolescentes apreendidos internados provisoriamente, mesmo nos casos em que não haveria razões para a manutenção da privação de liberdade.

Este processo de precarização das condições de internação e superlotação trazem inúmeras consequências para o ambiente das unidades do DEGASE. A mais significativa delas neste ano foi a rebelião ocorrida na unidade CENSE Irmã Assunción de La Gandara Ustara (CENSE IAGU), em Volta Redonda, no dia 23 de setembro. De acordo com relatos dos adolescentes colhidos pela equipe do MEPCT-RJ, por volta das 12h do dia 22/09, durante a saída para o almoço se iniciou um movimento dos adolescentes baterem a porta dos alojamentos que se estendeu, por conseguinte, por todos os módulos. Após diversas batidas, a estrutura de alvenaria que sustentava as portas dos alojamentos cedeu e os mesmos ocuparam os corredores e posteriormente se direcionaram para o telhado da unidade. Cabe mencionar que apesar de a unidade ter sido inaugurada apenas nove meses antes do ocorrido, pôde-se observar que a estrutura física comportava matérias de má qualidade.

Na ocasião, os adolescentes haviam feito algumas reivindicações do cotidiano institucional como maior tempo de banho de sol e extensão do horário de TV. Contudo, segundo informações colhidas, o motim se deu por um acúmulo de situação de maus tratos cotidianos que os adolescentes vem sofrendo na unidade, sendo o agravamento da superlotação um dos elementos mais basilares. Para se ter uma ideia, se na última inspeção realizada pelo MEPCT-RJ havia 120 adolescentes para uma capacidade de 90, no momento do motim a população de adolescentes chegava a 160 quase chegando ao dobro do quantitativo mínimo.

Esse quadro de superlotação vem se agravando nos últimos anos. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, o número de adolescentes apreendidos no Estado do Rio nos últimos anos tem se elevado exponencialmente, passando de um total de 3466 (três mil, quatrocentos e sessenta e seis) em 2011, para 7222 (sete mil, duzentos e vinte e dois) em 2013. Diante deste panorama, podemos afirmar que a erradicação desta grave violação dos direitos destes adolescentes não passa por aumento de vagas ou inauguração de novas unidades Estado afora. Faz-se imperiosa uma radical mudança da prática judicial e da política de segurança pública, que criminalizam o jovem, negro, pobre e morador das periferias urbanas. É necessário que o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública funcionem de forma satisfatória e apliquem a legislação de proteção ao adolescente, efetivando o caráter excepcional das medidas socioeducativas privativas de liberdade.

[1] Jovem, advogado, militante do movimento negro.

[2] http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/25370-especialista-em-desconversar

[3] DA SILVA. Jorge. 120 anos de abolição. Hama. 2008. P.42.

[4]CHALHOUB. Sidney. Visões da liberdade. São Paulo, companhia de letras, 1990.

[5] NEDER. Gislene. Criminalidade, justiça e mercado de trabalho no Brasil. São Paulo, Edusp, 1986 p.5.

[6] BATISTA. Nilo. “Fragmentos de um discurso sedicioso”, in Discursos Sediciosos — crime, direito e sociedade, nº 1. Rio de Janeiro, Relume-Dumará,1996, p.71.

[7] BATISTA. Nilo. “Fragmentos de um discurso sedicioso”, in Discursos Sediciosos — crime, direito e sociedade, nº 1. Rio de Janeiro, Relume-Dumará,1996, p.71.

[8] MALAGUTI, Vera. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Instituto Carioca de Criminologia. Coleção Pensamento Criminológico: Volume 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998.

[9] Ver em < http://www.fimdarevistavexatoria.org.br/hotsite/>

[10] Projeto de Lei n 2159/2013 — Dispõe sobre o sistema de revista de visitantes nos estabelecimentos prisionais do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências e Projeto de Lei n 2984/2010 — Dispõe sobre o sistema de revista de visitantes nos estabelecimentos de atendimento ao cumprimento de medidas sócioeducativas privativas de liberdade do Estado do Rio de Janeiro.

[11] Membros: Antônio Pedro Campello Pereira Porto Soare, Fábio do Nascimento Simas, Patrícia de Oliveira, Renata Lira, Taiguara Souza eVera Lúcia Alves

[12] Processos de conhecimento são aqueles que apuram a prática de atos infracionais.

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